Os últimos anos da legislatura parecem ficar marcados pela vontade socialista de alargar o Estado, de aumentar o poder do Governo sobre a sociedade, de consolidar a autoridade das instituições políticas sobre a sociedade civil e de reforçar a presença do sector público na vida privada, seja na economia, na educação, na saúde, na habitação ou na cultura.
A ascensão das esquerdas socialistas dentro do partido é uma das causas. A existência de vastíssimos recursos financeiros europeus disponíveis para o investimento público é outra. A necessidade de aprofundar as alianças com os partidos ou os eleitores das esquerdas radicais é também uma realidade. O despertar do corporativismo republicano sempre dormente também conta. A volúpia de tantos dirigentes e activistas, descontentes com notícias sobre a ganância dos seus rivais da direita, também pesa neste novo estado de espírito e da nação.
Finalmente, para acolher estas circunstâncias, a velha crença tão socialista e tão republicana no primado do Estado e no papel do sector público como motor do desenvolvimento.
Há já alguns meses que assistimos às primeiras iniciativas ditas do PRR, Plano de Recuperação e Resiliência. Já se pode confirmar que se trata do maior plano de despesa da história do país. E já foi possível verificar que aqueles fundos ou são gastos directamente pelo Governo, ou investidos de acordo com os planos do Governo, ou distribuídos pelo Governo. A decisão, a iniciativa e a acção pertencem ao Governo.
Como se sabe que o Estado não tem actualmente competência técnica e científica suficiente, vai necessitar dos contributos empenhados e muito bem pagos de empresas nacionais e estrangeiras, de faculdades e universidades, de laboratórios e organizações, que, no conjunto, ficarão dependentes do Governo. O sector público e o Estado crescem com este plano. Os sectores privados, civis e académicos, científicos e culturais ficarão muito mais dependentes do Governo. A convicção de que um membro do Governo, um director da Administração, um funcionário público ou um encarregado de missão das autoridades, só por
serem do sector público, são mais competentes, mais leais, mais sérios, mais produtivos, mais responsáveis e mais honestos, é eterna no PS. A certeza de que os funcionários públicos e os organismos do Estado, assim como os membros do Governo, são mais capazes de criar emprego, investir, produzir, gerir e organizar, é inabalável.
Em paralelo, foi aprovada legislação abrindo as portas à censura da informação e da expressão por vias digitais e outras, a exercer por intermédio de instituições públicas em parceria com organismos privados transformados em controladores morais e supervisores da verdade.
Reclamados por alguns académicos e intelectuais, sugeridos por academias, apoiados pela União Europeia e pelo Governo, foram criados mecanismos de monitorização do pensamento e da expressão. Depois do salazarismo e dos dois anos do período dito do “gonçalvismo comunista”, foram estas as piores iniciativas tomadas em Portugal no sentido do controlo do pensamento e da censura da expressão.
Recentemente, a questão das Forças Armadas e da reorganização dos comandos superiores foi outro exemplo do apetite socialista. É verdade que foram os problemas da exoneração e da substituição do chefe de Estado-maior da Armada que ocuparam a atenção de todos. E com razão, dada a infâmia que o Governo preparou. Mas o que realmente sobrou e estava em causa era a tutela do Governo sobre as Forças Armadas. Por outras palavras, a governamentalização das Forças Armadas. Isto é, a certeza de que estas últimas servem em primeira mão e principal instância o Governo do dia. As estruturas dos comandos superiores foram de tal modo redesenhadas, que parecia defender-se apenas uma concentração de poderes no chefe de Estado-maior General. A verdade é que esta era e é uma real camuflagem para uma dependência superior do Ministério e do ministro e para a obediência ao Governo.
A última questão a surgir com fragor no espaço público foi a da revisão do regime de criação e funcionamento das associações profissionais. Isto é, da lei das Ordens (médicos, engenheiros, advogados, farmacêuticos, economistas, arquitectos, biólogos, contabilistas, despachantes, enfermeiros, dentistas, veterinários, solicitadores, revisores oficiais, notários, psicólogos e nutricionistas). É possível que muitos aspectos da nova legislação mereçam atenção e constituam uma actualização necessária dos termos e dos processos de reconhecimento e de exercício de uma profissão.
Como é possível que haja capacidades excessivas de defesa corporativa dos interesses de uma dada profissão? Há seguramente, neste domínio tão impregnado de reminiscências medievais e de mecanismos de “closed shop” ou de “numerus clausus”, situações a corrigir. Mas tenhamos consciência de que o essencial desta legislação, que tresanda a salazarismo e a corporativismo, consiste numa revisão das competências de auto-regulação, de autodisciplina e de parceria entre público e privado, sempre a favor do Estado e do Governo. A inclusão de pessoas de fora da Ordem e da profissão favorece evidentemente as instituições públicas, o Governo em última análise. A inclusão de um novo órgão de supervisão parcialmente composto por pessoas exteriores à Ordem e à profissão tem o mesmo objectivo, o de aumentar as possibilidades de dependência e tutela por parte do Governo. Bem pode o projecto de lei escudar-se atrás da União Europeia, que seria, segundo o próprio texto, quem exigiria estas alterações ao regime legal. Mas só uma pequena parte se explica por essa exigência. O essencial é uma invenção do Governo e do Partido Socialista.
O que mais acontecerá?
Depois da economia, das Forças Armadas, da informação, da cultura e da organização das profissões? Haverá ainda quem esteja interessado em fazer parte de uma sociedade de cidadãos, de homens e mulheres livres e de instituições independentes?
Combinam tão bem a retórica “liberal” da direita e o palavreado “anticorporativo” da esquerda!
Modernização, investimento, desenvolvimento, educação e cultura: sempre o Estado. Na dúvida, a favor do Governo.
António Barreto – Sociólogo
Publico
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