terça-feira, 26 de outubro de 2021

O negócio milionário da JUSTIÇA ARBITRAL do Estado.

Esta é a justiça secreta, opaca, que não se vê, não se conhece, da qual ninguém nos dá conta, que é cara e, sobretudo, que é feita sempre pelos mesmos protagonistas. E através da qual se decide o destino do dinheiro público.

Pensa que são os tribunais comuns, aqueles abertos ao público, com juízes, procuradores, becas, advogados e togas, que julgam os conflitos entre o Estado e as grandes empresas? Ideia tola e ultrapassada. A República Portuguesa está muito à frente: a democracia abriu-se à arbitragem de conflitos públicos e deixou que ela se instalasse confortavelmente. É no recato das faustosas salas das câmaras de comércio e nos luxuosos escritórios das maiores sociedades de advogados que é exercida esta forma de justiça privada, que julga os conflitos longe dos tribunais por onde passa o povo, através de pessoas escolhidas pelas partes, os árbitros, que constituem um tribunal especial exclusivo para o caso, o tribunal arbitral, e

decidem a causa no conforto de poltronas, chá de tília e ar climatizado, longe da rua e do desagradável interesse do público — e quantas vezes longe também do interesse público.

As decisões desses discretos árbitros — e um deles pode ser o seu vizinho do 3º direito — tendem a condenar o Estado em valores muito superiores àqueles a que se assistia nos tribunais judiciais. Em somas verdadeiramente milionárias, que atingem as centenas de milhões de euros. As míseras condenações que os tribunais administrativos atribuíam ficaram enterradas no século XX. Agora pretendemos ser uma democracia adulta: o Estado é condenado em milhões e paga esses milhões. Só que… ao contrário das democracias maduras — nós permitimos que isso seja feito em segredo, sem sindicância e sem controlo. Deixamos que tudo se passe como se o dinheiro do Estado não fosse nosso. Como se não tivéssemos o direito a que a Justiça que se faz sobre o erário público, o nosso dinheiro, fosse pública. E, no fim, pagamos a conta e não nos indignamos.

Diz-se que quando uma pessoa deve um milhão ao banco, essa pessoa tem um problema. Quando alguém deve cem milhões ao banco, o banco tem um problema. Hoje, se uma empresa reclama quinhentos milhões ao Estado num tribunal arbitral qualquer, são os contribuintes que têm um problema.

Este novo paradigma veio para ficar. Trocado em miúdos, é simples: todos os grandes contractos celebrados entre sociedades privadas e o Estado ou entidades públicas contêm duas cláusulas sacramentais: a cláusula arbitral e a cláusula de confidencialidade.

Quando algo corre mal numa parceria público--privada, numa concessão do Estado, num grande contracto com uma entidade pública, as partes — ou seja, o privado que gere o hospital, que é concessionário da auto-estrada ou da barragem, que fez um contracto para fornecer helicópteros, para o saneamento de águas ou para construir escolas — e a empresa, instituto público, autarquia ou departamento que representa o Estado nesse contracto ou concessão, designam cada um o seu árbitro. Pode ser um advogado, um professor de direito, um antigo juiz, um engenheiro, um economista, alguém de confiança, teoricamente com competência técnica para julgar o caso. Estes dois árbitros reúnem e escolhem um terceiro que será o presidente do tribunal arbitral. Os três fazem o regulamento da arbitragem. E num prazo curto decidem a causa, dependendo da prova a produzir e da complexidade do assunto. E quando dizemos curto, é mesmo curto: seis meses, normalmente. No máximo um ano ou, nas causas

realmente complexas, que exigem muitas peritagens e centenas de volumes, dois anos. Maravilhoso, não?

Não. Porque não?

Porque é uma justiça secreta, opaca, que não se vê, não se conhece, da qual ninguém nos dá conta, que é cara e, sobretudo, que é feita sempre pelos mesmos protagonistas, que pertencem aos mesmo escritórios — muitas vezes advogados às segundas, quartas e sextas e árbitros às terças e quintas. Algumas vezes árbitros e advogados convivendo na mesma sociedade de advogados. Outras vezes, alternando nos papéis. É no meio de toda essa potencial promiscuidade e de todo esse segredo que é decidido o destino do dinheiro público, aquele pelo qual os Governos deveriam zelar. E ao qual nós deveríamos poder seguir o rasto.

Como não desconfiar de uma justiça sobre dinheiros públicos que é feita por particulares, de forma confidencial, da qual praticamente não há recurso e que não é conhecida por ninguém? “Obrigar o Estado a pagar não é mais do que obrigar toda a comunidade a pagar. Quando uma entidade pública é condenada, é toda a comunidade que é condenada.

O erário público é uma conta comum a toda a colectividade”, resume Paulo Otero, professor de Direito e árbitro.

Esta reportagem dedica-se às grandes arbitragens internas, aquelas que são feitas no âmbito do Centro de Arbitragem (CA) da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa (CCIP) e das chamadas arbitragens ad hoc, que decorrem de cláusulas arbitrais inseridas nos grandes contractos entre o Estado e privados e que não seguem as regras de nenhum centro de arbitragem (embora muitas delas acabem por usar os serviços profissionais do CA, sediando lá o tribunal arbitral).

Os processos arbitrais, mesmo nos tribunais arbitrais que julgam os grandes conflitos do Estado,

como os que decorrem das Parcerias Público-Privadas (PPP) são confidenciais. Uma forma de Justiça secreta, portanto. Mais à frente descrever-se-á a “publicidade” que desde o ano passado é supostamente obrigatória para as sentenças arbitrais que envolvem o Estado. Supostamente. As decisões arbitrais, verdadeiras sentenças, são vinculativas e geralmente não têm recurso — passaram a tê-lo recentemente, apenas em alguns casos, como veremos. A despesa não precisa de passar no crivo do Tribunal de Contas. E normalmente não é preciso executar a sentença: as partes querem resolver rapidamente o assunto e pagam voluntariamente, sem necessidade de execução e de mais custos.A arbitragem dos conflitos com o Estado é uma justiça muito rápida, em que são decididas indemnizações de centenas de milhões, que criou um mercado de trabalho com honorários nunca sonhados por professores de direito, juízes reformados e outros profissionais liberais, enriquecendo as maiores sociedades de advogados. E, surpresa, é você quem paga a conta!


O SILÊNCIO DO GOVERNO

Esta investigação muito dificilmente podia ser feita sem a colaboração do Estado. Pretendíamos elaborar, pela primeira vez, uma estatística séria sobre os processos arbitrais em que o Estado foi parte nos últimos anos. Era necessário saber quantos processos arbitrais existiram, quais os respectivos valores, quem eram as partes, os árbitros e os advogados do Estado em cada processo, quando terminou cada um deles, quais foram as decisões e a quantas se seguiram acções de anulação da sentença arbitral (até há pouco não existia sequer recurso, a única hipótese era propor em tribunal administrativo uma acção de anulação da decisão, havendo fundamento legal). Pretendíamos obter os números anuais e globais e os nomes dos intervenientes para poder tirar algumas conclusões sobre a forma como essa justiça privada tem funcionado. E sobre quem são os seus protagonistas. E queríamos ter acesso às decisões arbitrais. A todas aquelas dos grandes processos, como o TGV, o Parque Mayer, o Amado-

ra-Sintra, e à imensidão daqueles que se mantêm até hoje na sombra.

Assim, pedimos informações ao Governo. Todas as informações que solicitámos são de interesse público e deveriam ser públicas. Não obtivemos qualquer delas. Pelo menos não através de quem estava, e está, legalmente, obrigado a prestá-las. Uma delas, no âmbito da Defesa Nacional, prende-se com o processo arbitral do litígio quanto aos veículos blindados Pandur, que terminou por acordo homologado pelo tribunal arbitral. Será admissível que um acordo entre as partes sobre o erário público, homologado por qualquer tribunal, judicial ou arbitral, seja secreto? O Ministério da Defesa deixou de atender o telefone após ter recebido todas as questões do Expresso por escrito.

Sendo certo que a maioria dos grandes litígios do Estado decorrem dos contractos das PPP, dirigimo-nos aos ministérios que tutelam a maioria das concessões dessas parcerias: Infra-estruturas e Habitação; Educação e Defesa. A Saúde é um caso à parte porque sendo poucas as parcerias, os processos arbitrais são já mais ou menos conhecidos (caso do Amadora-Sintra e do Hospital de Braga) e na sua maioria já se encontram findos, cremos.Simultaneamente, foi pedida a colaboração do Ministério da Justiça, pois seria apenas natural, dir--se-ia mesmo obrigatório, que a Justiça soubesse a cada momento quantos são os processos arbitrais em que o Estado intervém.

As estatísticas da Justiça, porém, só comportam as pequenas arbitragens tributárias e administrativas do CAAD. As respostas remeteram-nos para legislação que já conhecíamos. Dados sobre os tribunais arbitrais: zero. O ministério de Francisca Van Dunem limitou-se a remeter para o site da Direcção--Geral da Política de Justiça (DGPJ), onde deveriam estar publicadas todas as decisões arbitrais em que é parte o Estado português. Na realidade esse site continha, no final de Abril, 274 decisões arbitrais. Dessas, apenas duas decisões não eram provenientes do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD).

Actualmente, são cinco decisões. Uma é uma arbitragem feita no Centro de Arbitragem Comercial, as outras são quatro arbitragens ad hoc em que eram partes… Na verdade, não podemos saber quem eram:a lei manda suprimir as partes (eles chamam a isso “anonimizar” a sentença) e todas as referências que permitam identificá-las, mesmo tratando-se de sociedades comerciais e de institutos públicos ou departamentos do Estado.


COMO NÃO DESCONFIAR DE UMA JUSTIÇA À PORTA FECHADA?

Os tribunais arbitrais, tal como os tribunais judiciais, estão previstos na nossa Constituição. Mas a mesma Constituição diz expressamente no artigo 206º que as audiências nos tribunais são públicas. O professor Paulo Pinto de Albuquerque, em nota ao art. 209º da lei fundamental afirma que “também as audiências dos tribunais arbitrais são, em princípio, públicas, salvo quando o tribunal decidir o contrário, em despacho fundamentado, para salvaguarda da dignidade das pessoas e da moral pública ou para garantir o seu normal funcionamento”.

Infelizmente, não é esse o entendimento que tem prevalecido. Nem a prática que tem sido seguida.

Bem pelo contrário. A justiça arbitral segue o modelo da Lei da Arbitragem Voluntária (LAV), onde a regra é a confidencialidade — o que é compreensível: as duas grandes vantagens da justiça arbitral para os privados são a rapidez e a confidencialidade E, se na justiça pública a rapidez continua a ser uma vantagem inequívoca, a confidencialidade levanta as maiores reticências.

Na maioria dos países que admitem a arbitragem de Estado — e nem todos o fazem, como é o caso da França, onde o Estado por princípio não pode celebrar cláusulas arbitrais —, esta é pública. E em muitos ordenamentos não é apenas a sentença que é pública, mas também a audiência de julgamento ou mesmo todo o processo arbitral.

Para José Miguel Júdice a publicidade é um non issue (uma não questão). “A lei regula o tema, como o fazem regulamentos e até convenções internacionais e a forma como o fazem parece-me bem. Outra questão é saber se essas normas legais, códigos de conduta e boas práticas são ou não respeitadas…”

Parece que, entre nós, não são respeitadas. Mas também parece que a lei não o regula como os regulamentos e convenções internacionais.

De qualquer forma, esta visão do “embaixador da arbitragem portuguesa” está longe de ser maioritária. Pelo contrário. José Robin de Andrade, que foi presidente da Associação Portuguesa de Arbitragem, considera que “é precisamente pela falta de escrutínio que começa a haver uma má reputação da arbitragem (administrativa)…”

Por cá, para resumir, em 2015 passou a ser obrigatória a publicação das sentenças de arbitragens administrativas. Entretanto, fora publicada em 2019 uma outra alteração ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) que obriga a retirar dessas sentenças todas as referências “pessoais”.

Como de costume, a portaria que a regulamentou ainda demorou mais nove meses. Assim, quando a obrigação de publicação das sentenças arbitrais que vinculam o Estado e os dinheiros públicos entrou em vigor, estas tinham, e têm, de ser truncadas, de forma tal que não se sabe quem são as partes e acaba por não se perceber qual era o contracto público em causa. Mesmo tratando-se de contractos entre sociedades comerciais e entidades públicas ou o próprio Estado. Isto por causa do Regulamento Geral de Protecção de Dados Pessoais que se aplica apenas e exclusivamente a pessoas singulares.

Robin de Andrade defende que assim não se consegue certamente “atingir o controlo público da fundamentação e da justiça das decisões arbitrais, apesar de o mesmo ser essencial para credibilizar a justiça arbitral”. O advogado espera que “o Governo se aperceba rapidamente do erro cometido e clarifique a portaria emitida, tornando claro aquele que é o verdadeiro regime em vigor, a saber que anonimização imposta por lei apenas se reporta às partes que sejam pessoas singulares, e que as pessoas cujos nomes devem ser ocultados são unicamente as pessoas singulares.”

Armindo Ribeiro Mendes, antigo conselheiro do Tribunal Constitucional e actual presidente da comissão nacional da Câmara de Comércio Internacional (CCI), concorda: “Esta alteração desvirtua completamente a regra de 2015 que estabelecia que nas arbitragens administrativas as decisões são publicadas pelo Ministério da Justiça. De 2015 a 2019 nada foi publicado, por não haver regulamentação.

E agora isto…”

A maioria dos académicos consultados considera “uma vergonha” a decisão de anonimizar as sentenças arbitrais do Estado. António Marinho e Pinto foi das primeiras pessoas a chamarem a atenção para os perigos da arbitragem administrativa, tanto como bastonário da Ordem dos Advogados quanto como eurodeputado. “Combati muito a arbitragem. É um retrocesso. Uma forma institucionalizada de delapidar o património público”, diz o advogado. “Não sou contra a arbitragem entre privados. Mas o Estado?

É intuitivamente errado. As pessoas que são obrigadas a ir a tribunal têm direito a uma justiça rápida.

Além disso, as partes não devem pagar os honorários do juiz. Estes devem estar antecipadamente pagos.

É uma regra da democracia.”, diz Marinho e Pinto.

Dir-vos-ão que os desentendimentos em obras públicas já eram sujeitos a arbitragem em Portugal em épocas remotas. E é verdade: eram os “homens bons” quem arbitrava e decidia esses litígios. Mas eram homens bons. E faziam-no em público. Não há nada de sagrado na confidencialidade da arbitragem. Muito mais quando está em causa o dinheiro dos contribuintes. A publicidade afasta, aliás, um dos riscos maiores da arbitragem: a sua utilização para branqueamento de capitais, ou seja, lavagem de dinheiro.


A DEFESA DO ESTADO

A Procuradoria-Geral da República sacudiu a água do capote e, num extenso parecer, o Ministério Público considerou há décadas que não tem competência legal para representar o Estado em tribunais arbitrais. Deixou, assim, as portas escancaradas aos grandes escritórios de advogados. A eles foi sendo entregue a defesa de empresas institutos e entidades públicas. São eles que representam o Estado central, as autarquias, as empresas públicas. São eles que ganham os honorários milionários cobrados nos tribunais arbitrais. “Vale a pena. Olhe que vale!”, dizem os advogados experimentados. Miguel Galvão Teles, grande advogado e árbitro que já não está entre nós, dizia que era contra a arbitragem envolvendo o Estado ou entidades estatais porque o Estado não sabia defender-se e depois sofria estrondosas derrotas.

Nas últimas décadas, o Estado começou a contratar as mesmas grandes sociedades de advogados que defendem os privados. Mas durante muitos anos continuou a ser condenado em valores fabulosos. O que acabou por levar à imposição recente de recurso (de que as partes não podem prescindir) para as condenações acima de €500 mil.

Actualmente, o Ministério Público (MP) é legalmente responsável pelos recursos do Estado nas arbitragens, devendo ser notificado das decisões pelos tribunais arbitrais. Acontece que, com os prazos curtos de recurso e o desconhecimento total dos processos arbitrais, são raríssimos os recursos interpostos pelo MP. Compete-lhe igualmente representar o Estado nas eventuais execuções de sentenças arbitrais. Voltando à tese de Miguel Galvão Teles, se o Estado soubesse defender-se, não precisaria disso.

Larga maioria dos advogados que realizam arbitragens asseguram que o Ministério Público não teria capacidade para assegurar uma (boa) defesa do Estado. Mas a arbitragem não é uma ciência hermética.

Um gabinete especializado na Procuradoria poderia ter criado um grupo de técnicos especializados em arbitragens administrativas. “Bastava” ter alterado a lei. E ter feito com que a Procuradoria-Geral da República compreendesse, naquela altura, como nesta altura o Estado viria a estar, como efectivamente está, na mão dos grandes escritórios de advogados. Narciso Cunha Rodrigues certamente compreendeu os dados da equação. Será que foram os políticos que não os compreenderam?

Mas a questão não está só na defesa do Estado.

Está mais acima. O verdadeiro problema reside no lançamento dos concursos públicos e na redacção dos respectivos contractos. E, logo depois disso, nas alterações contratuais — algumas delas bem-intencionadas (muito poucas, diga-se). Comecemos com um caso exemplar que mostra como a raiz do problema, mesmo provada em tribunal, dificilmente retira o direito à indemnização. Afinal, é o Estado que paga.


REPOSIÇÃO DO EQUILÍBRIO:

O EXEMPLO DE MARCO DE CANAVESES

O município de Marco de Canaveses não ficou atrás dos vizinhos e teve direito ao seu próprio projectfinance. Em parceria público-privada (PPP), pois claro. Esta, decorre no sector das águas e saneamento. Acabou, como tantas, em tribunal arbitral.

Para encurtar uma longa história, as Águas do Marco, SA, empresa do poderoso grupo AGS, concessionária da exploração e gestão do sistema de Abastecimento de Água de Marco de Canaveses, pediu a constituição de um tribunal arbitral requerendo a “reposição do equilíbrio” do contracto de concessão e dos lucros cessantes. O pedido alternativo era de €75 milhões de euros a prazo, ou €32 milhões a pronto. O tribunal arbitral julgou o caso e decidiu:o grupo AGS tinha direito a uma indemnização de €16 milhões.

Porém, no processo ficaram provados factos quase inacreditáveis — que não se percebe como não foram alvo de extracção de certidão para investigação criminal pelo Ministério Público. É o próprio acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (Proc.0682/14, disponível em www.dgsi.pt) que enumera esses factos provados: o Contracto de Concessão tinha muitas cláusulas diferentes do disposto no Caderno de encargos, com benefício para a adjudicatária; o contracto de concessão tinha contida (num dos múltiplos anexos — o Anexo XV “caso base”) a previsão de receitas da concessionária incrementada em mais €112 milhões (+37%) relativamente à proposta do concurso adjudicada; e de mais 50% dos lucros líquidos previstos da adjudicatária; e o Anexo XV (“caso base”) ficou convertido em parte integrante do contracto de concessão para aferir futuros processos de reequilíbrio financeiro do contracto a suportar pelo município; estes números e anexos foram enviados para os serviços da câmara para serem juntos à escritura (por uma notária da câmara que tem o 12º  ano), sem terem sido analisados por alguém da câmara ou sem que deles sequer fosse dado conhecimento a alguém do município (…). Traduzindo, os elementos com base nos quais seriam calculadas, durante todos os anos de vigência do contracto, as receitas e os lucros, foram alterados pela adjudicatária, em seu benefício, sem o conhecimento da Câmara.

Um pedido com conteúdo em tudo semelhante, mas com valor de €110 milhões, feito pelo mesmo grupo AGS contra o município de Barcelos teve um julgamento totalmente diferente: a câmara foi condenada a pagar às Águas de Barcelos o valor total do pedido: €110 milhões.

Apesar de a condenação do Marco ser comparativamente “razoável”, na medida em que a condenação correspondeu apenas a metade do montante mínimo pedido, o município recorreu, defendendo que o contracto era nulo. O recurso, bem feito, continha entre muitos outros um parecer do actual Presidente da República. O Tribunal Central Administrativo do Norte recusou admitir o recurso, mas um recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo, que produziu o acórdão que citámos, alterou a decisão e admitiu o recurso.

Marco de Canaveses tinha tudo para ganhar: a nulidade do contracto estava pendente no tribu-

nal central administrativo e a hipótese de fazer um acordo seria agora por um montante bem inferior ao da condenação de €16 milhões.

Entretanto, há eleições autárquicas e a câmara do Marco de Canaveses muda de mãos. O PS ganha e resolve mudar de advogados: chama a sociedade e advogados que perdera totalmente o processo arbitral semelhante da mesma AGS, contra o município de Barcelos, e pede-lhe que passe a representar o município de Marco de Canaveses no processo, que se encontrava praticamente findo, através de um contracto no valor de €240 mil.


O ESTADO PERDE SEMPRE:

VERDADE OU MITO URBANO?

O Estado não perde sempre. Quer dizer, não perde sempre tudo. Embora nos tribunais arbitrais, como nos outros, a sucumbência (percentagem do pedido em que a parte é condenada) seja muito variável, há até alguns casos, raríssimos, em que o Estado ganhou 100% contra particulares.Um desses raros processos data de 2017. O Estado litigava contra o Hospital de Loures. Os árbitros foram Tiago Duarte, pelo Hospital de Loures (com voto de vencido), Paulo Otero, pelo Estado e como árbitro-presidente Pedro Costa Gonçalves. Um exemplo entre muito poucos.

O Centro de Arbitragem Comercial da CCIP, presidido pelo advogado António Pinto Leite, fez em 2020 um estudo estatístico sobre as arbitragens de direito público. Esse trabalho, baseado em 88 processos arbitrais em que o Estado foi parte entre 2010 e 2109, concluiu que o Estado só foi condenado em 16 por cento dos valores pedidos contra ele por privados.

Em 85 desses 88 processos, os privados eram portugueses e 78 das arbitragens foram ad hoc, ou seja, não ligadas a qualquer centro de arbitragem institucional. Quanto aos valores, os privados pediam ao Estado nesses processos um valor superior a 3.603.000.000,00 (três mil e seiscentos e três milhões de euros). As condenações do Estado, porém totalizaram o montante global de cerca de €588 259 milhões.

O Estado perde em arbitragem como perde em tribunal. Umas vezes porque não tem razão, outras porque é incumpridor e paga tarde e mal. Outras, porque não sabe defender-se. E noutras por todas essas razões.

A única coisa que parece indesmentível, apesar dos estudos do Centro de António Pinto Leite, é que os tribunais arbitrais tendem a condenar o Estado em montantes muitíssimos avultados. Milionários, mesmo. Coisa que talvez se altere a partir de agora, com a proibição de as partes afastarem a possibilidade de recurso na convenção arbitral, em processos com valor superior a €500 mil.

Basta consultar os poucos processos ad hoc publicados pela DGPJ, embora anonimizados, para

confirmar essa ideia. O depósito 00155/2021, sobre uma subconcessão de uma parceria público-privada rodoviária, que o Expresso sabe tratar-se da Rotas do Algarve Litoral, SA, RAL condena a Infra-estruturas de Portugal, IP, a pagar-lhe imediatamente, a título de providência cautelar, €30 milhões — que já foram pagos, acrescidos de quase um milhão e duzentos mil euros por mês, para cobrir os custos de manutenção da EN 125 até ao final da arbitragem. O pedido total, sabe o Expresso, é de €45 milhões. Os árbitros são Pedro Costa Gonçalves e Paulo Otero, presididos por Luís Laureano Santos.

Outro caso de tribunal ad hoc publicado, 00201/2021, condena uma entidade pública da Madeira a pagar à empreiteira €140 mil mais juros desde 2018.

O terceiro caso condena a parte pública, também do Funchal, a pagar à sociedade empreiteira a soma de €757 mil acrescida de juros.

Consultando a Conta Geral do Estado de 2020, que o Governo já enviou para a Assembleia da República, verificamos que a UTAP (Unidade de Tratamento e Acompanhamento de Projectos), organismo do ministério de Estado e das Finanças que faz o acompanhamento das PPP, contabilizou no ano de 2020 os seguintes encargos com os processos arbitrais das PPP: acção arbitral proposta pela Rotas do Algarve Litoral, SA em 2019, pedindo a rescisão do contracto de subconcessão renegociado e a correspondente indemnização de €445 milhões; pedido de reposição do equilíbrio financeiro da subconcessionária do Baixo Tejo (AEBT) com fundamento na impossibilidade de construção da ER 377-2, quantificado em cerca de €110 milhões; acção administrativa proposta pelos bancos financiadores da RAL no valor de €43 milhões; execução proposta pela ELOS — Ligações de Alta Velocidade, SA, que a CGE contabiliza em €192 milhões, mais juros e custas; no sector da saúde existem três processos arbitrais: Hospital de Loures, no valor de €22,3 milhões; Hospital de Braga, €13 milhões, e Hospital de Cascais, €9,3 milhões. O total geral previsto na Conta Geral do Estado para tribunais arbitrais é de €890 800 milhões.


CORRUPÇÃO? O PIOR É A NORMALIDADE.
Há corrupção em alguns tribunais arbitrais? Claro que sim. E também branqueamento de capitais e fuga ao fisco, entre outros crimes.
Quando as chamadas “obras a mais” nas empreitadas públicas eram obrigatoriamente sujeitas
a visto prévio pelo Tribunal de Contas, no final dos anos 90, passou a constituir-se um número invulgar de tribunais arbitrais. As partes “discordavam”  sempre em certos pontos dos contractos e iam para tribunal arbitral apenas para chegarem a um acordo que era homologado pelo colectivo de árbitros. A decisão era obrigatória e não precisava de ir ao Tribunal de Contas. Simples e rápido. Será que dividiam entre si uma parte desse dinheiro a mais? Cada um saberá de si. Esse comércio, porém, perdeu força quando a lei deixou de obrigar a visto prévio nas obras a mais.

Existem muitos pontos negros na arbitragem administrativa. Outros, são apenas pontos escuros. Por exemplo: se o prazo para pôr uma acção em tribunal é muito curto, estamos a empurrar as pessoas para a arbitragem. E isto acontece muitas vezes na nossa legislação. Mas há muitas outras formas de “utilizar” o tribunal arbitral: basta não contestar o pedido, ou contestá-lo mal. Ou fazer um pedido reconvencional, previamente combinado.

A regra mais usada na decisão das arbitragens administrativas é a seguinte: “Na dúvida, parte ao meio.” Assim, apresentando um pequeno pedido reconvencional, cada parte ganha uma parte, dividem os lucros conforme acordado previamente e vão às suas vidas. A possibilidade de recurso é absolutamente inútil se houver um conluio entre as partes.

Que fazer? Claro que se a gestão (pública) mudar, há riscos e o esquema pode ser descoberto. Mas não há crimes prefeitos.

É preciso coragem para quebrar a regra “na dúvida, parte ao meio”. São raros os árbitros que têm coragem de partir tudo a favor do Estado, por exemplo. Porque a seguir provavelmente, não terão muitas arbitragens para julgar. É o mercado, estúpidos.

Portando, lá está: na dúvida…

Para o branqueamento de capitais os tribunais arbitrais internacionais também podem dar uma

preciosa colaboração. Quantas arbitragens terá feito Isabel dos Santos… ou Joe Berardo? Ou mesmo alguns bancos portugueses em situação difícil. Mas, lá está: as arbitragens privadas são confidenciais, lembram-se? E as administrativas são quase-confidenciais.

Há muitas maneiras de utilizar os tribunais arbitrais apenas para ultrapassar limitações legais. A

dificuldade, muitas vezes verdadeira impossibilidade, de fazer acordos entre Estado e particulares leva, também ela, à criação de inúmeros tribunais arbitrais cujo verdadeiro objectivo é apenas esse: fazer um acordo entre as partes com homologação judicial, que o torne legítimo (e muitas vezes é-o) e vinculativo.

Começámos esta investigação em busca da corrupção nos tribunais arbitrais. Cedo verificámos que o regime existente, a falta de transparência e a promiscuidade transformaram a arbitragem administrativa numa coisa de que os próprios advogados suspeitam. Os mais corajosos admitem: só a publicidade e eventualmente regras próprias podem trazer à arbitragem a credibilidade de que tanto precisa.

Encontrámos um panorama em que a normal legalidade é mais grave do que os eventuais casos criminais que a arbitragem possa comportar. É difícil sintetizar de outra forma: é imperativo que o Estado altere o regime da arbitragem administrativa.


O FUTURO DA ARBITRAGEM ADMINISTRATIVA

O PCP já fez dois projectos de Lei, um deles nesta legislatura, para proibir a arbitragem do Estado. O BE também apresentou o seu. Para a extrema-esquerda, não há outra solução: o Estado e pessoas colectivas públicas devem estar impedidos de recorrer a arbitragens em matéria administrativa e fiscal, furtando-se à Justiça dos seus próprios tribunais.

Lemos os pareceres emitidos pelos vários organismos sobre o projecto dos comunistas. Reflectem bem as organizações que os emitem. A Associação Portuguesa de Arbitragem (APA) considera errados os pressupostos do projecto do PCP: que apenas os tribunais estaduais defendem o interesse público; e que as arbitragens administrativas ou tributárias não oferecem garantias de imparcialidade. Pelo contrário, não cabe nem aos tribunais arbitrais, nem aos tribunais estaduais, defender os interesses do Estado ou de qualquer outra parte. Compete-lhes apenas aplicar a lei e administrar a Justiça, sustenta a APA. Por outro lado, o Estado português encontra-se vinculado internacionalmente por convenções e tratados de investimento com largo número de outros países cuja observância é incompatível com a proibição da proibição do Estado em arbitragens.

O parecer do Conselho Superior da Magistratura em quatro linhas informa o parlamento de que quem deve pronunciar-se sobre o projecto, é o Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais.

O parecer da Procuradoria-Geral da República/Ministério Público, depois de dizer que não tem nada a ver com isso, pois trata-se, no fundo, de uma opção política, considera não haver elementos que associem a prática de recurso à arbitragem à prática, ou ao incremento da prática, do crime de corrupção.

Portanto, sendo uma escolha política, não cumpre emitir parecer. E termina: Eis o parecer do Conselho Superior do Ministério Público.

O parecer da Ordem dos Advogados, contra os projectos, dá por garantida a “publicidade” das decisões arbitrais “devidamente expurgadas de quaisquer elementos susceptíveis de identificar a pessoa ou pessoas a que dizem respeito”. Dir-se-ia, que se contentam com pouco.

E, finalmente, a pérola. O Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais considerando que só lhe compete “emitir pareceres sobre as iniciativas legislativas que se relacionem com a jurisdição administrativa e fiscal”. E que o que lhe é pedido é um parecer sobre um projecto sobre uma via alternativa de resolução de litígios (via arbitral), o CSTAF não toma posição mas sempre diz que continua a precisar de recursos humanos materiais e técnicos para que os tribunais desta jurisdição possam exercer cabalmente as competências que legalmente lhes estão conferidas. Kafka puro.

Será só para o PCP e o BE que está tudo mal? Não.

Qualquer alma séria e dedicada à arbitragem administrativa convém, ainda que em off the record, que muita coisa precisa de mudar. As sucessivas condenações do Estado em dezenas de milhões de euros têm de ser repensadas.

O professor Paulo Otero diz que quando, como aconteceu na sequência da crise de 2008, o Estado está a passar uma enorme crise económica e financeira, quando direitos fundamentais de natureza social estão a ser objecto de restrição, de diminuição, pergunta-se: então o direito fundamental à responsabilidade civil do Estado não deve ser, ele também, objecto de limitações, de restrições, em nome da própria colectividade? (in “Responsabilidade Civil Extracontratual das Entidades Públicas”, coordenado por Carla Amado Gomes). No fundo, para este autor não podemos sacrificar o Estado, eventualmente levando-o à falência, para pagamento de indemnizações avultadas, ou avultadíssimas, caso do TGV, para satisfazer o interesse de uma empresa ou de um particular. Muitos administrativistas com quem falámos consideram que a publicidade da sentença arbitral, ou mesmo da audiência, é vital para a credibilização da arbitragem administrativa.

Tiago Serrão, advogado e árbitro, considera que a credibilidade da arbitragem precisa da publicidade.

E lembra que a LAV está pensada para privados. Foi Tiago Serrão o orientador do projecto de regulamentação autónoma de uma lei da arbitragem administrativa voluntaria (LAAV), promovido pelo conselho regional de Lisboa da Ordem dos Advogados. Um caminho que talvez um dia seja seguido.

Para Agostinho Miranda, autor do código deontológico dos árbitros portugueses, o que é preciso para salvar a arbitragem administrativa é credibilidade. Mas com isso salvávamos tudo.


TEXTOS
INÊS SERRA LOPES

investigação realizada através da Bolsa de Investigação
Jornalística da Fundação Calouste Gulbenkian

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