Talvez nenhumas relações das pessoas consigo mesmas e com os outros sejam tão complexas de gerir e tão reveladoras como aquelas que elas estabelecem com o dinheiro. O dinheiro desvenda caracteres e personalidades, exibe sem disfarces o fundamental da educação que se teve e dos valores em que se acredita e, quando a tentação do seu brilho fatal escava uma superfície mal polida de cobertura social, destrói casais, afasta irmãos, estilhaça famílias, espalha o ódio e a inveja onde antes reinava uma harmonia, talvez pobre, mas pacífica.
Mas depois o dinheiro sobe à cidade e corrompe os incorruptíveis, determina as ideologias, contamina a política, favorece a demagogia, aldraba eleições e vicia a concorrência — no mundo político, empresarial, cultural.
Certos povos do Norte, de tradição luterana, temem o dinheiro e o seu poder nefasto sobre as frágeis almas humanas. Desconfiam das grandes fortunas, taxam-nas com impostos, perseguem-nas com uma crítica social sempre latente que as faz serem grandes mecenas de hospitais, universidades, orquestras, centros de investigação. Mas, depois disso, não as invejam, porque elas — as grandes empresas, as grandes fortunas — cumpriram a sua função de pay back à sociedade. Foi isto que Olaf Palme quis explicar a Otelo quando este lhe disse que o objectivo do 25 de Abril era acabar com os ricos : “Ah, curioso, aqui, nós queremos é acabar com os pobres.” Mas ai dos ricos desses países do Norte que se atrevam a fugir ao Fisco, a refugiar- -se em offshores, a serem empresários como um Jeff Bezos, sempre a tentar pagar o mínimo de impostos e o mínimo de salários e a descontar no salário o tempo que os empregados gastam a ir à casa de banho.
Um tipo assim não é um empresário de respeito, por mais Amazons que faça, é alguém com um grave defeito de carácter. Mas ai também de alguém que, ao leme do Governo, não demonstre um respeito absoluto pela gestão dos dinheiros públicos, arrecadados aos contribuin tes. A esta filosofia de vida em socie dade chama-se social-democracia, uma coisa de que muitos se reclamam e invocam, mas que só existe lá, por terras do Norte da Europa, e que, por alguma estúpida razão, fez deles os países mais prósperos e mais justos do planeta Terra.
Pelo contrário, aqui, no Sul do mesmo continente, existem povos e países que olham para as formas de organização da vida em sociedade de maneira completamente diferente. É talvez verdade que pensamos e reflectimos e escrevemos muito mais do que eles sobre estas coisas e isso impede-nos de, ao fim e ao cabo, chegarmos a conclusões tão simples ou lineares como as deles — ou mesmo, deleite máximo, de chegarmos a conclusão alguma. Desde a Grécia Antiga, passando por Roma, pelos árabes, pelo Renascimento, pelos filósofos alemães, pela Revolução Francesa e pelas Luzes, foram tantas as escolas de pensamento que nunca nada se tornou claro. Até que, por comodidade ou cobardia, nos conformámos com a doutrina da Santa Madre Igreja: Deus, cujo reino não é desta Terra, fez o mundo com pobres e ricos e só no outro mundo administrará a sua divina justiça. Eis um conforto de alma que a todos serviria e do qual nasceu essa nefasta palavra “caridade”, adequada justificação de toda a injustiça terrena e que levou Victor Hugo a escrever: “Declaro que haverá sempre pobres e ricos, mas não é necessário que haja miseráveis.”
E é disso que se trata: enquanto aqui quisemos acabar com os ricos, lá no Norte quiseram, e conseguiram, acabar com os pobres. Quase 50 anos depois do 25 de Abril e depois de dezenas de milhares de milhões de euros dados pelos tipos a quem Otelo queria vender a revolução portuguesa, um quinto da nossa população — dois milhões — é ainda pobre. Gastámos todo esse dinheiro, endividámo-nos como ninguém mais, e, sim, conseguimos acabar com os ricos, mas não conseguimos acabar com os pobres. É obra!
Agora, importamos ricos, a quem vendemos a paisagem, e importamos miseráveis para trabalharem naquilo a que chamam a “agricultura moderna”. E exportamos os frutos exóticos desta, alguns sapatos, têxteis disfarçados de made in Italy e os melhores da “geração mais qualificada de sempre”. A indústria química, a construção e reparação naval, a siderurgia, os cimentos, as pescas — tudo isso em que, em tempos de pobreza, éramos ricos - esfumaram- -se, apesar de tantos milhões que nos deram e emprestaram para que se desenvolvessem. A banca, que se tinha modernizado ao ponto de se ter tornado, como nos garantiam, das mais eficientes do mundo, desapareceu de mãos portuguesas, entre escândalos sucessivos e injecções de ajudas públicas sempre a fundo perdido.
Por junto, ficámos reduzidos à nossa velha vocação de Oliveiras da Figueira, que nos levou pelo mundo fora: a de vender mercearias a retalho.
Mas cobrimos o país de centros de congressos, rotundas e uma espessa teia de burocracia, e paulatinamente desmantelámos um sistema ferroviário que demorara séculos a erguer, substituindo-o por auto-estradas para todo o lado. Após o que nos sentámos para olhar para a factura: 135% do PIB de dívida pública, uma das maiores do mundo. Outros ficariam desmoralizados, assustados, pelo menos tentados a pensar onde estará o problema. Nós, não: nós continuamos a acreditar que a fórmula está certa, as circunstâncias é que estão erradas. Vêm aí novos sacos de dinheiros europeus que nos preparamos para gastar da mesma forma de sempre e somos campeões do mundo de uma coisa importantíssima, o futebol de salão. Porquê preocuparmo-nos?
Volto ao princípio para dizer que talvez a maneira como nos relacionamos com o dinheiro tenha que ver com isto. Peguemos em dois exemplos: o fugitivo Rendeiro e o ministro Pedro Nuno Santos. Já tudo, ou quase tudo, foi dito sobre a fuga, “em legítima defesa”, do finório João Rendeiro: a lei processual penal que podia facilmente precaver situações destas, os sinais patentes na própria atitude de sobranceria que sempre foi a dele que deveriam ter alertado os juízes, etc.
Mas nada disso pode fazer esquecer o essen cial: que estamos perante um homem desprovido de honra, de vergonha e de coragem de assumir o que fez. Com uma gestão que os tribunais julgaram criminosa, Rendeiro espatifou o dinheiro que outros lhe tinham confiado, mas nunca se dispôs a pedir desculpa, a pagar-lhes e a enfrentar as consequências dos seus actos. Tratou antes, e obviamente, de preparar o dia seguinte ao juízo final, acautelou o seu pé-de-meia no estrangeiro e, na hora de mostrar de que fibra era feito, pôs-se ao fresco.
Deve achar-se espertíssimo, mas eu não gostaria de ser filho dele.
Pedro Nuno Santos protagonizou uma insólita bravata pública contra o seu colega das Finanças, João Leão, culpado, tal como o seu antecessor, das célebres e bem-aventuradas cativações — sem as quais o déficit e a dívida andariam em roda livre. Na mesma semana em que João Leão lhe soltou mais €1000 milhões para a TAP, Pedro Nuno Santos queixou- -se de ele não fazer o mesmo com a CP, finan ciando o seu sonho da “ferrovia”. Pois, o problema é que andamos a financiar sonhos impossíveis ou flu tuantes há quase 50 anos e o resultado é desastroso: a TAP está endividada em €6000 milhões e a CP em €2000 milhões. É fácil dizer, como o ministro, que “comigo a mandar, o problema já estava resolvido”.
Com o dinheiro dos outros também eu resolvo todos os problemas. Mas com o meu dinheiro, tal como toda a gente, por cada despesa que faço pergunto-me antes como é que vou pagá-la. Até porque, no fim, chega, implacável, a factura das Finanças, que não perdoa atrasos nem juros, e eu não posso e não quero, como o dr. Rendeiro, pedir que ma enviem para o Consulado de Portugal nas Bahamas. Ou que a reenviem para o ministro Pedro Nuno Santos, pedindo- lhe que, se não tem dinheiro para os seus sonhos grandiloquentes, voe mais baixinho.
Miguel Sousa Tavares – Expresso
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