terça-feira, 1 de setembro de 2020

Esperança, disse ela

Tal como a senhora ministra espera capacidade de controlo do PCP, também deveria esperar que qualquer organizador de concertos, espectáculos e festivais fosse capaz “de cumprir as regras da DGS"

01 set 2020, Laurinda Alves – ‘Observador’

Curiosa formulação esta, da ministra da Saúde, que se declara ao país em ‘modo esperança’ e abusivamente assume que todos nós, cidadãos, esperamos com ela, o mesmo que ela.

E o que espera a senhora ministra da Saúde? Que a organização da festa do Avante “tenha a capacidade de implementar e cumprir as regras da DGS”. Pilatos não diria melhor. E assim como ele lavou dali as suas mãos, também Marta Temido faz o mesmo, esquecendo que o bom exemplo de lavar as mãos se aplica hoje em dia a quase tudo menos ao caso ‘festa do Avante’.

E se a organização não tiver capacidade? E se falhar no cumprimento das regras? E se se estiver nas tintas? Ou se nem sequer as quiser cumprir por discordar delas? E se o pior acontecer, o que é que nós podemos esperar?

Marta Temido lava as mãos e, enquanto as lava e volta a lavar, espera para ver o que acontece.

Gostava de ver se outros ministros, com outras tutelas, eram capazes de declarar ao país que ficam confiantes, simplesmente à espera, em temas críticos para o país. Que tal os ministros da Justiça e da Administração Interna declararem ao país que esperam que não haja ladrões nem roubos, crimes, agressões, corrupção e violência doméstica porque as leis estão certas e até foram feitas recomendações escritas neste sentido?

E que aconteceria se ficassem tranquilamente sentados nos seus gabinetes, à espera que não houvesse incêndios por haver legislação mais que suficiente e a Protecção Civil estar vigilante e a produzir recomendações claras? Ou se esperassem que por haver um código da estrada publicado e revisto periodicamente deixasse de haver mortos na estrada, acidentes e infracções?

E se o ministro da Educação decidisse esperar que nesta pandemia, e para sempre, todas as crianças e jovens estudassem, aprendessem e tivessem boas notas só porque há leis e regras que obviamente todos os professores conhecem, acatam e cumprem? E mais, se esperasse que os professores, suposta e confiadamente bons avaliadores e exímios executores das ditas regras, se aliassem a todos os pais do país, na esperança de que todos se mobilizariam para colaborar com todos e, quem sabe, até com o próprio ministério?

Marta Temido espera e confia cegamente. Faz questão de dizer que “a leitura das regras e a sua análise cabe também à organização”. E justifica a crença, diria mesmo a fé inabalável, ‘na organização’: “quisemos propositadamente que a organização tivesse tempo para as conhecer, para as apreciar e agora vamos esperar que haja o seu cumprimento”.

Esperamos?

Agora, que já todos percebemos que a festa vai avante (desculpem, mas não resisto ao trocadilho) e se contam os dias e as horas para a abertura do recinto, eu sei o que é que espero, senhora ministra. Espero que a senhora se mexa e verifique activamente se o partido comunista, conhecido pelo voluntarismo dos seus militantes e pela sua capacidade de multiplicar postos de controlo e vigilância, vai mesmo cumprir escrupulosamente as regras e recomendações.

Espero que a festa do Avante não seja responsável por acentuar a curva de contágios nem por agravar os surtos provocados pela pandemia. Espero que as autoridades e os controladores do partido controlem como sempre controlaram, espero que tirem a temperatura a quem entra e que verifiquem o uso de máscaras entre quem circula. Espero que tenham casas de banho suficientes e voluntários e funcionários disponíveis para as limpar e desinfectar entre cada uso, antes de entrar o utente seguinte. Espero que haja incontáveis bocas de água para todos poderem manter as mãos lavadas e espero que não esgote o desinfectante.

Espero muita coisa e espero acima de tudo que ‘a organização’ esteja a pensar seriamente em tudo, prevendo milimetricamente cada detalhe de cada coisa, acautelando a saúde dos participantes, mas também de quem habita o perímetro. Ah! E espero que no regresso a casa e às suas comunidades de norte a sul do país, os militantes e visitantes voltem apenas com a coroa de glória por terem participado na sua grande festa, mas não transportem consigo nenhum vírus com coroa.

Já não espero, evidentemente, que haja apenas uma pessoa em cada 8 metros quadrados nos espaços abertos, nem uma pessoa por cada 20 metros quadrados nos espaços cobertos porque isso não está a acontecer em lado nenhum. Jerónimo de Sousa tem razão quando argumenta que isso não acontece nas praias e outros espaços públicos e aí estamos de acordo: o sol quando nasce é para todos.

Enfim, sinceramente espero que corra tudo bem e que a festa não gere novos surtos. Seria um escândalo nacional e um embaraço internacional. E seria certamente um hara kiri para o PCP.

Gostaria, no entanto, de poder esperar muitas outras coisas, para além daquelas que a senhora ministra da Saúde passivamente espera. Espero ativamente que deixe de haver um tratamento discricionário da esperança.

Tal como a senhora ministra espera capacidade de avaliação, implementação e controlo do partido comunista, também deveria esperar que todo e qualquer organizador de concertos, espetáculos, festivais, feiras, congressos, eventos e atividades que mobilizam milhares de pessoas fosse capaz “de implementar e cumprir as regras da DGS”.

Afinal o sol quando nasce não é para todos, mas apenas para aqueles em quem a senhora ministra põe toda a sua confiança e esperança.

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