sábado, 23 de outubro de 2021

O doutor Rendeiro e o Pai Natal

O doutor Rendeiro é a obra de arte mais delicada e valiosa que o mundo político, económico e judicial português criou nas últimas décadas.

Não admira que tenha desaparecido como um quadro falso disfarçado de verdadeiro.mitos anos depois de ter sido uma das crianças-prodígio de Hollywood, Shirley Temple recordou um dos seus dias mais dramáticos: “Deixei de acreditar no Pai Natal quando tinha seis anos. A minha mãe levou- -me a um centro comercial e ele pediu-me um autógrafo”. Estrela do cinema, Shirley Temple era mais conhecida do que o Pai Natal.

Para uma miúda esse foi um choque frontal com a realidade. O doutor João Rendeiro é menos conhecido que o Pai Natal. Mas, evidentemente, é mais conhecido do que o Orçamento de Estado, algo que fica entre o senhor das prendas e o cobrador de fraque. Ele serve como palco de negociações e intrigas entre meia-dúzia de pessoas, enquanto o país assiste impávido e sereno à possível queda do Governo, algo que não desagradaria ao doutor António Costa. Ou à remoção anunciada do doutor Rui Rio.

Porque, no país real, o pão e a gasolina não se dividem: ficam apenas mais caros.

Já que o Governo tem da Cultura a noção de que é uma maçada, em vez de a considerar uma indústria fundamental para o desenvolvimento do país, dedicando-lhes uns suculentos 0,25% do OE, o doutor Rendeiro parece um Salvador Dalí dos pobres. Se o Estado deixa cair de podre os seus monumentos ou os trata como lixo, porque é que a senhora Rendeiro não pode perder ou depositar numa garagem uns quadros que valiam uns milhões? A Justiça e o Estado comportaram-se como o verdadeiro Pai Natal do doutor Rendeiro: apesar das dívidas pagam-lhe atempadamente a reforma. Há anos que o Estado pede autógrafos ao doutor Rendeiro.

O alerta geral só soou quando este agarrou no passaporte e evaporou- se como se fosse o mágico David Copperfield. Já não se pergunta que país é este. Mas parece um bananal onde juízes e magistrados não param para ver, para ouvir ou para ler. Para saber o que se passa.

E assim se atira mais uma pedrada à democracia.

Segundo se diz, o doutor Rendeiro, tal como o doutor Joe Berardo, eram amantes da arte. Por isso investiram muito dinheiro nisso, tendo o doutor Rendeiro mesmo a Fundação Ellipse para essa popular actividade. O doutor Berardo conseguiu que a sua colecção de arte aprisionasse o Centro Cultural de Belém e, ao mesmo tempo, não ficasse prisioneira do Estado. Uma obra magnífica. O doutor Rendeiro, que era o preferido da nossa elite porque distribuía dividendos como poucos, ostentava sapiência e bom gosto. Nas sociedades incultas, é assim. Relembro uma entrevista que o doutor Rendeiro deu a Anabela Mota Ribeiro, em 2006. A jornalista elogia o sofá onde está sentada. O doutor Rendeiro responde: “É? Não adormeça. Sabe quem o desenhou? Este foi Corbusier”.

Andará onde este sofá fantástico?

Terão muitos responsáveis

nacionais adormecido nele? Pelos vistos, sim. E nunca lhes passou pelos seus “ neurónios cinzentos”, como diria Poirot, que o doutor Rendeiro tivesse asas para voar?

Bem, nada que importe ao Estado, que enquanto discute uns milhões para dar uma “marca de esquerda” ao OE, nas palavras da doutora Mariana Vieira da Silva, tem lá muitos milhões garantidos para rubricas patrióticas: custos do BPN, por exemplo. Nada que choque alguém que já tenha visto

um filme de Chucky, o boneco assassino.

O estranho caso do doutor Rendeiro é mais interessante.

Porque ele fala-nos da justiça e da sua relação com a arte, as finanças e a política. A arte é rentável. Há três anos um quadro de Banksy foi vendido por 1,2 milhões de euros e nessa altura cortado em pequenas tiras. Um escândalo. O resultado foi agora vendido por 21,25 milhões de euros. Talvez motivado por isso, o despacho da juíza Tânia Loureiro Lopes é eloquente:

“Foi constatada a forte suspeita de existirem objectos que, apesar de aparentarem corresponder aos que foram apreendidos, poderão não ser os originais”. O país rebolou- se no chão porque, afinal, a colecção fora apreendida há 10 anos, mas tinha como fiel depositária a mulher do doutor Rendeiro.

Outras obras julgam-se perdidas.

Nada que não se resolva. A justiça nacional poderia telefonar a alguns investigadores do mundo

da arte que estão em Madrid em busca de um quadro que se julgava perdido de Caravaggio e que vale uns milhões de dólares. Pode ser que os ajudem neste estranho caso policial e judicial. Ou melhor, económico e político.

O doutor Rendeiro é a obra de arte mais delicada e valiosa que o mundo político, económico e judicial português criou nas últimas décadas. Não admira que tenha desaparecido como um quadro falso disfarçado de verdadeiro. Como dizia, na citada entrevista, o doutor Rendeiro: “Tudo passa, a única coisa que fica são as ideias. Os presidentes passam, os presidentes das empresas passam, o que é que fica? Fica um quadro”. E, claro o Pai Natal estatal a pedir autógrafos.

Enquanto cobra impostos aos de sempre. ■Et Cetera

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