quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Corpos com vaginas do mundo inteiro, uni-vos!

Eugénia Galvão Teles
egteles@gmail.com

Expresso

Quando se é notificada pela “The Lancet”, uma revista médica com mais de 100 anos, de que está na hora de dizer “corpos com vaginas” em vez de “mulheres”, justifica-se um momento de desorientação.

Perante o espernear de muitos dos corpos assim rebatizados, apareceu um pedido de desculpas e uma justificação: a nova nomenclatura pretende não deixar de fora quem, tendo órgãos genitais femininos, não se identifica como mulher. Em nome da linguagem inclusiva das pessoas transgénero e intersexuais, temos direito a todo um novo campo lexical para evitar cuidadosamente a palavra “mulher”. As grávidas são “seres gestantes” no orçamento para a saúde norte-americano; as associações contra o cancro dirigem campanhas aos “indivíduos com colo do útero”.

“Aquelas cujo nome não pode ser pronunciado” são sempre as mulheres. Quem nasceu sob o signo biológico da masculinidade parece ter mais que fazer do que exigir “corpos com pénis”, “pessoas com próstata” ou “fornecedores de espermatozoides”.

Esta batalha semântica entre o mulherio biológico deve estar a dar jeito ao patriarcado. Não há como dividir para reinar. Intimados a tomar posição sobre a qualificação do colo do útero como exclusivamente feminino, os líderes dos partidos ingleses, todos homens, responderam “é complicado…”. Escaparam assim a perguntas incómodas sobre a representatividade das mulheres ou a situa ção dos cuidados médicos para a comunidade transgénero.

Dizem que esta terminologia abrangente é libertadora. Pode ser, mas só com um glossário debaixo do braço. Quantas portadoras de um colo do útero estão realmente cientes desse facto?

Os “seres gestantes” vão mesmo compreender que são eles os destinatários de uma verba especial para combater a mortalidade infantil nas comunidades mais desfavorecidas norte-americanas, logo onde a literacia é mais baixa? Eu própria tive de me concentrar para perceber que não podia tomar um medicamento por não ter sido testado em indivíduos at-risk from receptive vaginal sex. E também não garanto conseguir dar com a ala da maternidade no hospital quando a renomearem UCG — Unidade de Cuidados Gestatórios.

Se o que está em causa é a forma como a linguagem influen cia o mundo, o palavreado usado arrisca-se a transformá-lo num filme de ficção científica, com toques pornossádicos e cenas de terror. Todo ele desumaniza.

Na capa da “The Lancet” temos uma boneca insuflável de carne e osso à espera de ser retalhada por um assassino em série ou pelo médico legista. Os “seres gestantes” reduzem quem é mãe à sua função reprodutora, uma boa parideira com ancas adequadas ao ofício.

A identidade é uma afirmação individual, mas também algo que um grupo partilha. É definida pelo grupo perante os outros grupos, o que levanta sempre problemas na demarcação das fronteiras. Neste momento, as fronteiras identitárias entre mulheres e pessoas transgénero estão a ser policiadas por seguidores do Humpty Dumpty no livro “Alice no País das Maravilhas” — quem grita mais alto é quem manda e decide o que se diz.

Dispensar a palavra “mulher” é abdicar de uma identidade. Se o objetivo da linguagem inclusiva é dar visibilidade, o resultado aqui é um apagão de metade da Humanidade com uma etiqueta que serve sempre e não diz nada.

Se queremos mesmo ser inclusivos, vamos ter de negociar. Talvez começar por desistir deste jargão supostamente neutro e usar a adição em vez da subtração.

Não sei se repararam, mas dá para dizer “mulheres e todos os que partilham com elas um aparelho genital”. Incluindo os “dois espíritos”, matéria que vou ter de estudar.

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