Eugénia Galvão Teles
egteles@gmail.com
Expresso
Quando se é notificada
pela “The Lancet”,
uma revista médica
com mais de 100 anos,
de que está na hora de dizer
“corpos com vaginas” em vez
de “mulheres”, justifica-se um
momento de desorientação.
Perante o espernear de muitos
dos corpos assim rebatizados,
apareceu um pedido de desculpas
e uma justificação: a nova
nomenclatura pretende não
deixar de fora quem, tendo órgãos
genitais femininos, não
se identifica como mulher. Em
nome da linguagem inclusiva
das pessoas transgénero e intersexuais,
temos direito a todo
um novo campo lexical para evitar cuidadosamente a palavra
“mulher”. As grávidas são “seres
gestantes” no orçamento
para a saúde norte-americano;
as associações contra o cancro dirigem campanhas aos “indivíduos
com colo do útero”.
“Aquelas cujo nome não pode
ser pronunciado” são sempre as
mulheres. Quem nasceu sob o
signo biológico da masculinidade
parece ter mais que fazer do
que exigir “corpos com pénis”,
“pessoas com próstata” ou “fornecedores
de espermatozoides”.
Esta batalha semântica entre o
mulherio biológico deve estar
a dar jeito ao patriarcado. Não
há como dividir para reinar. Intimados
a tomar posição sobre
a qualificação do colo do útero
como exclusivamente feminino,
os líderes dos partidos ingleses,
todos homens, responderam
“é complicado…”. Escaparam
assim a perguntas incómodas
sobre a representatividade das
mulheres ou a situa ção dos cuidados
médicos para a comunidade
transgénero.
Dizem que esta terminologia
abrangente é libertadora. Pode
ser, mas só com um glossário debaixo
do braço. Quantas portadoras
de um colo do útero estão
realmente cientes desse facto?
Os “seres gestantes” vão mesmo
compreender que são eles os destinatários
de uma verba especial
para combater a mortalidade
infantil nas comunidades mais desfavorecidas norte-americanas,
logo onde a literacia é mais
baixa? Eu própria tive de me concentrar
para perceber que não
podia tomar um medicamento
por não ter sido testado em indivíduos
at-risk from receptive
vaginal sex. E também não garanto
conseguir dar com a ala da
maternidade no hospital quando
a renomearem UCG — Unidade
de Cuidados Gestatórios.
Se o que está em causa é a forma
como a linguagem influen cia
o mundo, o palavreado usado
arrisca-se a transformá-lo num
filme de ficção científica, com
toques pornossádicos e cenas
de terror. Todo ele desumaniza.
Na capa da “The Lancet” temos
uma boneca insuflável de carne
e osso à espera de ser retalhada
por um assassino em série ou
pelo médico legista. Os “seres
gestantes” reduzem quem é mãe à sua função reprodutora, uma
boa parideira com ancas adequadas
ao ofício.
A identidade é uma afirmação
individual, mas também algo
que um grupo partilha. É definida
pelo grupo perante os outros
grupos, o que levanta sempre
problemas na demarcação das
fronteiras. Neste momento, as
fronteiras identitárias entre
mulheres e pessoas transgénero
estão a ser policiadas por
seguidores do Humpty Dumpty
no livro “Alice no País das Maravilhas”
— quem grita mais alto
é quem manda e decide o que
se diz.
Dispensar a palavra “mulher”
é abdicar de uma identidade. Se
o objetivo da linguagem inclusiva
é dar visibilidade, o resultado
aqui é um apagão de metade da
Humanidade com uma etiqueta
que serve sempre e não diz nada.
Se queremos mesmo ser inclusivos,
vamos ter de negociar. Talvez
começar por desistir deste
jargão supostamente neutro e
usar a adição em vez da subtração.
Não sei se repararam, mas
dá para dizer “mulheres e todos
os que partilham com elas um
aparelho genital”. Incluindo os
“dois espíritos”, matéria que vou
ter de estudar.
Sem comentários:
Enviar um comentário