quarta-feira, 27 de outubro de 2021

OS SENHORES ÁRBITROS

São advogados, professores de Direito ou antigos juízes. Alguns circulam entre processos. Num são advogados, no outro árbitro-presidente, num terceiro, árbitro designado por uma das partes. Nem todos o fazem. Porque o mercado é muito pequeno. Porque mais cedo ou mais tarde, tudo se vai sabendo. Porque ser árbitro dá trabalho. Algumas vezes, porque há decência.

Entre académicos, ser árbitro é um estatuto que muitos desejam, mas poucos alcançam. Há-os de todas as espécies e feitios. Especialistas em diferentes ramos de Direito. Alguns deles numa estratégia de catch all, dispostos a julgar questões de qualquer ramo do Direito. Ansiando por uma única oportunidade. Outros, pelo contrário, especializam-se e não pisam em ramo verde. Uns gozando de reputações intocáveis, outros já as tiveram.

O embaixador dos árbitros portugueses é hoje José Miguel Júdice. O antigo bastonário da Ordem dos Advogados é o único caso no nosso país de profissional da advocacia que, depois de abandonar a gigantesca sociedade de Advogados — PLMJ (onde o J final é mesmo de Júdice), suspendeu a sua inscrição junto da Ordem dos Advogados e hoje é “apenas” isso: árbitro independente, com direito a site, pois o seu renome — e os seus interesses — estão agora razoavelmente para lá dos processos que correm dentro das fronteiras portuguesas (www.josemigueljudice-arbitration.com). Já foi o representante português na ICC (Câmara de Comércio Internacional), um dos maiores e mais reputados centros de arbitragem do mundo, com sede em Paris, onde é nomeado árbitro com frequência. Note-se que ser árbitro na Cour de Paris está para ser árbitro no Centro de Arbitragem Comercial da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa (CCIP), como jogar na Juventus está para ser titular no Estrela da Amadora.

Internamente, o árbitro mais conhecido e certamente com mais intervenções, quase omnisciente entre tribunais arbitrais, pareceres, obra publicada, cargos em órgãos sociais, é, de longe, o professor de Direito António Menezes Cordeiro, também árbitro na CCI de Paris, cujo curriculum vitae (simplificado, segundo o próprio) tinha, em 2016, 96 páginas. A sério.

Mas, se são estes os dois árbitros que mais despertam a atenção, ou a inveja, das respectivas classes, a lista de profissionais que frequentam o Centro de Arbitragem Comercial da CCP e outros centros, mais ou menos nobres, onde decorrem os tribunais arbitrais, são algumas centenas. Mas quem, na verdade, é chamado às arbitragens são quase sempre os mesmos.

Aqui ficam alguns dos mais conhecidos, sem critério de número de processos para que são designados, quanto facturam ou quantas decisões viram anuladas — na arbitragem, o segredo, ou, eufemisticamente, a confidencialidade, é realmente a alma do negócio. Ninguém revela quem são os árbitros, quanto ganham, em quantos processos estão. Vale aqui o “boca a boca”. Quase todos sabem quem são os colegas que ficam com cada um dos grandes processos. Como os honorários, são segredos de polichinelo. Mas ficam entre eles.

A lista inicial inclui os árbitros que se especializaram em direito administrativo, ou seja, nas arbitragens públicas, em que o Estado é parte. Mas atenção, o próprio Estado recusa-se a dizer quem são os árbitros que nomeia para os seus litígios e os outros, que são nomeados pela outra parte e cooptados pelos árbitros. Sigilo total. Nesta justiça privada e secreta não se pode sequer saber quem são os juízes.

As listas seguintes juntam os nomes dos mais conhecidos árbitros, que foram referidos por alguns dos profissionais de arbitragens ouvidos nesta reportagem. Há muitíssimos mais árbitros no universo das arbitragens portuguesas (muitos deles patentes nas listas públicas do CAAD e do Centro de Arbitragem Comercial da CCIP).


ÁRBITROS ADMINISTRATIVISTAS:

— José Miguel Júdice

— Menezes Cordeiro

— Paulo Otero

— João Raposo

— José Robin de Andrade

— Manuel Pereira Barrocas

— Manuel Vieira de Andrade

— Mário Aroso de Almeida

— Pedro Costa Gonçalves

— Armindo Ribeiro Mendes

— Rui Medeiros

— Lino Torgal

— José Paulo Vieira Duque

— Gonçalo Capitão

— Carneiro da Frada

— Fausto Quadros


A lista abaixo inclui árbitros e advogados que, não fazendo praticamente arbitragem administrativa, fazem as grandes arbitragens comerciais — aqueles cujos escritórios denunciam os “sinais exteriores de arbitragem”: madeiras nobres e caras, mármores, belíssimas vistas, colecções de arte com Vieira da Silva, Júlio Pomar, Paula Rego… e tapetes, muitos tapetes. Aqui falam-se todas as línguas. Até mandarim.


Senhoras e senhores, bem-vindos ao reino dos mais ricos: 


ÁRBITROS CIVILISTAS E COMERCIAIS:

— Paula Costa e Silva

— Dário Moura Vicente

— Pinto Monteiro

— António Pinto Leite

— Manuel Cavaleiro Brandão

— António Sampaio Caramelo

— Luís Miguel Cortes Martins

— Pedro Romano Martinez

— Luís Menezes Leitão

— Laureano Santos

— Mariana França Gouveia

— Metello de Nápoles

— Paulo Pinheiro

— Pedro Melo

— Pedro Leite Alves

— Agostinho Pereira de Miranda

— José Carlos Soares Machado

— José Mário Ferreira de Almeida

— Rita Gouveia

— Paulo Mota Pinto

— João Tiago Silveira

— Alves Pereira

— Duarte Gorjão Henriques

/ I.S.L.  – Expresso

ARBITRAGEM FISCAL E ADMINISTRATIVA: AME OU ODEIE.

O Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) foi criado em 2009, pelo Ministério da Justiça, para retirar da alçada dos sobrelotados tribunais administrativos e fiscais uma série de litígios entre os particulares e o Estado no campo do direito administrativo e fiscal. O CAAD é um centro de arbitragem de natureza pública onde são constituídos tribunais arbitrais que, através da estrita aplicação da lei, realizam uma espécie de justiça privada: a justiça arbitral institucionalizada.

Os processos estão inteiramente desmaterializados e tanto os árbitros quanto as partes têm um log in que lhes permite aceder online a todo o processo. Se o caso for julgado por árbitro independente designados pelo Conselho Deontológico do CAAD (95% dos casos) as custas são iguais às dos tribunais do Estado. Se o contribuinte quiser indicar um árbitro, o tribunal passa a funcionar como colectivo de três árbitros, e o valor das custas é muito mais elevado, sendo o mínimo de €6 mil o que funciona como factor de desincentivo desta opção, mas com um detalhe: quando é esta a escolha, o Estado está isento do pagamento de custas mesmo se perder a acção. Ou seja, o Estado não paga um euro a mais no CAAD em comparação com os tribunais do Estado.

Das reclamações dos contribuintes contra as Finanças (até €10 milhões) aos processos laborais de funcionários públicos, tudo pode ser decidido, de forma rápida, por um perito designado pelo CAAD.

Com o aumento crescente da sua actividade, chegou ao Centro alguma autonomia financeira, que lhe permitiu melhorar progressivamente as receitas próprias. Neste momento o CAAD conquistou a sua autonomia financeira, não dependendo do orçamento do ministério da Justiça.

Com o sucesso, porém, chegaram também algumas reticências e críticas públicas. Sobretudo vindas dos juízes.

Manuel Soares, presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, desconfia: “o CAAD escapa ao controle de legalidade que o Ministério Público tem no tribunal administrativo”.

Nuno Villa-Lobos, presidente do CAAD, garante que esse controle e fiscalização existem desde o início, já que as decisões sempre foram públicas — o que não acontece, por exemplo, nos tribunais de primeira instância do Estado. Além disso, o CAAD, diz Villa-Lobos, notifica o Ministério Público de todas as decisões. “Celebrámos, por iniciativa nossa, um protocolo com a Procuradoria-Geral da República, em 2018, o que fortaleceu mais os mecanismos de transparência e integridade.” A possibilidade de recurso das decisões também garante que os processos podem ser verificados, o que significa, diz Villa-Lobos, que o CAAD está integrado no sistema de justiça, o que contraria totalmente a ideia, “falsa e sem fundamento”, de que escapa ao controlo da legalidade.

O Centro acrescenta que recentemente foi celebrado recentemente novo protocolo com o Tribunal de Contas (TC), nos termos do qual, além da notificação das sentenças arbitrais, que já era feita, o CAAD passa a notificar o TC de todas as arbitragens entradas, especificando quem são as partes, os árbitros, qual é o objecto do litígio e o seu valor. “Assumimos a nossa responsabilidade por inteiro: as decisões do CAAD são rápidas, sim, mas também têm de ser tecnicamente fortes e têm de ser transparentes em todos os momentos.”

É por isso, diz Nuno Villa-Lobos, que a escolha dos árbitros “obedece a critérios cada vez mais exigentes” pensados “para evitar ao máximo” os potenciais conflitos de interesse que minam a confiança. O sorteio dos árbitros é público e é da exclusiva competência do Conselho Deontológico, liderado por um Ex-presidente do Supremo Tribunal Administrativo, acrescenta. “A arbitragem feita no CAAD devolve com sentido de exigência a responsabilidade confiada pelo Estado.”

Villa-Lobos sublinha ainda que a maioria dos processos que entram no CAAD têm origem em pequenas e médias empresas, e microempresas, ou contribuintes singulares com processos relativos ao Imposto Único de Circulação (IUC) ou ao Imposto Sobre Veículos (ISV). “A resolução destes processos liberta dinheiro para essas pessoas ou para o Estado que, assim, deixa de estar parado. Além disso, o Estado poupa efectivamente milhões de euros em juros, já que as decisões no CAAD são rápidas.”

Os tribunais de antigamente, pesados e solenes, ponderados e lentos, onde juízes e procuradores ainda usam becas e advogados envergam togas, começaram a ser dispensáveis. E são cada vez mais dispensados. Esse é um facto consumado e inegável.

O CAAD parece estar a tentar garantir que não acontece à arbitragem administrativa o que de pior poderia acontecer: ser morta pela desconfiança. Todos os esforços que o CAAD tem feito no sentido de publicar as decisões e cooperar com as instituições, tentam, em suma, mostrar que esta arbitragem não é feita atrás de portas fechadas.

O CAAD percebeu que o futuro vai exigir à justiça arbitral a transparência sem a qual ela não tem credibilidade.

No fundo, o CAAD está a fazer com a arbitragem institucionalizada administrativa e tributária o oposto do que os sucessivos governos têm feito, e deixado fazer, com a arbitragem administrativa ad hoc — aquela que está prevista em cláusulas de contractos entre o Estado e privados, mas não se encontra ligada a centros institucionais de arbitragem.   

Se isto é assim, por que razão as grandes arbitragens dos litígios do Estado com os particulares, como as parcerias público-privadas (PPP) não vão para o CAAD? Não é certamente por o limite de competência do CAAD ser de €10 milhões, pois esse limite só se aplica às arbitragens fiscais.

Quanto às arbitragens administrativas, não existe limitação. A pergunta tem uma resposta. Existe uma razão ponderosa para os grandes litígios não recorrerem ao CAAD: os privados, portugueses ou estrangeiros, tendem a não confiar num centro de arbitragem privada que foi criado pelo Estado. Ou seja, que, no fundo, é público. Veremos o que conseguem o tempo e talvez as alianças certas.

A arbitragem administrativa, enquanto privatização da justiça continuará a levantar problemas. A começar pela questão básica: como pode o cidadão confiar nos tribunais comuns se o próprio Estado foge deles? A confiança é o olho desse furacão.

Por enquanto, uma certeza: ame-o ou odeie-o, o CAAD está para ficar.


Inês Serra Lopes – Expresso

O TRIBUNAL ARBITRAL ‘AD HOC’

Em Portugal existem três espécies de tribunais arbitrais em que o Estado aceita ser julgado: o Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD); a arbitragem institucional, como a do Centro de Arbitragem da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa (CCIP); ou a arbitragem ad hoc, aquela em que o tribunal arbitral é constituído específica e exclusivamente para litígios que surjam em determinado contracto. Para que haja arbitragem ad hoc basta que um contracto entre o Estado e um privado inclua uma cláusula ou compromisso arbitral. A cláusula é simples, limitando-se a dizer que qualquer conflito ou litígio emergente do contracto será dirimido com recurso a arbitragem, devendo a parte que pretende convocar o tribunal arbitral comunicar o facto à outra parte, designando de imediato o seu árbitro. A outra parte designará o respectivo árbitro e os dois em conjunto escolherão o árbitro-presidente e definirão o regulamento da arbitragem — muitas vezes, apesar da arbitragem ser ad hoc, o tribunal opta por ficar sediado num Centro de Arbitragem, utilizando os seus serviços e por vezes adoptando mesmo o seu regulamento. O processo é rápido: dura entre seis meses e o máximo de um ano e meio, dependendo da complexidade e da necessidade de peritagens e outros actos que podem demorar. A decisão dos árbitros tem o mesmo valor de uma sentença judicial, pode ser executada judicialmente e só há pouco tempo, desde 2020, passou a ter possibilidade de recurso, para condenações acima de €500 mil.

No início, os árbitros decidem o regulamento e os custos da arbitragem — muitas vezes por remissão para a tabela do regulamento do Centro de Arbitragem da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa (CCI).

Segundo essa tabela, os honorários dos árbitros e os encargos da própria arbitragem variam de acordo com o valor da causa. Foi o que aconteceu no caso do TGV, em que o consórcio liderado pela Brisa pedia ao Estado uma indemnização de cerca de €168 milhões. Os custos administrativos da arbitragem seriam €52 mil.

Já os honorários de cada árbitro seriam cerca de €270 mil (€138.900,00 acrescidos de 0,04% do valor da indemnização que excedesse €120 milhões). Porém, neste caso, por acordo entre o tribunal arbitral e as partes, os árbitros aceitaram reduzir os seus honorários em 21,94%. Assim, Paula Costa e Silva, Manuel Carneiro da Frada e Paulo Otero, que votou vencido, deverão ter

recebido cada um cerca de €210 mil — ou quatro anos de salário como professores universitários. O Centro de Arbitragem aceitou a mesma redução e terá recebido €40.591. Os advogados ganham muito mais. O montante depende do valor da causa, da prática de cada sociedade e do estilo do próprio advogado. Do total de custos, 16% a 18% são para remunerar os árbitros, 3% a 4% para a secretaria e os restantes 80%… para os advogados. O caso do TGV ainda não terminou: estão pendentes em simultâneo uma acção executiva do consórcio ELOS, liderado pela Brisa, contra o Estado (no valor de €202 milhões), e uma acção de anulação da sentença arbitral interposta pelo Estado junto dos tribunais administrativos. Só Deus e a Autoridade Tributária saberão qual o valor recebido pelos advogados em cada caso concreto. Uma coisa é certa: mesmo desconhecendo quem são as partes; qual é o litígio; quem são os advogados e quais são os árbitros; serão os seus impostos que vão pagar a parte pública..

Inês Serra Lopes

Expresso

terça-feira, 26 de outubro de 2021

O negócio milionário da JUSTIÇA ARBITRAL do Estado.

Esta é a justiça secreta, opaca, que não se vê, não se conhece, da qual ninguém nos dá conta, que é cara e, sobretudo, que é feita sempre pelos mesmos protagonistas. E através da qual se decide o destino do dinheiro público.

Pensa que são os tribunais comuns, aqueles abertos ao público, com juízes, procuradores, becas, advogados e togas, que julgam os conflitos entre o Estado e as grandes empresas? Ideia tola e ultrapassada. A República Portuguesa está muito à frente: a democracia abriu-se à arbitragem de conflitos públicos e deixou que ela se instalasse confortavelmente. É no recato das faustosas salas das câmaras de comércio e nos luxuosos escritórios das maiores sociedades de advogados que é exercida esta forma de justiça privada, que julga os conflitos longe dos tribunais por onde passa o povo, através de pessoas escolhidas pelas partes, os árbitros, que constituem um tribunal especial exclusivo para o caso, o tribunal arbitral, e

decidem a causa no conforto de poltronas, chá de tília e ar climatizado, longe da rua e do desagradável interesse do público — e quantas vezes longe também do interesse público.

As decisões desses discretos árbitros — e um deles pode ser o seu vizinho do 3º direito — tendem a condenar o Estado em valores muito superiores àqueles a que se assistia nos tribunais judiciais. Em somas verdadeiramente milionárias, que atingem as centenas de milhões de euros. As míseras condenações que os tribunais administrativos atribuíam ficaram enterradas no século XX. Agora pretendemos ser uma democracia adulta: o Estado é condenado em milhões e paga esses milhões. Só que… ao contrário das democracias maduras — nós permitimos que isso seja feito em segredo, sem sindicância e sem controlo. Deixamos que tudo se passe como se o dinheiro do Estado não fosse nosso. Como se não tivéssemos o direito a que a Justiça que se faz sobre o erário público, o nosso dinheiro, fosse pública. E, no fim, pagamos a conta e não nos indignamos.

Diz-se que quando uma pessoa deve um milhão ao banco, essa pessoa tem um problema. Quando alguém deve cem milhões ao banco, o banco tem um problema. Hoje, se uma empresa reclama quinhentos milhões ao Estado num tribunal arbitral qualquer, são os contribuintes que têm um problema.

Este novo paradigma veio para ficar. Trocado em miúdos, é simples: todos os grandes contractos celebrados entre sociedades privadas e o Estado ou entidades públicas contêm duas cláusulas sacramentais: a cláusula arbitral e a cláusula de confidencialidade.

Quando algo corre mal numa parceria público--privada, numa concessão do Estado, num grande contracto com uma entidade pública, as partes — ou seja, o privado que gere o hospital, que é concessionário da auto-estrada ou da barragem, que fez um contracto para fornecer helicópteros, para o saneamento de águas ou para construir escolas — e a empresa, instituto público, autarquia ou departamento que representa o Estado nesse contracto ou concessão, designam cada um o seu árbitro. Pode ser um advogado, um professor de direito, um antigo juiz, um engenheiro, um economista, alguém de confiança, teoricamente com competência técnica para julgar o caso. Estes dois árbitros reúnem e escolhem um terceiro que será o presidente do tribunal arbitral. Os três fazem o regulamento da arbitragem. E num prazo curto decidem a causa, dependendo da prova a produzir e da complexidade do assunto. E quando dizemos curto, é mesmo curto: seis meses, normalmente. No máximo um ano ou, nas causas

realmente complexas, que exigem muitas peritagens e centenas de volumes, dois anos. Maravilhoso, não?

Não. Porque não?

Porque é uma justiça secreta, opaca, que não se vê, não se conhece, da qual ninguém nos dá conta, que é cara e, sobretudo, que é feita sempre pelos mesmos protagonistas, que pertencem aos mesmo escritórios — muitas vezes advogados às segundas, quartas e sextas e árbitros às terças e quintas. Algumas vezes árbitros e advogados convivendo na mesma sociedade de advogados. Outras vezes, alternando nos papéis. É no meio de toda essa potencial promiscuidade e de todo esse segredo que é decidido o destino do dinheiro público, aquele pelo qual os Governos deveriam zelar. E ao qual nós deveríamos poder seguir o rasto.

Como não desconfiar de uma justiça sobre dinheiros públicos que é feita por particulares, de forma confidencial, da qual praticamente não há recurso e que não é conhecida por ninguém? “Obrigar o Estado a pagar não é mais do que obrigar toda a comunidade a pagar. Quando uma entidade pública é condenada, é toda a comunidade que é condenada.

O erário público é uma conta comum a toda a colectividade”, resume Paulo Otero, professor de Direito e árbitro.

Esta reportagem dedica-se às grandes arbitragens internas, aquelas que são feitas no âmbito do Centro de Arbitragem (CA) da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa (CCIP) e das chamadas arbitragens ad hoc, que decorrem de cláusulas arbitrais inseridas nos grandes contractos entre o Estado e privados e que não seguem as regras de nenhum centro de arbitragem (embora muitas delas acabem por usar os serviços profissionais do CA, sediando lá o tribunal arbitral).

Os processos arbitrais, mesmo nos tribunais arbitrais que julgam os grandes conflitos do Estado,

como os que decorrem das Parcerias Público-Privadas (PPP) são confidenciais. Uma forma de Justiça secreta, portanto. Mais à frente descrever-se-á a “publicidade” que desde o ano passado é supostamente obrigatória para as sentenças arbitrais que envolvem o Estado. Supostamente. As decisões arbitrais, verdadeiras sentenças, são vinculativas e geralmente não têm recurso — passaram a tê-lo recentemente, apenas em alguns casos, como veremos. A despesa não precisa de passar no crivo do Tribunal de Contas. E normalmente não é preciso executar a sentença: as partes querem resolver rapidamente o assunto e pagam voluntariamente, sem necessidade de execução e de mais custos.A arbitragem dos conflitos com o Estado é uma justiça muito rápida, em que são decididas indemnizações de centenas de milhões, que criou um mercado de trabalho com honorários nunca sonhados por professores de direito, juízes reformados e outros profissionais liberais, enriquecendo as maiores sociedades de advogados. E, surpresa, é você quem paga a conta!


O SILÊNCIO DO GOVERNO

Esta investigação muito dificilmente podia ser feita sem a colaboração do Estado. Pretendíamos elaborar, pela primeira vez, uma estatística séria sobre os processos arbitrais em que o Estado foi parte nos últimos anos. Era necessário saber quantos processos arbitrais existiram, quais os respectivos valores, quem eram as partes, os árbitros e os advogados do Estado em cada processo, quando terminou cada um deles, quais foram as decisões e a quantas se seguiram acções de anulação da sentença arbitral (até há pouco não existia sequer recurso, a única hipótese era propor em tribunal administrativo uma acção de anulação da decisão, havendo fundamento legal). Pretendíamos obter os números anuais e globais e os nomes dos intervenientes para poder tirar algumas conclusões sobre a forma como essa justiça privada tem funcionado. E sobre quem são os seus protagonistas. E queríamos ter acesso às decisões arbitrais. A todas aquelas dos grandes processos, como o TGV, o Parque Mayer, o Amado-

ra-Sintra, e à imensidão daqueles que se mantêm até hoje na sombra.

Assim, pedimos informações ao Governo. Todas as informações que solicitámos são de interesse público e deveriam ser públicas. Não obtivemos qualquer delas. Pelo menos não através de quem estava, e está, legalmente, obrigado a prestá-las. Uma delas, no âmbito da Defesa Nacional, prende-se com o processo arbitral do litígio quanto aos veículos blindados Pandur, que terminou por acordo homologado pelo tribunal arbitral. Será admissível que um acordo entre as partes sobre o erário público, homologado por qualquer tribunal, judicial ou arbitral, seja secreto? O Ministério da Defesa deixou de atender o telefone após ter recebido todas as questões do Expresso por escrito.

Sendo certo que a maioria dos grandes litígios do Estado decorrem dos contractos das PPP, dirigimo-nos aos ministérios que tutelam a maioria das concessões dessas parcerias: Infra-estruturas e Habitação; Educação e Defesa. A Saúde é um caso à parte porque sendo poucas as parcerias, os processos arbitrais são já mais ou menos conhecidos (caso do Amadora-Sintra e do Hospital de Braga) e na sua maioria já se encontram findos, cremos.Simultaneamente, foi pedida a colaboração do Ministério da Justiça, pois seria apenas natural, dir--se-ia mesmo obrigatório, que a Justiça soubesse a cada momento quantos são os processos arbitrais em que o Estado intervém.

As estatísticas da Justiça, porém, só comportam as pequenas arbitragens tributárias e administrativas do CAAD. As respostas remeteram-nos para legislação que já conhecíamos. Dados sobre os tribunais arbitrais: zero. O ministério de Francisca Van Dunem limitou-se a remeter para o site da Direcção--Geral da Política de Justiça (DGPJ), onde deveriam estar publicadas todas as decisões arbitrais em que é parte o Estado português. Na realidade esse site continha, no final de Abril, 274 decisões arbitrais. Dessas, apenas duas decisões não eram provenientes do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD).

Actualmente, são cinco decisões. Uma é uma arbitragem feita no Centro de Arbitragem Comercial, as outras são quatro arbitragens ad hoc em que eram partes… Na verdade, não podemos saber quem eram:a lei manda suprimir as partes (eles chamam a isso “anonimizar” a sentença) e todas as referências que permitam identificá-las, mesmo tratando-se de sociedades comerciais e de institutos públicos ou departamentos do Estado.


COMO NÃO DESCONFIAR DE UMA JUSTIÇA À PORTA FECHADA?

Os tribunais arbitrais, tal como os tribunais judiciais, estão previstos na nossa Constituição. Mas a mesma Constituição diz expressamente no artigo 206º que as audiências nos tribunais são públicas. O professor Paulo Pinto de Albuquerque, em nota ao art. 209º da lei fundamental afirma que “também as audiências dos tribunais arbitrais são, em princípio, públicas, salvo quando o tribunal decidir o contrário, em despacho fundamentado, para salvaguarda da dignidade das pessoas e da moral pública ou para garantir o seu normal funcionamento”.

Infelizmente, não é esse o entendimento que tem prevalecido. Nem a prática que tem sido seguida.

Bem pelo contrário. A justiça arbitral segue o modelo da Lei da Arbitragem Voluntária (LAV), onde a regra é a confidencialidade — o que é compreensível: as duas grandes vantagens da justiça arbitral para os privados são a rapidez e a confidencialidade E, se na justiça pública a rapidez continua a ser uma vantagem inequívoca, a confidencialidade levanta as maiores reticências.

Na maioria dos países que admitem a arbitragem de Estado — e nem todos o fazem, como é o caso da França, onde o Estado por princípio não pode celebrar cláusulas arbitrais —, esta é pública. E em muitos ordenamentos não é apenas a sentença que é pública, mas também a audiência de julgamento ou mesmo todo o processo arbitral.

Para José Miguel Júdice a publicidade é um non issue (uma não questão). “A lei regula o tema, como o fazem regulamentos e até convenções internacionais e a forma como o fazem parece-me bem. Outra questão é saber se essas normas legais, códigos de conduta e boas práticas são ou não respeitadas…”

Parece que, entre nós, não são respeitadas. Mas também parece que a lei não o regula como os regulamentos e convenções internacionais.

De qualquer forma, esta visão do “embaixador da arbitragem portuguesa” está longe de ser maioritária. Pelo contrário. José Robin de Andrade, que foi presidente da Associação Portuguesa de Arbitragem, considera que “é precisamente pela falta de escrutínio que começa a haver uma má reputação da arbitragem (administrativa)…”

Por cá, para resumir, em 2015 passou a ser obrigatória a publicação das sentenças de arbitragens administrativas. Entretanto, fora publicada em 2019 uma outra alteração ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) que obriga a retirar dessas sentenças todas as referências “pessoais”.

Como de costume, a portaria que a regulamentou ainda demorou mais nove meses. Assim, quando a obrigação de publicação das sentenças arbitrais que vinculam o Estado e os dinheiros públicos entrou em vigor, estas tinham, e têm, de ser truncadas, de forma tal que não se sabe quem são as partes e acaba por não se perceber qual era o contracto público em causa. Mesmo tratando-se de contractos entre sociedades comerciais e entidades públicas ou o próprio Estado. Isto por causa do Regulamento Geral de Protecção de Dados Pessoais que se aplica apenas e exclusivamente a pessoas singulares.

Robin de Andrade defende que assim não se consegue certamente “atingir o controlo público da fundamentação e da justiça das decisões arbitrais, apesar de o mesmo ser essencial para credibilizar a justiça arbitral”. O advogado espera que “o Governo se aperceba rapidamente do erro cometido e clarifique a portaria emitida, tornando claro aquele que é o verdadeiro regime em vigor, a saber que anonimização imposta por lei apenas se reporta às partes que sejam pessoas singulares, e que as pessoas cujos nomes devem ser ocultados são unicamente as pessoas singulares.”

Armindo Ribeiro Mendes, antigo conselheiro do Tribunal Constitucional e actual presidente da comissão nacional da Câmara de Comércio Internacional (CCI), concorda: “Esta alteração desvirtua completamente a regra de 2015 que estabelecia que nas arbitragens administrativas as decisões são publicadas pelo Ministério da Justiça. De 2015 a 2019 nada foi publicado, por não haver regulamentação.

E agora isto…”

A maioria dos académicos consultados considera “uma vergonha” a decisão de anonimizar as sentenças arbitrais do Estado. António Marinho e Pinto foi das primeiras pessoas a chamarem a atenção para os perigos da arbitragem administrativa, tanto como bastonário da Ordem dos Advogados quanto como eurodeputado. “Combati muito a arbitragem. É um retrocesso. Uma forma institucionalizada de delapidar o património público”, diz o advogado. “Não sou contra a arbitragem entre privados. Mas o Estado?

É intuitivamente errado. As pessoas que são obrigadas a ir a tribunal têm direito a uma justiça rápida.

Além disso, as partes não devem pagar os honorários do juiz. Estes devem estar antecipadamente pagos.

É uma regra da democracia.”, diz Marinho e Pinto.

Dir-vos-ão que os desentendimentos em obras públicas já eram sujeitos a arbitragem em Portugal em épocas remotas. E é verdade: eram os “homens bons” quem arbitrava e decidia esses litígios. Mas eram homens bons. E faziam-no em público. Não há nada de sagrado na confidencialidade da arbitragem. Muito mais quando está em causa o dinheiro dos contribuintes. A publicidade afasta, aliás, um dos riscos maiores da arbitragem: a sua utilização para branqueamento de capitais, ou seja, lavagem de dinheiro.


A DEFESA DO ESTADO

A Procuradoria-Geral da República sacudiu a água do capote e, num extenso parecer, o Ministério Público considerou há décadas que não tem competência legal para representar o Estado em tribunais arbitrais. Deixou, assim, as portas escancaradas aos grandes escritórios de advogados. A eles foi sendo entregue a defesa de empresas institutos e entidades públicas. São eles que representam o Estado central, as autarquias, as empresas públicas. São eles que ganham os honorários milionários cobrados nos tribunais arbitrais. “Vale a pena. Olhe que vale!”, dizem os advogados experimentados. Miguel Galvão Teles, grande advogado e árbitro que já não está entre nós, dizia que era contra a arbitragem envolvendo o Estado ou entidades estatais porque o Estado não sabia defender-se e depois sofria estrondosas derrotas.

Nas últimas décadas, o Estado começou a contratar as mesmas grandes sociedades de advogados que defendem os privados. Mas durante muitos anos continuou a ser condenado em valores fabulosos. O que acabou por levar à imposição recente de recurso (de que as partes não podem prescindir) para as condenações acima de €500 mil.

Actualmente, o Ministério Público (MP) é legalmente responsável pelos recursos do Estado nas arbitragens, devendo ser notificado das decisões pelos tribunais arbitrais. Acontece que, com os prazos curtos de recurso e o desconhecimento total dos processos arbitrais, são raríssimos os recursos interpostos pelo MP. Compete-lhe igualmente representar o Estado nas eventuais execuções de sentenças arbitrais. Voltando à tese de Miguel Galvão Teles, se o Estado soubesse defender-se, não precisaria disso.

Larga maioria dos advogados que realizam arbitragens asseguram que o Ministério Público não teria capacidade para assegurar uma (boa) defesa do Estado. Mas a arbitragem não é uma ciência hermética.

Um gabinete especializado na Procuradoria poderia ter criado um grupo de técnicos especializados em arbitragens administrativas. “Bastava” ter alterado a lei. E ter feito com que a Procuradoria-Geral da República compreendesse, naquela altura, como nesta altura o Estado viria a estar, como efectivamente está, na mão dos grandes escritórios de advogados. Narciso Cunha Rodrigues certamente compreendeu os dados da equação. Será que foram os políticos que não os compreenderam?

Mas a questão não está só na defesa do Estado.

Está mais acima. O verdadeiro problema reside no lançamento dos concursos públicos e na redacção dos respectivos contractos. E, logo depois disso, nas alterações contratuais — algumas delas bem-intencionadas (muito poucas, diga-se). Comecemos com um caso exemplar que mostra como a raiz do problema, mesmo provada em tribunal, dificilmente retira o direito à indemnização. Afinal, é o Estado que paga.


REPOSIÇÃO DO EQUILÍBRIO:

O EXEMPLO DE MARCO DE CANAVESES

O município de Marco de Canaveses não ficou atrás dos vizinhos e teve direito ao seu próprio projectfinance. Em parceria público-privada (PPP), pois claro. Esta, decorre no sector das águas e saneamento. Acabou, como tantas, em tribunal arbitral.

Para encurtar uma longa história, as Águas do Marco, SA, empresa do poderoso grupo AGS, concessionária da exploração e gestão do sistema de Abastecimento de Água de Marco de Canaveses, pediu a constituição de um tribunal arbitral requerendo a “reposição do equilíbrio” do contracto de concessão e dos lucros cessantes. O pedido alternativo era de €75 milhões de euros a prazo, ou €32 milhões a pronto. O tribunal arbitral julgou o caso e decidiu:o grupo AGS tinha direito a uma indemnização de €16 milhões.

Porém, no processo ficaram provados factos quase inacreditáveis — que não se percebe como não foram alvo de extracção de certidão para investigação criminal pelo Ministério Público. É o próprio acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (Proc.0682/14, disponível em www.dgsi.pt) que enumera esses factos provados: o Contracto de Concessão tinha muitas cláusulas diferentes do disposto no Caderno de encargos, com benefício para a adjudicatária; o contracto de concessão tinha contida (num dos múltiplos anexos — o Anexo XV “caso base”) a previsão de receitas da concessionária incrementada em mais €112 milhões (+37%) relativamente à proposta do concurso adjudicada; e de mais 50% dos lucros líquidos previstos da adjudicatária; e o Anexo XV (“caso base”) ficou convertido em parte integrante do contracto de concessão para aferir futuros processos de reequilíbrio financeiro do contracto a suportar pelo município; estes números e anexos foram enviados para os serviços da câmara para serem juntos à escritura (por uma notária da câmara que tem o 12º  ano), sem terem sido analisados por alguém da câmara ou sem que deles sequer fosse dado conhecimento a alguém do município (…). Traduzindo, os elementos com base nos quais seriam calculadas, durante todos os anos de vigência do contracto, as receitas e os lucros, foram alterados pela adjudicatária, em seu benefício, sem o conhecimento da Câmara.

Um pedido com conteúdo em tudo semelhante, mas com valor de €110 milhões, feito pelo mesmo grupo AGS contra o município de Barcelos teve um julgamento totalmente diferente: a câmara foi condenada a pagar às Águas de Barcelos o valor total do pedido: €110 milhões.

Apesar de a condenação do Marco ser comparativamente “razoável”, na medida em que a condenação correspondeu apenas a metade do montante mínimo pedido, o município recorreu, defendendo que o contracto era nulo. O recurso, bem feito, continha entre muitos outros um parecer do actual Presidente da República. O Tribunal Central Administrativo do Norte recusou admitir o recurso, mas um recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo, que produziu o acórdão que citámos, alterou a decisão e admitiu o recurso.

Marco de Canaveses tinha tudo para ganhar: a nulidade do contracto estava pendente no tribu-

nal central administrativo e a hipótese de fazer um acordo seria agora por um montante bem inferior ao da condenação de €16 milhões.

Entretanto, há eleições autárquicas e a câmara do Marco de Canaveses muda de mãos. O PS ganha e resolve mudar de advogados: chama a sociedade e advogados que perdera totalmente o processo arbitral semelhante da mesma AGS, contra o município de Barcelos, e pede-lhe que passe a representar o município de Marco de Canaveses no processo, que se encontrava praticamente findo, através de um contracto no valor de €240 mil.


O ESTADO PERDE SEMPRE:

VERDADE OU MITO URBANO?

O Estado não perde sempre. Quer dizer, não perde sempre tudo. Embora nos tribunais arbitrais, como nos outros, a sucumbência (percentagem do pedido em que a parte é condenada) seja muito variável, há até alguns casos, raríssimos, em que o Estado ganhou 100% contra particulares.Um desses raros processos data de 2017. O Estado litigava contra o Hospital de Loures. Os árbitros foram Tiago Duarte, pelo Hospital de Loures (com voto de vencido), Paulo Otero, pelo Estado e como árbitro-presidente Pedro Costa Gonçalves. Um exemplo entre muito poucos.

O Centro de Arbitragem Comercial da CCIP, presidido pelo advogado António Pinto Leite, fez em 2020 um estudo estatístico sobre as arbitragens de direito público. Esse trabalho, baseado em 88 processos arbitrais em que o Estado foi parte entre 2010 e 2109, concluiu que o Estado só foi condenado em 16 por cento dos valores pedidos contra ele por privados.

Em 85 desses 88 processos, os privados eram portugueses e 78 das arbitragens foram ad hoc, ou seja, não ligadas a qualquer centro de arbitragem institucional. Quanto aos valores, os privados pediam ao Estado nesses processos um valor superior a 3.603.000.000,00 (três mil e seiscentos e três milhões de euros). As condenações do Estado, porém totalizaram o montante global de cerca de €588 259 milhões.

O Estado perde em arbitragem como perde em tribunal. Umas vezes porque não tem razão, outras porque é incumpridor e paga tarde e mal. Outras, porque não sabe defender-se. E noutras por todas essas razões.

A única coisa que parece indesmentível, apesar dos estudos do Centro de António Pinto Leite, é que os tribunais arbitrais tendem a condenar o Estado em montantes muitíssimos avultados. Milionários, mesmo. Coisa que talvez se altere a partir de agora, com a proibição de as partes afastarem a possibilidade de recurso na convenção arbitral, em processos com valor superior a €500 mil.

Basta consultar os poucos processos ad hoc publicados pela DGPJ, embora anonimizados, para

confirmar essa ideia. O depósito 00155/2021, sobre uma subconcessão de uma parceria público-privada rodoviária, que o Expresso sabe tratar-se da Rotas do Algarve Litoral, SA, RAL condena a Infra-estruturas de Portugal, IP, a pagar-lhe imediatamente, a título de providência cautelar, €30 milhões — que já foram pagos, acrescidos de quase um milhão e duzentos mil euros por mês, para cobrir os custos de manutenção da EN 125 até ao final da arbitragem. O pedido total, sabe o Expresso, é de €45 milhões. Os árbitros são Pedro Costa Gonçalves e Paulo Otero, presididos por Luís Laureano Santos.

Outro caso de tribunal ad hoc publicado, 00201/2021, condena uma entidade pública da Madeira a pagar à empreiteira €140 mil mais juros desde 2018.

O terceiro caso condena a parte pública, também do Funchal, a pagar à sociedade empreiteira a soma de €757 mil acrescida de juros.

Consultando a Conta Geral do Estado de 2020, que o Governo já enviou para a Assembleia da República, verificamos que a UTAP (Unidade de Tratamento e Acompanhamento de Projectos), organismo do ministério de Estado e das Finanças que faz o acompanhamento das PPP, contabilizou no ano de 2020 os seguintes encargos com os processos arbitrais das PPP: acção arbitral proposta pela Rotas do Algarve Litoral, SA em 2019, pedindo a rescisão do contracto de subconcessão renegociado e a correspondente indemnização de €445 milhões; pedido de reposição do equilíbrio financeiro da subconcessionária do Baixo Tejo (AEBT) com fundamento na impossibilidade de construção da ER 377-2, quantificado em cerca de €110 milhões; acção administrativa proposta pelos bancos financiadores da RAL no valor de €43 milhões; execução proposta pela ELOS — Ligações de Alta Velocidade, SA, que a CGE contabiliza em €192 milhões, mais juros e custas; no sector da saúde existem três processos arbitrais: Hospital de Loures, no valor de €22,3 milhões; Hospital de Braga, €13 milhões, e Hospital de Cascais, €9,3 milhões. O total geral previsto na Conta Geral do Estado para tribunais arbitrais é de €890 800 milhões.


CORRUPÇÃO? O PIOR É A NORMALIDADE.
Há corrupção em alguns tribunais arbitrais? Claro que sim. E também branqueamento de capitais e fuga ao fisco, entre outros crimes.
Quando as chamadas “obras a mais” nas empreitadas públicas eram obrigatoriamente sujeitas
a visto prévio pelo Tribunal de Contas, no final dos anos 90, passou a constituir-se um número invulgar de tribunais arbitrais. As partes “discordavam”  sempre em certos pontos dos contractos e iam para tribunal arbitral apenas para chegarem a um acordo que era homologado pelo colectivo de árbitros. A decisão era obrigatória e não precisava de ir ao Tribunal de Contas. Simples e rápido. Será que dividiam entre si uma parte desse dinheiro a mais? Cada um saberá de si. Esse comércio, porém, perdeu força quando a lei deixou de obrigar a visto prévio nas obras a mais.

Existem muitos pontos negros na arbitragem administrativa. Outros, são apenas pontos escuros. Por exemplo: se o prazo para pôr uma acção em tribunal é muito curto, estamos a empurrar as pessoas para a arbitragem. E isto acontece muitas vezes na nossa legislação. Mas há muitas outras formas de “utilizar” o tribunal arbitral: basta não contestar o pedido, ou contestá-lo mal. Ou fazer um pedido reconvencional, previamente combinado.

A regra mais usada na decisão das arbitragens administrativas é a seguinte: “Na dúvida, parte ao meio.” Assim, apresentando um pequeno pedido reconvencional, cada parte ganha uma parte, dividem os lucros conforme acordado previamente e vão às suas vidas. A possibilidade de recurso é absolutamente inútil se houver um conluio entre as partes.

Que fazer? Claro que se a gestão (pública) mudar, há riscos e o esquema pode ser descoberto. Mas não há crimes prefeitos.

É preciso coragem para quebrar a regra “na dúvida, parte ao meio”. São raros os árbitros que têm coragem de partir tudo a favor do Estado, por exemplo. Porque a seguir provavelmente, não terão muitas arbitragens para julgar. É o mercado, estúpidos.

Portando, lá está: na dúvida…

Para o branqueamento de capitais os tribunais arbitrais internacionais também podem dar uma

preciosa colaboração. Quantas arbitragens terá feito Isabel dos Santos… ou Joe Berardo? Ou mesmo alguns bancos portugueses em situação difícil. Mas, lá está: as arbitragens privadas são confidenciais, lembram-se? E as administrativas são quase-confidenciais.

Há muitas maneiras de utilizar os tribunais arbitrais apenas para ultrapassar limitações legais. A

dificuldade, muitas vezes verdadeira impossibilidade, de fazer acordos entre Estado e particulares leva, também ela, à criação de inúmeros tribunais arbitrais cujo verdadeiro objectivo é apenas esse: fazer um acordo entre as partes com homologação judicial, que o torne legítimo (e muitas vezes é-o) e vinculativo.

Começámos esta investigação em busca da corrupção nos tribunais arbitrais. Cedo verificámos que o regime existente, a falta de transparência e a promiscuidade transformaram a arbitragem administrativa numa coisa de que os próprios advogados suspeitam. Os mais corajosos admitem: só a publicidade e eventualmente regras próprias podem trazer à arbitragem a credibilidade de que tanto precisa.

Encontrámos um panorama em que a normal legalidade é mais grave do que os eventuais casos criminais que a arbitragem possa comportar. É difícil sintetizar de outra forma: é imperativo que o Estado altere o regime da arbitragem administrativa.


O FUTURO DA ARBITRAGEM ADMINISTRATIVA

O PCP já fez dois projectos de Lei, um deles nesta legislatura, para proibir a arbitragem do Estado. O BE também apresentou o seu. Para a extrema-esquerda, não há outra solução: o Estado e pessoas colectivas públicas devem estar impedidos de recorrer a arbitragens em matéria administrativa e fiscal, furtando-se à Justiça dos seus próprios tribunais.

Lemos os pareceres emitidos pelos vários organismos sobre o projecto dos comunistas. Reflectem bem as organizações que os emitem. A Associação Portuguesa de Arbitragem (APA) considera errados os pressupostos do projecto do PCP: que apenas os tribunais estaduais defendem o interesse público; e que as arbitragens administrativas ou tributárias não oferecem garantias de imparcialidade. Pelo contrário, não cabe nem aos tribunais arbitrais, nem aos tribunais estaduais, defender os interesses do Estado ou de qualquer outra parte. Compete-lhes apenas aplicar a lei e administrar a Justiça, sustenta a APA. Por outro lado, o Estado português encontra-se vinculado internacionalmente por convenções e tratados de investimento com largo número de outros países cuja observância é incompatível com a proibição da proibição do Estado em arbitragens.

O parecer do Conselho Superior da Magistratura em quatro linhas informa o parlamento de que quem deve pronunciar-se sobre o projecto, é o Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais.

O parecer da Procuradoria-Geral da República/Ministério Público, depois de dizer que não tem nada a ver com isso, pois trata-se, no fundo, de uma opção política, considera não haver elementos que associem a prática de recurso à arbitragem à prática, ou ao incremento da prática, do crime de corrupção.

Portanto, sendo uma escolha política, não cumpre emitir parecer. E termina: Eis o parecer do Conselho Superior do Ministério Público.

O parecer da Ordem dos Advogados, contra os projectos, dá por garantida a “publicidade” das decisões arbitrais “devidamente expurgadas de quaisquer elementos susceptíveis de identificar a pessoa ou pessoas a que dizem respeito”. Dir-se-ia, que se contentam com pouco.

E, finalmente, a pérola. O Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais considerando que só lhe compete “emitir pareceres sobre as iniciativas legislativas que se relacionem com a jurisdição administrativa e fiscal”. E que o que lhe é pedido é um parecer sobre um projecto sobre uma via alternativa de resolução de litígios (via arbitral), o CSTAF não toma posição mas sempre diz que continua a precisar de recursos humanos materiais e técnicos para que os tribunais desta jurisdição possam exercer cabalmente as competências que legalmente lhes estão conferidas. Kafka puro.

Será só para o PCP e o BE que está tudo mal? Não.

Qualquer alma séria e dedicada à arbitragem administrativa convém, ainda que em off the record, que muita coisa precisa de mudar. As sucessivas condenações do Estado em dezenas de milhões de euros têm de ser repensadas.

O professor Paulo Otero diz que quando, como aconteceu na sequência da crise de 2008, o Estado está a passar uma enorme crise económica e financeira, quando direitos fundamentais de natureza social estão a ser objecto de restrição, de diminuição, pergunta-se: então o direito fundamental à responsabilidade civil do Estado não deve ser, ele também, objecto de limitações, de restrições, em nome da própria colectividade? (in “Responsabilidade Civil Extracontratual das Entidades Públicas”, coordenado por Carla Amado Gomes). No fundo, para este autor não podemos sacrificar o Estado, eventualmente levando-o à falência, para pagamento de indemnizações avultadas, ou avultadíssimas, caso do TGV, para satisfazer o interesse de uma empresa ou de um particular. Muitos administrativistas com quem falámos consideram que a publicidade da sentença arbitral, ou mesmo da audiência, é vital para a credibilização da arbitragem administrativa.

Tiago Serrão, advogado e árbitro, considera que a credibilidade da arbitragem precisa da publicidade.

E lembra que a LAV está pensada para privados. Foi Tiago Serrão o orientador do projecto de regulamentação autónoma de uma lei da arbitragem administrativa voluntaria (LAAV), promovido pelo conselho regional de Lisboa da Ordem dos Advogados. Um caminho que talvez um dia seja seguido.

Para Agostinho Miranda, autor do código deontológico dos árbitros portugueses, o que é preciso para salvar a arbitragem administrativa é credibilidade. Mas com isso salvávamos tudo.


TEXTOS
INÊS SERRA LOPES

investigação realizada através da Bolsa de Investigação
Jornalística da Fundação Calouste Gulbenkian

AS MAGNAS E FUNDAS QUESTÕES DA CICLOVIA, DA MOBILIDADE, DA ENERGIA E ESSAS COISAS ASSIM.

HÁ OU NÃO HÁ 200 QUILÓMETROS DE CICLOVIAS EM LISBOA? SEM SABER ISTO NÃO COMPRO UMA BICICLETA, MAS SE SOUBER TAMBÉM NÃO COMPRO.

Uma das coisas que se tornou central na política de Lisboa — e estou em crer que das principais cidades do país (nas aldeias anda-se de bicicleta à falta de melhor) — é a questão das bicicletas. Hoje em dia,a bicicleta tornou-se para a política autárquica o que a política laboral é para o Orçamento do Estado: não tem nada a ver, mas qualquer votação depende disso; qualquer coligação, ainda que pontual, tem de levar isso em conta; e quem não fala do assunto é um labrego do tamanho da légua da Póvoa.

Sendo eu uma pessoa hodierna, e não daqueles que classificam o veículo de duas rodas movido a força de pernas como “o único em que a besta puxa sentado” (o que não deixa de ser verdade), entro na discussão com muita garra, muito querer, lateralizando, triangulando e em profundidade, tal qual um comentador de futebol deve fazer.

Vamos por partes: a bicicleta é amiga do ambiente, dizem-nos.

Pois bem, já tentei ver a página de uma e de outro no Facebook e não cheguei a qualquer conclusão que permita retirar essa  conclusão. Mais: a bicicleta nunca pediu amizade, sequer, ao ambiente. Foi por isso que me perdi no Facebook e estive mais de duas horas a ver a página da professora doutora Raquel Varela, onde descobri que ela tem uma polémica em marcha, ou uma discussão, ou lá o que for, com a não menos professora doutora Fernanda Câncio. No caso da citada Raquel, ela é visiting fellow na Universität Basel; no caso da referida Fernanda, tem um clube de fãs que gostam de “uma cronista de qualidade”. Claro que os fãs gostam de cronistas de qualidade, como caso a doutora fosse cançonetista, como o Toy, o Emanuel ou, vá lá, o Tony Carreira, teria igualmente fãs que gostam de cantores de qualidade.

Voltando ao assunto que aqui me traz — mas, já se sabe, isto de bicicleta vai sempre mais devagar — devo dizer que, não tendo encontrado provas de que as ditas bicicletas sejam amigas do ambiente, embora não tivesse encontrado provas que o neguem (como no caso das dras. Varela e Câncio), decidi entender por mim próprio qual o motivo das ciclovias. E, embora passasse seis horas e um quarto a pensar, não imaginei outra resposta, salvo esta: os autarcas, representantes eleitos de um concelho ou de uma cidade, querem que nós andemos de bicicleta. Andemos para todo o lado, até, no caso de Lisboa, porque 200 quilómetros de ciclovias dá para ir a muito sítio.

Assim sendo, enchem-se as cidades e vilas de ciclovias, e os peões amontoam-se nos passeios, à beira do ataque cardíaco, sempre que passa um tipo com uma trotineta que parece, pela velocidade, o F1 do Lewis Hamilton, e engarrafando os carros, a quem tiraram uma faixa para rodarem. É curioso, até, que os carros parados e engarrafados tenham mais emissões de gases perigosos para o ambiente do que a deslizarem, mas isso será um problema que se resolverá.

Do que não há dúvida, nem sequer metafísica, é que as bicicletas não emitem nenhum gás menos próprio. Nem sequer são como os carros eléctricos, que, apesar de não emitirem gases prejudiciais, gastam imensa energia na mineração e fabricação de pilhas, que, obviamente, é uma coisa não amiga do ambiente. Não é o caso das biclas. Estas não têm na sua produção nada de especial que afecte o planeta. Paradas, tal como os camiões a diesel, não são factor de preocupação para o ambiente. Porém, quando se colocam em andamento, o caso muda de figura. Desde logo porque a ‘besta que puxa sentada’ emite muito mais dióxido de carbono; à medida que pedala vai ficando ofegante e ao fim de 500 metros já arfa. Ora isso aumenta substancialmente a emissão de CO2. Acresce que os seres humanos, tal como todos os animais, são emissores de outros gases com efeito de estufa, como o CH4, mais conhecido por metano e, ainda mais, por palavras e alegorias que não vou escrever aqui, num local onde nada é emitido, salvo bom senso, inteligência, alegria e bastante falta de modéstia.

Tendo isto em conta, é preciso saber se o dr. Moedas, que no início da semana tomou posse como presidente da edilidade da Câmara de Lisboa, se dispõe ou não a completar os 200  quilómetros de ciclovias prometidas pelo seu antecessor; e se na Avenida Almirante Reis, onde mais oposição existiu à colocação das magníficas ciclovias, estas vão continuar, vão ser mudadas ou vão ser retiradas. São problemas fulcrais para Lisboa. Claro que também há a pobreza e a fome, os impostos, a questão do aeroporto, a habitação digna, a reabilitação urbana, mas quem anda de bicicleta pelas ruas já não tem tais problemas.

COMENDADOR MARQUES DE CORREIA

Expresso

VAMOS LÁ FALAR DO SNS

DISSOLVIDA A TASK FORCE, ESPERAM-NOS TEMPOS DIFÍCEIS. O ALMIRANTE DESPIU O CAMUFLADO E IMEDIATAMENTE COMEÇAM A APARECER OS RASGÕES NA TÃO APLAUDIDA COMPETÊNCIA DO MINISTÉRIO DA SAÚDE E DA MINISTRA.

Um homem de 65 anos levou a mãe de 90 a ser vacinada com a terceira dose. A mãe vive com ele, dado o seu estado frágil e idade, mantendo a residência numa capital do interior. Depois de umas  horas na estrada, chegam ao centro de saúde onde a  mãe está inscrita. A segunda dose da vacina foi dada com eficiência, método, rapidez. E a terceira? As coisas tinham mudado. Dentro do centro de saúde reinava a desordem e um amontoado de velhos todos com mais ou menos 90 anos. As marcações não funcionavam, disse uma funcionária, e tinham passado a um regime de open house. Tudo à molhada e fé em Deus. Maldispostos, os funcionários do centro de saúde discutiam e gritavam uns com os outros, também em open house. É provável que estejam exaustos, é provável que nesta altura do ano em que se discutem os aumentos e as prebendas da Função Pública os nervos estejam à flor da pele. E é provável que o Serviço Nacional de Saúde tenha ido ao chão e esteja a funcionar mal, sobrecarregado e descontente, com um catálogo de doenças que não foram tratadas e diagnosticadas a tempo e horas e que o vão mobilizar nos próximos meses ou anos. Mais os reforços. E assim, mãe e filho amanheceram no posto, esperando três horas pela vacina. Bem-vindos ao reforço vacina.

Dissolvida a task force, esperam-nos tempos difíceis.

O almirante despiu o camuflado e imediatamente começam a aparecer os rasgões na tão aplaudida competência do Ministério da Saúde e da ministra

O que foi um triunfo da logística militar e da competência e empenho do vice-almirante Gouveia e Melo em breve se transformará no caos do costume. Não percebi como o Governo conseguiu ficar com louros que não lhe pertencem, nem os da enxurrada final de vacinas que vieram da Europa, mas a especialidade do Governo é esta, ficar com os louros alheios, incluindo os do dinheiro da ‘bazuca’, que nada fez para ter ou merecer a não ser adoecer.

Não é só no reforço que vamos ter problemas.

Em centros de combate à doença, como o IPO de Lisboa, eternamente esquecido ali para os lados da viçosa Praça de Espanha, cheia de jardins onde se respiram os fumos dos carros, foi dito aos doentes, no Verão, que teriam de esperar a vez para serem tratados. O IPO lutava com uma terrível falta de meios e de pessoas. Uma mulher jovem com um cancro da mama teve de esperar várias semanas pela quimioterapia. Quando a iniciou, o tumor tinha crescido muito e teve de sofrer os rigores de um tratamento com doses maiores que lhe provocaram piores efeitos secundários. Não foi a única.

Seria bom recordar aqui a saga do IPO de Lisboa.

Há uns anos, no consulado de José Sócrates, foi-lhe apresentada a ideia de construir junto ao IPO de Lisboa um Maggie Centre. Maggie’s é uma organização inovadora e sem fins lucrativos, fundada por uma escocesa chamada Maggie que morreu de cancro da mama. O centro providencia informação prática e conforto emocional, além de apoio psicológico, moral, financeiro e cuidados não médicos, a doentes com cancro e às famílias. A taxa de sucesso dos Maggie Centres no Reino Unido é brutal e são o modelo do que devia ser o tratamento integrado do cancro. Os fundadores acreditam que um edifício com bom desenho e boa arquitectura é essencial para o conforto e cura dos doentes e há centros desenhados por Frank Gehry, Zaha Hadid e Richard Rogers. Gehry é um dos patronos Maggie’s.

A ideia, tecnicamente sustentada, foi apresentada ao ministro da Saúde da altura, Correia de Campos, que a apresentou a Sócrates. Sócrates gostou da ideia e deu indicações para ser executada. Rapidamente  se provou que o velho IPO de Lisboa não tinha área ou instalações para isso, fornecendo um serviço de excelência com pessoal e equipamento médico de excelência num edifício velho e obsoleto, acanhado. A hotelaria era péssima, estava na hora de reinventar o IPO.

Ao cabo de várias trocas de conversas, convencionou-se que o novo IPO iria para Oeiras, onde Isaltino Morais oferecia os terrenos para a instalação do Instituto e do Maggie Centre e providenciava apoio total da câmara. Estava tudo bem encaminhado até o presidente da Câmara de Lisboa, António Costa, saber da coisa. Não, o IPO não iria para Oeiras, nem para Isaltino, nem para uma câmara do PSD, partido de Isaltino na altura,antes dos problemas judiciais. O IPO ficaria em Lisboa, logo se veria, talvez ali para os lados do Parque da Bela Vista, onde se fazia o Rock in Rio.

Passado tempo, o IPO não chegava, para quê parar aí, o que se iria fazer era um novo hospital central de Lisboa, chamado Hospital de Todos os Santos. Se não me falha a memória, o presidente da Câmara, António Costa, ainda lá foi inaugurar uma primeira pedra, com abundante séquito de cortesãos, jornalistas e câmaras de televisão.

Dizia uma notícia em Fevereiro de 2014: “O presidente da câmara, António Costa, mostrou ser defensor da construção do novo Hospital de Todos os Santos em Marvila, por um lado porque vai permitir integrar a zona oriental na malha urbana da cidade e por outro porque vai ser bem melhor, garante.” Os hospitais da colina de Santana, Capuchos, Santa Marta, Miguel Bombarda e São José seriam desactivados e os terrenos vendidos e usados para condomínios e escritórios privados. No novo hospital, os acessos e tudo, tudo mesmo, seriam “bem melhores”. Do IPO deixou de se falar, a troika andava por aqui. O hospital continuaria em Palhavã. Sócrates sucumbira em 2011.

Com vendas de terrenos, sobretudo os do aeroporto, bem negociados entre António Costa e Miguel Relvas no governo de Passos Coelho, a Câmara de Lisboa enriqueceu e muito. Medina era conhecido por dizer que não sabia o que fazer ao dinheiro.

Estamos em 2021. O novo IPO é uma quimera. São José, vendido muito abaixo do preço do mercado, como os outros hospitais, a uma empresa chamada Estamo, que tem capitais públicos, continua no lugar. Entretanto, nasceu um centro privado de tratamento de cancro, a Fundação Champalimaud.

E mais um hospital privado, o CUF Tejo, ambos de grande qualidade para quem tem seguro. E que seria de nós sem os seguros, como se o SNS pudesse abarcar os cuidados de saúde dos portugueses.

Do novíssimo Hospital de Todos os Santos não se ouve falar, a primeira pedra deve estar com ervas daninhas. A Estamo, da qual ainda menos se ouve falar, e que gere negócios imobiliários, tem hoje por única accionista, desde 2015, a Parpública. Estado, portanto.

Com estas mudanças e confusões quem se arruinou foi Duarte Lima. Tendo acedido a informação privilegiada sobre a construção do novo IPO e Maggie Centre em Oeiras, fartou-se de comprar terrenos na chamada envolvente, com financiamento do BPN, terrenos que não se valorizaram quando Costa vetou a decisão.

Tudo, nesta história bem portuguesa, revela um modo de governar a pátria. O Governo de Costa é mais disto, uma simulação de decisões e fantasias nebulosas acrescentadas pela incompetência dos ministros sobre os quais reina primeiro e absoluto.

P L U M A C A P R I C H O S A

Clara Ferreira Alves - -Expresso

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Anacom – Cadete de Matos

“Estamos todos de acordo que o modelo de leilão que a Anacom inventou é, obviamente, o pior modelo de leilão possível, nunca mais termina e está a provocar um atraso imenso no desenvolvimento do 5G em Portugal”, disse nesta semana António Costa. Mais uma voz que se junta abertamente ao coro que tem alertado para o incompreensível processo do 5G em Portugal, cujos custos podem não ser recuperáveis. O passo dado pelo primeiro-ministro, questionando a origem e necessidade de haver reguladores, é excessivo e perigoso, mas pode um regulador viver acima da obrigação de dar explicações quando um país inteiro o questiona? No caso da Anacom, parece que sim.

- É politica, com as ameaças dos EU? “

https://www.publico.pt/2020/10/01/economia/noticia/eua-endurecem-posicao-5g-huawei-100-proibida-1933618

EUA endurecem posição no 5G: Huawei deve ser 100% proibida

Enviado de Washington a Lisboa frisa que Portugal é livre de escolher qualquer caminho, mas defende que a decisão certa é afastar os chineses de todos os componentes da rede.

1 de Outubro de 2020,

Washington diz que Portugal não precisa de esperar por uma resposta europeia para tomar decisões sobre a participação chinesa na futura rede móvel de quinta geração (5G). Num encontro em Lisboa, nesta quinta-feira, o braço direito do chefe da diplomacia dos EUA, Keith Krach, endureceu o discurso contra a Huawei e sublinhou que Portugal “não tem de esperar" por decisões europeias.”

- É politica, com a pressão chinesa, para adoptar o sistema?

“Polémica 5G: Presidente da República e ministro dos Negócios Estrangeiros desdramatizam e garantem que trabalho está a ser feito”Foi com uma declaração a duas vozes que Presidente da República e MNE responderam na China sobre as pressões e desconfianças sobre o 5G e a Huawei.”

- É incompetência, na construção dos processos, por parte dos gestores?

- É corrupção, na construção dos processos, por parte dos gestores?

MARTA TEMIDO - MINISTRA DA SAÚDE

Mais burocracia, uma espécie de subministério só para o SNS, novos executivos… e zero no que é a resposta real aos problemas da saúde. As medidas aprovadas em Conselho de Ministros para fazer face aos problemas são o oposto do que podia solucionar alguma coisa: maior autonomia, menos entraves, novas contratações, melhores salários e investimento e aproximação ao modo de funcionamento do privado. Como sempre, o governo decidiu sozinho, sem ouvir quem vive os problemas e é afectado pelas decisões. E decidiu mal. Marta Temido pode preparar-se para mais saídas, greves e desistências do SNS – o único ramo da saúde que a ministra acha que deve existir e que deve tutelar.

Uma Agenda contaminada.

Pergunto-me qual será o impacto nas receitas ou despesas públicas das alterações na legislação laboral anunciadas na última reunião do Conselho de Ministros. Em que é que estas questões tornarão o Orçamento mais ou menos merecedor de ser viabilizado no Parlamento?

Estas perguntas surgem-me a propósito daquilo a que assistimos nesta semana, com as negociações entre o governo e os partidos à sua esquerda a desviarem-se das matérias orçamentais para matérias laborais, cuja discussão deveria caber previamente à Concertação Social. A aprovação do Orçamento do Estado transformou-se num autêntico leilão político-partidário focado na legislação laboral.

De facto, o governo deixou-se arrastar para, sob a pressão da viabilização do Orçamento do Estado, aceitar cedências em domínios próprios de outras agendas e que nada têm que ver com os méritos ou os deméritos da sua proposta de Orçamento.

Como resultado, assistimos, na Concertação Social, à pressão do governo para a aprovação das suas propostas no âmbito da Agenda do Trabalho Digno e Valorização dos Jovens no Mercado de Trabalho.

Trata-se de propostas que não tiveram em conta nenhuma das que foram apresentadas pelas organizações empresariais e às quais foram agregadas, à última hora, cedências já publicamente anunciadas, em aproximação às exigências de outros parceiros, que não os sociais.

Muitas destas propostas, ao invés de contribuírem para promover a economia e sustentar a criação de emprego, constituem um sério entrave ao desenvolvimento das actividades económicas, não se coadunam com o contexto de incerteza que ainda vivemos, põem em causa o princípio da liberdade de negociação colectiva, geram mais custos e encargos injustificados para as empresas, põem em causa um mínimo de flexibilidade interna indispensável a uma racional gestão do tempo de trabalho.

As Confederações de Empregadores estavam empenhadas numa discussão séria e equilibrada sobre muitos dos objectivos genericamente enunciados na Agenda, como o combate ao trabalho não declarado, a valorização dos jovens no mercado de trabalho, a promoção da conciliação entre trabalho e vida familiar ou a dinamização da contratação colectiva.Essa discussão foi, nos últimos tempos, contaminada pela questão orçamental, passando a obedecer ao calendário parlamentar e a agendas político-partidárias centradas em questões marginais que nada contribuem para o que nos devia importar neste momento: concretizar reformas para pôr o país a crescer.

Neste quadro, tornou-se inaceitável a validação de uma Agenda claramente hostil à iniciativa privada.

O governo avançou, unilateralmente, com as suas pretensões, incluindo aquelas com que já se tinha comprometido publicamente, mesmo antes de as apresentar à Concertação Social. Desperdiçou-se, assim, uma excelente oportunidade para alavancar uma retoma robusta e sustentável, enfrentando com realismo, mas também com equilíbrio, os desafios que o futuro do trabalho nos reserva.

ANTÓNIO SARAIVA

sábado, 23 de outubro de 2021

O doutor Rendeiro e o Pai Natal

O doutor Rendeiro é a obra de arte mais delicada e valiosa que o mundo político, económico e judicial português criou nas últimas décadas.

Não admira que tenha desaparecido como um quadro falso disfarçado de verdadeiro.mitos anos depois de ter sido uma das crianças-prodígio de Hollywood, Shirley Temple recordou um dos seus dias mais dramáticos: “Deixei de acreditar no Pai Natal quando tinha seis anos. A minha mãe levou- -me a um centro comercial e ele pediu-me um autógrafo”. Estrela do cinema, Shirley Temple era mais conhecida do que o Pai Natal.

Para uma miúda esse foi um choque frontal com a realidade. O doutor João Rendeiro é menos conhecido que o Pai Natal. Mas, evidentemente, é mais conhecido do que o Orçamento de Estado, algo que fica entre o senhor das prendas e o cobrador de fraque. Ele serve como palco de negociações e intrigas entre meia-dúzia de pessoas, enquanto o país assiste impávido e sereno à possível queda do Governo, algo que não desagradaria ao doutor António Costa. Ou à remoção anunciada do doutor Rui Rio.

Porque, no país real, o pão e a gasolina não se dividem: ficam apenas mais caros.

Já que o Governo tem da Cultura a noção de que é uma maçada, em vez de a considerar uma indústria fundamental para o desenvolvimento do país, dedicando-lhes uns suculentos 0,25% do OE, o doutor Rendeiro parece um Salvador Dalí dos pobres. Se o Estado deixa cair de podre os seus monumentos ou os trata como lixo, porque é que a senhora Rendeiro não pode perder ou depositar numa garagem uns quadros que valiam uns milhões? A Justiça e o Estado comportaram-se como o verdadeiro Pai Natal do doutor Rendeiro: apesar das dívidas pagam-lhe atempadamente a reforma. Há anos que o Estado pede autógrafos ao doutor Rendeiro.

O alerta geral só soou quando este agarrou no passaporte e evaporou- se como se fosse o mágico David Copperfield. Já não se pergunta que país é este. Mas parece um bananal onde juízes e magistrados não param para ver, para ouvir ou para ler. Para saber o que se passa.

E assim se atira mais uma pedrada à democracia.

Segundo se diz, o doutor Rendeiro, tal como o doutor Joe Berardo, eram amantes da arte. Por isso investiram muito dinheiro nisso, tendo o doutor Rendeiro mesmo a Fundação Ellipse para essa popular actividade. O doutor Berardo conseguiu que a sua colecção de arte aprisionasse o Centro Cultural de Belém e, ao mesmo tempo, não ficasse prisioneira do Estado. Uma obra magnífica. O doutor Rendeiro, que era o preferido da nossa elite porque distribuía dividendos como poucos, ostentava sapiência e bom gosto. Nas sociedades incultas, é assim. Relembro uma entrevista que o doutor Rendeiro deu a Anabela Mota Ribeiro, em 2006. A jornalista elogia o sofá onde está sentada. O doutor Rendeiro responde: “É? Não adormeça. Sabe quem o desenhou? Este foi Corbusier”.

Andará onde este sofá fantástico?

Terão muitos responsáveis

nacionais adormecido nele? Pelos vistos, sim. E nunca lhes passou pelos seus “ neurónios cinzentos”, como diria Poirot, que o doutor Rendeiro tivesse asas para voar?

Bem, nada que importe ao Estado, que enquanto discute uns milhões para dar uma “marca de esquerda” ao OE, nas palavras da doutora Mariana Vieira da Silva, tem lá muitos milhões garantidos para rubricas patrióticas: custos do BPN, por exemplo. Nada que choque alguém que já tenha visto

um filme de Chucky, o boneco assassino.

O estranho caso do doutor Rendeiro é mais interessante.

Porque ele fala-nos da justiça e da sua relação com a arte, as finanças e a política. A arte é rentável. Há três anos um quadro de Banksy foi vendido por 1,2 milhões de euros e nessa altura cortado em pequenas tiras. Um escândalo. O resultado foi agora vendido por 21,25 milhões de euros. Talvez motivado por isso, o despacho da juíza Tânia Loureiro Lopes é eloquente:

“Foi constatada a forte suspeita de existirem objectos que, apesar de aparentarem corresponder aos que foram apreendidos, poderão não ser os originais”. O país rebolou- se no chão porque, afinal, a colecção fora apreendida há 10 anos, mas tinha como fiel depositária a mulher do doutor Rendeiro.

Outras obras julgam-se perdidas.

Nada que não se resolva. A justiça nacional poderia telefonar a alguns investigadores do mundo

da arte que estão em Madrid em busca de um quadro que se julgava perdido de Caravaggio e que vale uns milhões de dólares. Pode ser que os ajudem neste estranho caso policial e judicial. Ou melhor, económico e político.

O doutor Rendeiro é a obra de arte mais delicada e valiosa que o mundo político, económico e judicial português criou nas últimas décadas. Não admira que tenha desaparecido como um quadro falso disfarçado de verdadeiro. Como dizia, na citada entrevista, o doutor Rendeiro: “Tudo passa, a única coisa que fica são as ideias. Os presidentes passam, os presidentes das empresas passam, o que é que fica? Fica um quadro”. E, claro o Pai Natal estatal a pedir autógrafos.

Enquanto cobra impostos aos de sempre. ■Et Cetera

sexta-feira, 22 de outubro de 2021

Esta noite sonhei com Mário Lino. Portugalzito…


Miguel Sousa Tavares

Segunda-feira passada, a meio da tarde, faço a A-6, em direcção a Espanha e na companhia de uma amiga estrangeira; quarta-feira de manhã, refaço o mesmo percurso, em sentido inverso, rumo a Lisboa. Tanto para lá como para cá, é uma auto-estrada luxuosa e fantasma. Em contrapartida, numa breve incursão pela estrada nacional, entre Arraiolos e Borba, vamos encontrar um trânsito cerrado, composto esmagadoramente por camiões de mercadorias espanhóis. Vinda de um país onde as auto-estradas estão sempre cheias, ela está espantada com o que vê:

- É sempre assim, esta auto-estrada?

- Assim, como?

- Deserta, magnífica, sem trânsito?

- É, é sempre assim.

- Todos os dias?

- Todos, menos ao domingo, que sempre tem mais gente.

- Mas, se não há trânsito, porque a fizeram?

- Porque havia dinheiro para gastar dos Fundos Europeus, e porque diziam que o desenvolvimento era isto.

- E têm mais auto-estradas destas?

- Várias e ainda temos outras em construção: só de Lisboa para o Porto, vamos ficar com três. Entre S. Paulo e o Rio de Janeiro, por exemplo, não há nenhuma: só uns quilómetros à saída de S. Paulo e outros à chegada ao Rio. Nós vamos ter três entre o Porto e Lisboa: é a aposta no automóvel, na poupança de energia, nos acordos de Quioto, etc. - respondi, rindo-me.

- E, já agora, porque é que a auto-estrada está deserta e a estrada nacional está cheia de camiões?

- Porque assim não pagam portagem.

- E porque são quase todos espanhóis?

- Vêm trazer-nos comida.

- Mas vocês não têm agricultura?

- Não: a Europa paga-nos para não ter. E os nossos agricultores dizem que produzir não é rentável.

- Mas para os espanhóis é?

- Pelos vistos…

Ela ficou a pensar um pouco e voltou à carga:

- Mas porque não investem antes no comboio?

- Investimos, mas não resultou.

- Não resultou, como?

- Houve aí uns experts que gastaram uma fortuna a modernizar a linha Lisboa-Porto, com comboios pendulares e tudo, mas não resultou.

- Mas porquê?

- Olha, é assim: a maior parte do tempo, o comboio não 'pendula'; e, quando 'pendula', enjoa de morte. Não há sinal de telemóvel nem Internet, não há restaurante, há apenas um bar infecto e, de facto, o único sinal de 'modernidade' foi proibirem de fumar em qualquer espaço do comboio. Por isso, as pessoas preferem ir de carro e a companhia ferroviária do Estado perde centenas de milhões todos os anos.

- E gastaram nisso uma fortuna?

- Gastámos. E a única coisa que se conseguiu foi tirar 25 minutos às três horas e meia que demorava a viagem há cinquenta anos…

- Estás a brincar comigo!

- Não, estou a falar a sério!

- E o que fizeram a esses incompetentes?

- Nada. Ou melhor, agora vão dar-lhes uma nova oportunidade, que é encherem o país de TGV: Porto-Lisboa, Porto-Vigo, Madrid-Lisboa… e ainda há umas ameaças de fazerem outro no Algarve e outro no Centro.

- Mas que tamanho tem Portugal, de cima a baixo?

- Do ponto mais a norte ao ponto mais a sul, 561 km.

Ela ficou a olhar para mim, sem saber se era para acreditar ou não.

- Mas, ao menos, o TGV vai directo de Lisboa ao Porto?

- Não, pára em várias estações: de cima para baixo e se a memória não me falha, pára em Aveiro, para os compensar por não arrancarmos já com o TGV deles para Salamanca; depois, pára em Coimbra para não ofender o prof. Vital Moreira, que é muito importante lá; a seguir, pára numa aldeia chamada Ota, para os compensar por não terem feito lá o novo aeroporto de Lisboa; depois, pára em Alcochete, a sul de Lisboa, onde ficará o futuro aeroporto; e, finalmente, pára em Lisboa, em duas estações.

- Como: então o TGV vem do Norte, ultrapassa Lisboa pelo sul, e depois volta para trás e entra em Lisboa?

- Isso mesmo.

- E como entra em Lisboa?

- Por uma nova ponte que vão fazer.

- Uma ponte ferroviária?

- E rodoviária também: vai trazer mais uns vinte ou trinta mil carros todos os dias para Lisboa.

- Mas isso é o caos, Lisboa já está congestionada de carros!

- Pois é.

- E, então?

- Então, nada. São os especialistas que decidiram assim.

Ela ficou pensativa outra vez. Manifestamente, o assunto estava a fasciná-la.

- E, desculpa lá, esse TGV para Madrid vai ter passageiros? Se a auto-estrada está deserta…

- Não, não vai ter.

- Não vai? Então, vai ser uma ruína!

- Não, é preciso distinguir: para as empresas que o vão construir e para os bancos que o vão capitalizar, vai ser um negócio fantástico! A exploração é que vai ser uma ruína - aliás, já admitida pelo Governo - porque, de facto, nem os especialistas conseguem encontrar passageiros que cheguem para o justificar.

- E quem paga os prejuízos da exploração: as empresas construtoras?

- Naaaão! Quem paga são os contribuintes! Aqui a regra é essa!

- E vocês não despedem o Governo?

- Talvez, mas não serve de muito: quem assinou os acordos para o TGV com Espanha foi a oposição, quando era governo…

- Que país o vosso! Mas qual é o argumento dos governos para fazerem um TGV que já sabem que vai perder dinheiro?

- Dizem que não podemos ficar fora da Rede Europeia de Alta Velocidade.

- O que é isso? Ir em TGV de Lisboa a Helsínquia?

- A Helsínquia, não, porque os países escandinavos não têm TGV.

- Como? Então, os países mais evoluídos da Europa não têm TGV e vocês têm de ter?

- É, dizem que assim entramos mais depressa na modernidade.

Fizemos mais uns quilómetros de deserto rodoviário de luxo, até que ela pareceu lembrar-se de qualquer coisa que tinha ficado para trás:

- E esse novo aeroporto de que falaste, é o quê?

- O novo aeroporto internacional de Lisboa, do lado de lá do rio e a uns 50 quilómetros de Lisboa.

- Mas vocês vão fechar este aeroporto que é um luxo, quase no centro da cidade, e fazer um novo?

- É isso mesmo. Dizem que este está saturado.

- Não me pareceu nada…

- Porque não está: cada vez tem menos voos e só este ano a TAP vai cancelar cerca de 20.000. O que está a crescer são os voos das low-cost, que, aliás, estão a liquidar a TAP.

- Mas, então, porque não fazem como se faz em todo o lado, que é deixar as companhias de linha no aeroporto principal e chutar as low-cost para um pequeno aeroporto de periferia? Não têm nenhum disponível?

- Temos vários. Mas os especialistas dizem que o novo aeroporto vai ser um hub ibérico, fazendo a trasfega de todos os voos da América do Sul para a Europa: um sucesso garantido.

- E tu acreditas nisso?

- Eu acredito em tudo e não acredito em nada. Olha ali ao fundo: sabes o que é aquilo?

- Um lago enorme! Extraordinário!

- Não: é a barragem de Alqueva, a maior da Europa.

- Ena! Deve produzir energia para meio país!

- Praticamente zero.

- A sério? Mas, ao menos, não vos faltará água para beber!

- A água não é potável: já vem contaminada de Espanha.

- Já não sei se estás a gozar comigo ou não, mas, se não serve para beber, serve para regar - ou nem isso?

- Servir, serve, mas vai demorar vinte ou mais anos até instalarem o perímetro de rega, porque, como te disse, aqui acredita-se que a agricultura não tem futuro: antes, porque não havia água; agora, porque há água a mais.

- Estás a dizer-me que fizeram a maior barragem da Europa e não serve para nada?

- Vai servir para regar campos de golfe e urbanizações turísticas, que é o que nós fazemos mais e melhor.

Apesar do sol de frente, impiedoso, ela tirou os óculos escuros e virou-se para me olhar bem de frente:

- Desculpa lá a última pergunta: vocês são doidos ou são ricos?

- Antes, éramos só doidos e fizemos algumas coisas notáveis por esse mundo fora; depois, disseram-nos que afinal éramos ricos e desatámos a fazer todas as asneiras possíveis cá dentro; em breve, voltaremos a ser pobres e enlouqueceremos de vez.

Ela voltou a colocar os óculos de sol e a recostar-se para trás no assento. E suspirou:

- Bem, uma coisa posso dizer: há poucos países tão agradáveis para viajar como Portugal! Olha-me só para esta auto-estrada sem ninguém!