Colonoscopia sem anestesia
João Vieira Pereira – Expresso
Peço desde já desculpa pelo
título, que pode impressionar
alguns. A dureza das
palavras é infinitamente
menor que o desconforto
provocado pelo acto médico,
ao estilo medieval, que me
foi relatado via médicos do Serviço Nacional
de Saúde (SNS). Já se sabe que
a pandemia serviu como adubo para as
listas de espera de consultas e cirurgias.
Para salvar uns condenaram outros.
Aos sortudos são oferecidos maus serviços,
os azarados ficam esquecidos
entre milhares de outros nomes.
O relato vindo de dentro do SNS não
podia ser mais rude. Hoje, depois de
milhões de euros gastos em equipamentos
e tecnologia, os meios de diagnóstico
e tratamento permitem milagres.
Desde, claro, que exista quem
os saiba usar. Garantem-me que há 20
anos, com menor capacidade científica, tratava-se melhor os doentes. A
causa está na crónica falta de médicos.
No caso concreto, de médicos anestesistas,
que sejam capazes de drogar um
paciente para que se possa fazer em
segurança e sem dor um acto médico.
A única solução é oferecer ao paciente
a tal colonoscopia sem anestesia. Não
estamos a falar entre escolher fazer (o
mesmo que escolher o desconforto e a
dor) ou não fazer. Em causa pode estar
a escolha entre a vida e a morte.
Quem tem dinheiro vai ao privado e
engrossa as estatísticas que mostram
que somos um dos países da Europa
onde as famílias mais pagam do próprio
bolso para terem acesso a cuidados
de saúde. Neste indicador estamos
bem acima da tabela, gastando mais do
dobro da média europeia. A falta de
oferta no SNS aumenta gravemente
as desigualdades, principalmente num
país com dois milhões de pessoas em
situação ou risco de pobreza.
Mas porque faltam médicos para
este tipo de actos? A explicação mais
fácil é a de que os médicos fugiram
para o sector privado, que oferece condições
financeiras bastante mais atractivas.
Este argumento financeiro não
é falso, mas é absolutamente redutor.
Primeiro porque também no privado
há falta de médicos, nomeadamente
em algumas especialidades, pelo que
não pode ser a única explicação para
as carências no SNS.
Ao contrário do que defende a Ordem
dos Médicos, há falta de médicos
em Portugal. E haverá sempre falta
enquanto as vagas que forem abertas
no SNS para a contratação de médicos
ficarem por preencher. Neste ponto
concordo com o Governo na necessidade
de restringir, drasticamente,
alguns dos poderes das ordens profissionais,
que preferem funcionar como
centros de lóbi para garantir restrições
no acesso à profissão e assim aumentarem
os benefícios dos seus associados.
As ordens não são eleitas por sufrágio
universal, por isso a sua actuação não
pode condicionar o cidadão.Mas há mais causas para o caos no
SNS. Desde logo a forma como são geridos os hospitais. Um hospital recebe
do Estado fundos de acordo com
actos médicos, por exemplo consultas.
Mas não recebe dinheiro por meios
complementares de diagnóstico. A
dita colonoscopia pedida ao paciente
é apenas custo para o hospital, logo
não existe qualquer tipo de incentivo
por parte da administração hospitalar
em fazê-la ou sequer ter recursos
suficientes para que sejam feitas com
todas as condições. Aliás, se o paciente
a for fazer noutro sítio, no privado,
por exemplo, o hospital na prática até
poupa dinheiro.
E por fim existe uma coisa de funcionamento
sombrio que se chama
Sistema Integrado de Gestão de Inscritos
para Cirurgia (SIGIC). Que nasceu
como uma excelente ideia para tentar
limpar as infindáveis listas de cirurgia
mas que se tornou um monstro
dentro do monstro. É reconhecido
por vários médicos e administradores
hospitalares que os médicos preferem
operar ao abrigo do SIGIC em vez de
fazerem operações em dias normais
de trabalho, pelo simples facto de no primeiro caso receberem um extra
pelo procedimento. Existirá sempre
um incentivo para colocar o maior
número de cirurgias neste regime, o
que pode implicar fazer menos do que
as que deviam ser feitas.
Isto leva ao último ponto. Os salários
dos médicos no SNS são ridiculamente
baixos. Por isso, os médicos
— peço desculpa se a generalização
é injusta — usam todos os procedimentos
que conseguem para ganhar
mais algum. Resolver este problema
não é fácil. É preciso coragem para
enfrentar o lóbi de uma classe poderosa,
é preciso aprender a gerir
hospitais sem estar preocupado com
as pressões desse lóbi, de sindicatos
e ordens profissionais, é preciso
aumentar drasticamente as vagas
para a formação de médicos e com
isso baixar as médias de entrada nas
universidades, é preciso aumentar e
ajustar as vagas para a entrada nas
especialidades, é preciso olhar para
o sector privado como um aliado. E,
claro, é preciso dinheiro.
Numa altura em que se discute mais
um Orçamento do Estado que tem
tudo, na melhor das hipóteses, para ser
mais uma oportunidade perdida, e no
pior caso mais um passo em direcção a
uma economia totalmente dependente
da (má) despesa do Estado, talvez fosse
altura de perguntar o que preferem
pensionistas e funcionários públicos.
Aumentos miseráveis para fingir que
se está a dar alguma coisa ou colonoscopias
com anestesia?
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