O doutor Rendeiro e o Pai Natal
O doutor Rendeiro é a obra de arte mais delicada
e valiosa que o mundo político, económico
e judicial português criou nas últimas décadas.
Não admira que tenha desaparecido
como um quadro falso disfarçado de verdadeiro.mitos anos depois de
ter sido uma das
crianças-prodígio
de Hollywood, Shirley
Temple recordou um dos seus
dias mais dramáticos: “Deixei de
acreditar no Pai Natal quando tinha
seis anos. A minha mãe levou-
-me a um centro comercial e ele
pediu-me um autógrafo”. Estrela
do cinema, Shirley Temple era
mais conhecida do que o Pai Natal.
Para uma miúda esse foi um choque
frontal com a realidade. O
doutor João Rendeiro é menos conhecido
que o Pai Natal. Mas, evidentemente,
é mais conhecido do
que o Orçamento de Estado, algo
que fica entre o senhor das prendas
e o cobrador de fraque. Ele serve
como palco de negociações e intrigas
entre meia-dúzia de pessoas,
enquanto o país assiste impávido e
sereno à possível queda do Governo,
algo que não desagradaria ao
doutor António Costa. Ou à remoção
anunciada do doutor Rui Rio.
Porque, no país real, o pão e a gasolina
não se dividem: ficam apenas
mais caros.
Já que o Governo tem da Cultura
a noção de que é uma maçada, em
vez de a considerar uma indústria
fundamental para o desenvolvimento
do país, dedicando-lhes uns
suculentos 0,25% do OE, o doutor Rendeiro parece um Salvador Dalí
dos pobres. Se o Estado deixa cair
de podre os seus monumentos ou
os trata como lixo, porque é que a
senhora Rendeiro não pode perder
ou depositar numa garagem uns
quadros que valiam uns milhões? A
Justiça e o Estado comportaram-se
como o verdadeiro Pai Natal do
doutor Rendeiro: apesar das dívidas
pagam-lhe atempadamente a
reforma. Há anos que o Estado
pede autógrafos ao doutor Rendeiro.
O alerta geral só soou quando
este agarrou no passaporte e evaporou-
se como se fosse o mágico
David Copperfield. Já não se pergunta
que país é este. Mas parece
um bananal onde juízes e magistrados
não param para ver, para ouvir
ou para ler. Para saber o que se passa.
E assim se atira mais uma pedrada
à democracia.
Segundo se diz, o doutor Rendeiro,
tal como o doutor Joe Berardo,
eram amantes da arte. Por isso
investiram muito dinheiro nisso,
tendo o doutor Rendeiro mesmo a
Fundação Ellipse para essa popular
actividade. O doutor Berardo conseguiu
que a sua colecção de arte
aprisionasse o Centro Cultural de
Belém e, ao mesmo tempo, não ficasse
prisioneira do Estado. Uma
obra magnífica. O doutor Rendeiro,
que era o preferido da nossa elite porque distribuía dividendos
como poucos, ostentava sapiência
e bom gosto. Nas sociedades incultas,
é assim. Relembro uma entrevista
que o doutor Rendeiro deu a
Anabela Mota Ribeiro, em 2006. A
jornalista elogia o sofá onde está
sentada. O doutor Rendeiro responde:
“É? Não adormeça. Sabe
quem o desenhou? Este foi Corbusier”.
Andará onde este sofá fantástico?
Terão muitos responsáveis
nacionais adormecido nele? Pelos
vistos, sim. E nunca lhes passou pelos
seus “ neurónios cinzentos”,
como diria Poirot, que o doutor
Rendeiro tivesse asas para voar?
Bem, nada que importe ao Estado,
que enquanto discute uns milhões
para dar uma “marca de esquerda”
ao OE, nas palavras da
doutora Mariana Vieira da Silva,
tem lá muitos milhões garantidos
para rubricas patrióticas: custos
do BPN, por exemplo. Nada que
choque alguém que já tenha visto
um filme de Chucky, o boneco assassino.
O estranho caso do doutor
Rendeiro é mais interessante.
Porque ele fala-nos da justiça e da
sua relação com a arte, as finanças
e a política. A arte é rentável. Há
três anos um quadro de Banksy foi
vendido por 1,2 milhões de euros
e nessa altura cortado em pequenas
tiras. Um escândalo. O resultado
foi agora vendido por 21,25
milhões de euros. Talvez motivado por isso, o despacho da juíza
Tânia Loureiro Lopes é eloquente:
“Foi constatada a forte suspeita
de existirem objectos que, apesar
de aparentarem corresponder aos
que foram apreendidos, poderão
não ser os originais”. O país rebolou-
se no chão porque, afinal, a
colecção fora apreendida há 10
anos, mas tinha como fiel depositária
a mulher do doutor Rendeiro.
Outras obras julgam-se perdidas.
Nada que não se resolva. A
justiça nacional poderia telefonar
a alguns investigadores do mundo
da arte que estão em Madrid em
busca de um quadro que se julgava perdido de Caravaggio e que vale
uns milhões de dólares. Pode ser
que os ajudem neste estranho caso
policial e judicial. Ou melhor, económico
e político.
O doutor Rendeiro é a obra de
arte mais delicada e valiosa que o
mundo político, económico e judicial
português criou nas últimas
décadas. Não admira que tenha
desaparecido como um quadro
falso disfarçado de verdadeiro.
Como dizia, na citada entrevista, o
doutor Rendeiro: “Tudo passa, a
única coisa que fica são as ideias.
Os presidentes passam, os presidentes
das empresas passam, o que
é que fica? Fica um quadro”. E, claro
o Pai Natal estatal a pedir autógrafos.
Enquanto cobra impostos
aos de sempre. ■Et Cetera
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