segunda-feira, 11 de outubro de 2021

Colonoscopia sem anestesia

João Vieira Pereira – Expresso


Peço desde já desculpa pelo título, que pode impressionar alguns. A dureza das palavras é infinitamente menor que o desconforto provocado pelo acto médico, ao estilo medieval, que me foi relatado via médicos do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Já se sabe que a pandemia serviu como adubo para as listas de espera de consultas e cirurgias.

Para salvar uns condenaram outros.

Aos sortudos são oferecidos maus serviços, os azarados ficam esquecidos entre milhares de outros nomes. O relato vindo de dentro do SNS não podia ser mais rude. Hoje, depois de milhões de euros gastos em equipamentos e tecnologia, os meios de diagnóstico e tratamento permitem milagres.

Desde, claro, que exista quem os saiba usar. Garantem-me que há 20 anos, com menor capacidade científica, tratava-se melhor os doentes. A causa está na crónica falta de médicos.

No caso concreto, de médicos anestesistas, que sejam capazes de drogar um paciente para que se possa fazer em segurança e sem dor um acto médico. A única solução é oferecer ao paciente a tal colonoscopia sem anestesia. Não estamos a falar entre escolher fazer (o mesmo que escolher o desconforto e a dor) ou não fazer. Em causa pode estar a escolha entre a vida e a morte.

Quem tem dinheiro vai ao privado e engrossa as estatísticas que mostram que somos um dos países da Europa onde as famílias mais pagam do próprio bolso para terem acesso a cuidados de saúde. Neste indicador estamos bem acima da tabela, gastando mais do dobro da média europeia. A falta de oferta no SNS aumenta gravemente as desigualdades, principalmente num país com dois milhões de pessoas em situação ou risco de pobreza.

Mas porque faltam médicos para este tipo de actos? A explicação mais fácil é a de que os médicos fugiram para o sector privado, que oferece condições financeiras bastante mais atractivas.

Este argumento financeiro não é falso, mas é absolutamente redutor.

Primeiro porque também no privado há falta de médicos, nomeadamente em algumas especialidades, pelo que não pode ser a única explicação para as carências no SNS.

Ao contrário do que defende a Ordem dos Médicos, há falta de médicos em Portugal. E haverá sempre falta enquanto as vagas que forem abertas no SNS para a contratação de médicos ficarem por preencher. Neste ponto concordo com o Governo na necessidade de restringir, drasticamente, alguns dos poderes das ordens profissionais, que preferem funcionar como centros de lóbi para garantir restrições no acesso à profissão e assim aumentarem os benefícios dos seus associados.

As ordens não são eleitas por sufrágio universal, por isso a sua actuação não pode condicionar o cidadão.Mas há mais causas para o caos no SNS. Desde logo a forma como são geridos os hospitais. Um hospital recebe do Estado fundos de acordo com actos médicos, por exemplo consultas.

Mas não recebe dinheiro por meios complementares de diagnóstico. A dita colonoscopia pedida ao paciente é apenas custo para o hospital, logo não existe qualquer tipo de incentivo por parte da administração hospitalar em fazê-la ou sequer ter recursos suficientes para que sejam feitas com todas as condições. Aliás, se o paciente a for fazer noutro sítio, no privado, por exemplo, o hospital na prática até poupa dinheiro.

E por fim existe uma coisa de funcionamento sombrio que se chama Sistema Integrado de Gestão de Inscritos para Cirurgia (SIGIC). Que nasceu como uma excelente ideia para tentar limpar as infindáveis listas de cirurgia mas que se tornou um monstro dentro do monstro. É reconhecido por vários médicos e administradores hospitalares que os médicos preferem operar ao abrigo do SIGIC em vez de fazerem operações em dias normais de trabalho, pelo simples facto de no primeiro caso receberem um extra pelo procedimento. Existirá sempre um incentivo para colocar o maior número de cirurgias neste regime, o que pode implicar fazer menos do que as que deviam ser feitas.

Isto leva ao último ponto. Os salários dos médicos no SNS são ridiculamente baixos. Por isso, os médicos — peço desculpa se a generalização é injusta — usam todos os procedimentos que conseguem para ganhar mais algum. Resolver este problema não é fácil. É preciso coragem para enfrentar o lóbi de uma classe poderosa, é preciso aprender a gerir hospitais sem estar preocupado com as pressões desse lóbi, de sindicatos e ordens profissionais, é preciso aumentar drasticamente as vagas para a formação de médicos e com isso baixar as médias de entrada nas universidades, é preciso aumentar e ajustar as vagas para a entrada nas especialidades, é preciso olhar para o sector privado como um aliado. E, claro, é preciso dinheiro.

Numa altura em que se discute mais um Orçamento do Estado que tem tudo, na melhor das hipóteses, para ser mais uma oportunidade perdida, e no pior caso mais um passo em direcção a uma economia totalmente dependente da (má) despesa do Estado, talvez fosse altura de perguntar o que preferem pensionistas e funcionários públicos. Aumentos miseráveis para fingir que se está a dar alguma coisa ou colonoscopias com anestesia?

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