domingo, 8 de outubro de 2023

Nuvens sobre Kiev

Depois de um período de relativa confiança, acumulam-se sombras sobre a
Ucrânia. Há sinais dispersos de "fadiga da guerra", na Europa e na
América. Os europeus estão perante um dilema. O desfecho da guerra não é
apenas vital para os ucranianos, é-o também para os europeus. E que pode
a Europa fazer sem os Estados Unidos, de onde vem o mais recente alarme?
O Inverno ucraniano anuncia-se difícil.
As más notícias começam na Europa de Leste. A razão chama-se
eleitoralismo. Houve eleições na Eslováquia, em que o vencedor, o
populista Robert Fico (leia-se Fitso), assumiu uma posição claramente
pró-russa.
Na campanha eleitoral polaca (eleições no dia 15), o partido
governamental, Lei e Justiça, PiS, de Jaroslaw Kaczynski, fez uma
viragem de 180 graus: depois de ter sido o mais activo aliado de Kiev,
muda de posição, critica Zelensky e garante não enviar mais armas para
os vizinhos. Varsóvia não tem armas para mandar – limita-se a reparar
tanques alemães Leopard, avariados na guerra – mas o significado
político é muito pesado. O PiS trava uma luta desesperada para conservar
o poder, recorrendo a todos os meios. Note-se que, nas últimas
sondagens, 61% dos polacos defendem o apoio à Ucrânia. Na Hungria,
Viktor Orbán mantém o seu apoio a Vladimir Putin.
A cimeira surpresa dos ministros dos Negócio Estrangeiros da União
Europeia em Kiev, em 2 de Outubro, teve um alto significado: não haverá
marcha-atrás na solidariedade. Dmytro Kuleba, o ministro ucraniano
sublinhou o futuro: "É um acontecimento histórico porque pela primeira
vez [a UE] se reúne fora das suas fronteiras, mas no interior das
futuras fronteiras da UE." Mas foi notória a ausência de dois ministros,
da Hungria e da Polónia, que mandaram funcionários.
A posição pró-russa de Fico pode ser mais verbal que efectiva. E só em
2024 poderemos ter certezas sobra a posição de Varsóvia: depende do
resultado eleitoral e, feitas as eleições, tudo pode mudar, mesmo se
vencer o PiS. Porquê? A política externa polaca é largamente ditada por
Washington.
Quanto à entrada da Ucrânia na UE, ela continua a ser um paradoxo,
"necessária e impossível". Dois politólogos alemães, LuuK Van Middellar
e Hans Kribbe, resumem-no assim: "Ainda que aos olhos de muitos
europeus, não incluir a Ucrânia e outros países seja inaceitável no
actual contexto geopolítico, as reformas e os sacrifícios que estas
adesões exigiriam à UE podem também aparecer inaceitáveis." Kiev tem
feito reformas mas a posição dominante da Europa é ganhar tempo.
Quem pode confiar na América?
O Presidente Joe Biden tem uma posição determinada em relação à Ucrânia,
mas encontra obstáculos na Câmara dos Representantes, dominada pelos
republicanos. A questão ucraniana, que gozava de um largo consenso
bipartidário, entrou na "guerrillha política" americana. Donald Trump
está a fazer dela arma eleitoral, prometendo que se for eleito "acaba
com a guerra em 24 ou 48 horas".
Biden conseguiu um raro acordo com os republicanos da Câmara para
prolongar por 45 dias o financiamento do Estado, evitando a sua
paralisação. Fez o acordo com o speaker da Câmara, Kevin McCarthy, mas à
custa de suspender a nova tranche de biliões para fornecimento de armas
a Kiev. É um golpe para Zelensky. A seguir, num processo aberrante, um
representante trumpista propôs e conseguiu a destituição de McCarthy,
por "traição" – fazer acordos com os democratas. A Câmara está agora à
deriva. Será preciso esperar por Novembro para saber se há ou não novo
acordo e financiamento para a Ucrânia.
Quem pode confiar nesta América à deriva? Há um consenso bipartidário
sobre a Ucrânia mas que é parasitado pelas hostes trumpistas. Não há
nenhuma vaga de fundo popular contra a ajuda à Ucrânia, mas alguma
"fádica", perante a virulenta campanha do aparelho trumpista e seus media.
"A Europa segue com atenção esta tempestade política que se amplifica na
América [uma crise] perigosa para a Ucrânia", afirma Zelensky. A
perspectiva de um corte da ajuda financeira americana causa pavor na
Europa, pois corresponde a quase metade desses fundos. Calcula-se que a
parte europeia seja hoje de 85 mil milhões de euros, contra 70 dos EUA.
E depois das presidenciais americanas? Conseguirá a América, mesmo com
Biden, manter os compromissos com Kiev? Se os americanos se afastam,
esta guerra tornar-se-á exclusivamente europeia. Ao contrário de
Washington, "a Europa não se pode dar ao luxo de sacrificar a Ucrânia",
escreve no Le Monde a editorialista Sylvie Kauffmann.
Perdida a guerra e 2022, Vladimir Putin apostou num conflito longo para
cansar os apoiantes de Kiev e tentar dividir americanos e europeus. Esta
semana, Washington ofereceu-lhe um presente.
Até sexta-feira.
Jorge Almeida Fernandes
jafernandes@publico.pt

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