Um sistema de horas variáveis não é, à partida, compatível com dispositivos mecânicos como os relógios, que medem o tempo com base em ciclos regulares e constantes.
João Paulo André - 5 de Fevereiro 2025 – 'SOL'
Foi em 1542, com a chegada dos portugueses ao Japão, que os japoneses tiveram o primeiro contacto com a tecnologia ocidental, nomeadamente com armas de fogo, que depressa começaram a produzir. Foi também graças aos portugueses e espanhóis, que lhes apresentaram o relógio mecânico, que a relojoaria se desenvolveu na civilização nipónica, ainda que com alguma resistência inicial, perfeitamente compreensível.
Quando, em 1569, o jesuíta português Luís Fróis, o primeiro cronista europeu do Japão, ofereceu um relógio a Oda Nobunaga – poderoso senhor feudal que dominava grande parte do território japonês –, este recusou, afirmando que, embora desejasse aceitar o presente, seria um desperdício possuí-lo. No Japão, de acordo com o sistema futei jiho, o tempo era medido de forma diferente da ocidental: as horas, em vez de fixas, eram variáveis. O dia era dividido em duas partes, dia e noite, que se subdividiam em seis intervalos, ou horas. No verão, as horas noturnas encurtavam e as diurnas alongavam, enquanto no inverno sucedia o oposto. Por mais peculiar que pareça, também na Europa medieval se usaram horas desiguais, tal como já faziam os antigos egípcios, gregos e romanos.
Como é óbvio, um sistema de horas variáveis não é, à partida, compatível com dispositivos mecânicos como os relógios, que medem o tempo com base em ciclos regulares e constantes. Um relato japonês da época descreve os relógios de ponteiros como «sinos sonoros que, na regulação das horas, não distinguem entre a duração da noite e do dia». No entanto, por mais inúteis que fossem para indicar as horas japonesas, os relógios europeus eram muito apreciados por quem os recebia, pois simbolizavam estatuto social e poder. A lógica subjacente era que até os estrangeiros, vindos de terras distantes, lhes reconheciam autoridade e, por isso, os presenteavam com objetos de valor. Por sua vez, do lado dos jesuítas, tais ofertas a figuras como Oda Nobunaga não eram isentas de interesse, sobretudo porque a sua presença no Japão estava fragilizada. Embora tivessem sido recentemente autorizados a regressar a Quioto, em 1564 tinham sido expulsos da capital pelo Imperador Ogimachi, que temia que a sua crescente influência afetasse a ordem política e social tradicional.
A inutilidade prática dos relógios mecânicos, no entanto, não durou muito, pois os artesãos nipónicos, recorrendo a engenhosos métodos, adaptaram-nos à sua divisão do tempo. Numa das versões, por exemplo, ao sistema de escape – componente que produz o característico 'tic-tac e que regula a libertação gradual de energia da mola, a qual é transformada em movimento do mecanismo – foram adicionados pequenos pesos móveis, permitindo ajustar a frequência do movimento (a maioria dos modernos relógios de pulso tem uma frequência de 4 hertz, ou seja, quatro tic-tacs por segundo).
Durante o Período Edo (1603 – 868), os relógios japoneses ficaram conhecidos como wadokei. Com formato de lanterna, eram feitos de latão ou ferro. O mais impressionante de todos é o Relógio dos Mil Anos (imagem), concluído por Tanaka Hisashige em 1851, após três anos de trabalho. Este genial inventor, frequentemente referido como o 'Edison do Japão', também foi responsável pela primeira locomotiva a vapor e pelo primeiro telégrafo do país.
Integrando a lista do Património da Engenharia Mecânica do Japão, o seu wadokei encontra-se exposto no Museu Nacional da Natureza e da Ciência, em Tóquio. Com 63 cm de altura, 38 kg de peso e mais de mil peças, possui corda para um ano. O seu modo de funcionamento só foi conhecido em 2004, ao ser desmontado para a construção de uma réplica para a Expo 2005. Os seus seis mostradores indicam a hora nos sistemas japonês e ocidental, os períodos do ano solar japonês, os dias da semana, a data no calendário chinês e as fases da lua. Sob uma redoma de vidro, no topo, duas esferas, representando o Sol e a Lua, movem-se sobre um mapa do Japão.
Em 1873, apenas duas décadas após Tanaka ter apresentado a sua obra-prima, o sistema temporal japonês foi abolido e substituído pelo sistema de horas fixas. Contudo, o conceito de tempo encontra-se em constante mudança, apesar do imutável tic-tac (tik-tok, em inglês) dos relógios. Se, no século XIX, o comboio revolucionou a perceção humana do tempo, hoje são fenómenos como as redes sociais – uma delas chamada TikTok! – que lhe conferem uma nova dimensão. Cada vez mais, o tempo é um desfile de micro-momentos fragmentados. A sensação do tempo como algo que, por vezes, se dilata ou comprime, assim como a ideia de ser uma entidade misteriosa que obedece às suas próprias leis, parece estar a desaparecer.
Sem comentários:
Enviar um comentário