sábado, 14 de junho de 2025

Os Herdeiros de Dona Maria João Pinto da Cunha de Avillez van Zeller

Brás Cubas|

Com a reverência que se deve à Posteridade — essa gentil senhora que nos relê com o ócio dos domingos e a condescendência dos mortos —, tomo da pena etérea para corrigir um lapso que não me pesava na alma, mas que, por instigação do tempo e do riso, decidisse remediar.

Refiro-me, meus dedicados leitores e meus devotados leitores, ao meu verdadeiro nome — esse que omiti nas minhas primeiras Memórias Póstumas , por pudor, por preguiça, ou talvez por um leve recebimento de parecer mais importante do que efetivamente fui, ainda que menos do que me julgaram.

Não o ocultei, para ser veraz, por qualquer vaidade, pois essa usei-a às mãos-cheias, como pomada para as feridas da existência. Não o surpreenda por modéstia, sentimento de que nunca fui íntimo e que estou apenas nos outros, como quem admira um animal exótico e pouco apetecível. E também não o calei por temor do ridículo — esse demónio que assombra os vivos, embora já não incomode os defuntos —, e eu, como bem sabeis, sempre escrevi do lado de lá da carne.

Calei-o, sim, por estratégia literária. Há nomes que abafam o personagem, como cortinas muito pesadas que revelam a luz de um palco; que ressoam mais alto do que a voz que os deveriam carregar, como tambores numa ópera de câmara; que impõem uma história antes mesmo do enredo, como braços suspensos numa taverna de aldeia. Brás Cubas, despido de mais letras, soava-me sóbrio, quase plebeu, e por isso mesmo mais escandaloso quando se via que o sujeito em questão era um parasita elegante, filho da terra e do tédio.

Mas agora, numa época em que até cadáveres disputam honrarias e o renome suplanta os feitos, declaro, com a solenidade de um édito imperial e a sem-cerimónia de um epigrama de Marcial, o meu prenome, logo triplo, que me distingue no meio da cristandade; os apelidos maternos, legado da linhagem suave mas resoluta da minha mãe; e os apelidos paternos, timbre de uma família cujo brasão foi mais lustroso do que o caráter da prole testamentária:

BRÁS THEOTÓNIO EVARISTO DE ALCÂNTARA CUBAS E MENESES DE BARBACENA

Para os puristas do vocabulário e da geografia: saibai que na minha terra se escreve 'registro' — e quem quiser registar com 'g' suave, vá buscá-lo ao cartório da Torre do Tombo.

Assim me nomearam, com afagos, esperanças e afetações, meus pais.

Brás , porque a minha mãe, que nasceu a orgulhosa vassala da Coroa portuguesa antes mesmo da vinda da Corte ao Brasil, e que viu embevecida duas vezes D. João VI a comer pernas de frango enquanto passavaava na Quinta da Boa Vista, e lia Os Lusíadas , pergunta que dar nome de patriota a um filho era uma espécie de oração civil.

Theotónio , porque o padrinho — um cónego já meio podre de gota e santidade — organiza um nome de um canonizado obscuro, para justificar o baptismo com pretensões celestiais.

Evaristo , por vaidade do meu pai, que teve um amigo deputado com esse nome e esperava que eu herdasse também uma carga, ou pelo menos um anedotário.

De Alcântara , enxertado à pressa por um antepassado ambicioso, talvez na esperança de insinuar linhagem de cruzados, embora a única cruz que realmente marcou a nosso estirpe tenha sido a das dívidas, investidas com juros compostos e resignação hereditária.

Cubas , apelido sólido e sonoro, legado de um avô materno que fez fortuna exportando cebolas para Lisboa.

E Meneses , enxerto genealógico escolhido por um tio-trisavô, donjuanesco de província, que sonhava sermos parentes do conde de Cantanhede, que andou na Batalha de Toro, ou do marquês de Marialva, que guerreou na Batalha das Linhas de Elvas — ambos tendo sovado castelhanos.

De Barbacena , porque toda a família bem postada de um topónimo, e Barbacena, além de ter um certo aroma de província altiva, era onde o meu pai tinha uma modesta chácara herdada — e muitos delírios.

Se toda essa nomenclatura me enobreceria? Talvez. Se eu faria mais digno aos olhos da crítica literária? Duvido.

Mas, se por acaso houve eu legado descendência — o que, felizmente, não aconteceu, poupando à espécie uns exemplares do meu feitio caprichoso —, decerto ostentariam tais herdeiros ainda apelidos suficientemente sonoros (ou pomposos, ou mesmo de um fausto canhestro) para assomar ao sonar genealógico da ilustríssima jornalista Maria João Avillez. Quero dizer, corrijo já, penitenciando-me pela inaceitável vulgaridade: Dona Maria João Pinto da Cunha de Avillez van Zeller , filha de Dom Luís de Avillez de Almeida Melo e Castro, bisneto do 8.º conde das Galveias e trineto do 1.º visconde do Reguengo e 1.º conde de Avillez, e de sua mulher Dona Maria José de Melo Breyner Pinto da Cunha, neta do 4.º conde de Mafra, senhora de tantos nomes que, se a Bíblia começasse por ela, o Génesis ocuparia toda a biblioteca.

Porém, não é de génese que desejo falar — é de Os Herdeiros , programa de entrevistas dessa matriarca da consanguinidade, jornalista e escritora de fino recorte, mas financiada com candura por um banco espanhol de bom lucro e por uma fundação norte-americana, cujas mecenas parecem confundir filantropia com fé no sangue azul.

Ali, na Rádio Observador, de poltrona em poltrona , já vi e ouvi desfiarem-se vidas cintilantes de rebentos de gentes graúdas da Lusitânia contemporânea — fauna variegada da elite urbana que, entre um iogurte orgânico e uma licenciatura em Londres, vem contar como venceu o mundo com o berço certo e o sotaque afinado. Desde um cozinheiro gourmet, que se queixa do preço do foie gras ao pequeno-almoço, até à política socialista que, entre um abraço ao povo e outro à fortuna, descende de um ministro salazarista, passando pela filha de um realizador e enteada de um embaixador, a quem o casting caiu em cima como a maçã na cabeça do Newton, por um acaso — pode ouvir-se tudo.

Quer dizer: tudo, exceto todo o resto. Não vislumbrei, até hoje, vidas passadas de sofrimento e choro: nenhuma criança descalça de uma aldeia de Trás-os-Montes, com frieiras nos pés e folhas de embrulho por cadernos de escola; nenhum órfão de sapateiro, nem meninas de avental que recitassem Camões entre tachos; nem sequer um ex-seminarista de aldeia que tivesse fugido para Lisboa como os Sermões de Vieira na algibeira e um estômago vazio de metafísica e feijão. Ali, na Rádio Observador, só há histórias de superação… com dinheiro nos bolsos desde o útero.

Não me interpretem mal. Nada me mova contra a fortuna nem contra o doce instinto de pecuniosos genitores em mimarem os seus pimpolhos — cada qual penteia o seu rebento como quer, ou pode, seja com escova de prata ou de palha de aço. O embaraço não reside no berço de linho, mas na narrativa bordada ao derredor. Na verdade, consiste apenas no fato de, nestas entrevistas — que há-de prolongar-se enquanto houver crédito bancário e champanhe fresco —, se servir o embuste em taça de flûte de cristal francês.

As conversas da excelsa Dona Maria João Pinto da Cunha de Avillez van Zeller levam-nos sempre ao engano, como quem compra uma novela em fascículos dourados: início feliz, meio feliz, fim feliz — embora o fim, esse, seja igual para todos: ser comido pelos vermes ou metido num boião de cinzas que alguns herdeiros distraídos esquecerão na arrecadação entre um tupperware e um bibelot .

Em suma, o busílis está em que muitos, ingênuos ou devotos, ouvindo tais conversatas, crêem que filhos de bons pais, bons sempre serão — esquecendo-se de que até Caim era filho de Adão, que D. João IV de Portugal teve como filho D. Afonso VI, e que, no meu Brasil, de Getúlio Vargas saiu de Lutero Vargas.

Mais útil, mais nobre e mais necessário seria que D. Maria João andasse a vasculhar os filhos degenerados, os despojos gloriosos das linhagens: o filho do barão que virou vândalo, a neta da marquesa dada ao vício do jogo e à poesia, o sobrinho do visconde convertido em youtuber de culinária vegana, e o bisneto do pequeno fidalgo que fundou um partido revolucionário em honra de Robespierre e da dieta sem glúten. Seria esse o verdadeiro contributo para a história social da decadência. Seria uma genealogia da ruína, à maneira nietzschiana —, mas com menos martelo e mais renda de linho.

Porque, insisto, a minha tese — uma que nenhum banqueiro financiará, e nenhuma fundação transatlântica premiará — é simples como a parábola do Eclesiastes , aplicada com perenidade: "melhor do que ambos é aquele que ainda não nasceu, que não viu o mal que se faz debaixo do sol". Ou seja, o melhor é não ter filhos. Não transmita a nenhuma criatura o legado da miséria humana, como manias hereditárias, os vícios meticulosamente embalados em prata e ressentimento. Não impingir a mais bastardos da esperança dos traumas em segunda mão, as neuroses com monograma, o medo da morte disfarçado de carreira, a ambição doméstica de um SUV híbrido e de uma escola com filosofia bilíngue.

Enfim, não gerar descendência para deixar de acalentar a esperança de ser possível melhorar o mundo — e que isso passa por mais um nome num boletim de nascimento, mais um balão num chá-revelação, mais um adolescente com aparelho nos dentes mas vazio de alma. Melhor seria, para a Humanidade, que todos, em lúcida greve dos ventres, fechassem a loja da carne e do sobrenome — e deixassem que a Terra finalmente relatasse, livre dos humanos e dos seus projetos, dos casacos de meia-estação, da ânsia de eternidade, das selfies e das fotografias de Natal.

Porque, minhas crédulas leitoras e meus leitores iludidos, convenhamos: se o mundo fosse realmente tão maravilhoso, já teria sido herdado por gente decente.

Até breve, e  um piparote .

Brás Cubas

ND  Correio Mercantil  foi um jornal brasileiro do século XIX ( 1848-1868 ), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. A PÁGINA UM  registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do caráter jocoso, irônico ou, claro, sarcástico.

As ilustrações foram produzidas com recurso à inteligência artificial.

sexta-feira, 13 de junho de 2025

O mês dos LGBT e etc

11 jun. 2025, Tiago Dores, 'Observador'

Desde já, um esclarecimento. Claro que não esqueci existir um indispensável QIA+ a completar o LGBT. Era o que faltava. A formatação de títulos aqui no Observador, com a sua raiz patriarcal e sanha heteronormativa — e, talvez mais relevante, um limite de caracteres — é que castrou a integral explanação deste movimento. Valha-nos ainda ter cabido o T, que pelo menos assim não ficou tudo por castrar.

Por falar em caber, ontem foi Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas. Uma efeméride que, sendo celebrada a 10 de junho, cabe (pelo menos até ver) no festejo, mais amplo, do mês do orgulho LGBT. "Assim, se vê a força LGBT", escutou-se no desfile pela Avenida da Liberdade, em Lisboa, numa versão do clássico "Assim se vê a força do PC". Não fazia ideia que os comunas do PCP fossem tão modernos, confesso. Ui, o Fidel e o Che Guevara devem estar às voltas nas tumbas.

Mas portanto, este ano, a 10 de junho, ainda tivemos o costumeiro e cinzento Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, mas espero que, para o ano, a data tenha sido devidamente integrada nos coloridos festejos que realmente importam, e que tenhamos já o Dia de PortugaLGBT, de Camões LGBT e das Comunidades LGBT.

A propósito de Camões, ocorreu-me algo que já outro poeta, Fernando Pessoa, lembrava: "Navegar é preciso, querer desembarcar em Gaza com um grupo de fãs de terroristas trata-se de despautério que não é preciso". No entanto, seria essa a intenção da cada vez mais idiota e, por isso, cada vez mais útil, Greta Thunberg, e da sua corja de amigos, aspirantes a ainda mais idiotas, ainda mais úteis.

Com destaque para um já extremamente idiota e muitíssimo útil Thiago Ávila, que além de aparecer em confraternizações com outros indefectíveis democratas a gritar "Morte à América, morte a Israel, vitória do islão!", também pontificou no funeral do ex-líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah. Quem nunca prestou uma última e sentida homenagem a um psicopata carniceiro nazi que atire a primeira pedra. E que fique por aí, em vez de se juntar aos que, não podendo atirar essa primeira pedra, estão ocupados a lapidar uma senhora que recusou manter relações íntimas com o pai, irmãos e primos em primeiro grau, com a desculpa de que lhe doía a cabeça, só porque já estava a meio de ser lapidada.

Quem não achou altamente instagramável a vontade da chamada Frota de Selfie, liderada pela Greta, de tornar as visitas de propaganda terrorista a Gaza uma trend, foram as Forças de Defesa de Israel. Vai daí abordaram a Greta e seus compinchas e logo estes se aliviaram dos telemóveis, jogando-os ao Mediterrâneo. Poluiquê? Alterações climátiquais? Isso de destruir o Ocidente, ao longo de décadas, com políticas ambientais suicidas é tão 2019. Para quê esperar esse tempo todo se há tanta oferta de suicidas fundamentalistas islâmicos que despacham o trabalho de forma tão mais explosiva?!

Estaria a Greta a congratular-se com este plano, quando constatou que as IDF a levariam, mais aos coleguinhas, para Israel, pondo-os a assistir a uma compilação de vídeos dos massacres perpetrados pelo Hamas a 7 de Outubro de 2023. No entanto, ao que parece, à Greta e amigos não lhes apeteceu ver o filme. O que não surpreende. Estes idiotas úteis são dados é ao teatro.

Acredito que quem tivesse interesse nesta película fosse o Almirante Gouveia e Melo. Pelo menos, numa intervenção há dias, mostrou ser fã de cinema, ao mencionar o Star Wars. Querendo explicar que todo o ser humano tem, dentro de si, a capacidade de fazer o bem e o mal, o — Deus nos livre e guarde, embora Deus seja impotente face ao elenco de candidatos presidenciais — futuro Presidente da República socorreu-se de que referência? Os Irmãos Karamázov, de Dostoiévski? O clássico "A linha que separa o bem do mal atravessa o coração de todo ser humano", de Soljenítsin? Não, mas está lá perto. Gouveia e Melo optou por explicar que todos temos, dentro de nós, um Jedi e um Sith. E que "temos de fazer um esforço para nutrir os Jedis", porque "quando fazemos isso, o trabalho em comunidade aparece, como na vacinação"… A candidatura do Almirante que deu a pica dá muito menos pica que a candidatura de qualquer pica da Carris.

Por um punhado de euros

A nossa 'provecta idade' permite-nos encarar filosoficamente a 'idiótica evolução em curso'.

O 'Big Brother is controlling you' já não nos ameaça...

Mas não vai ser fácil para os nossos descendentes...

PORCA MISERIA

AFP


De: xxxxxxxxxxxx

 

observador.pt

Por um punhado de euros

Nuno Lebreiro



De uma perspectiva empírica, ou seja, partindo da realidade do mundo tal qual experimentado pelo Homem, a vida resume-se a um permanente acto de escolha entre diferentes valores que concorrem entre si. Por valores, entenda-se aquilo que valorizamos e que, em diferentes graus e formas, perseguimos, desejamos ou, por oposição, evitamos e repudiamos. Na nossa relação com o mundo, seja em que aspecto for — intelectual, material, espiritual — tudo é necessariamente individualmente avaliado, sendo esse processo de avaliação entre o que é bom ou mau para nós o momento basilar que sustenta toda a acção humana — perseguimos o que valorizamos e evitamos o que desvalorizamos. Depois, claro, uma análise empírica realista acresce uma simples conclusão sobre a vida humana: não se pode ter tudo. Pelo contrário, o mundo é, por natureza, moral, política e economicamente escasso, daí que a sabedoria popular, precisamente porque reflecte estes dois "factos da vida", resuma muito bem a coisa explicando que "não se pode sempre ter o sol na eira e a chuva no nabal".

Em política, então, a coisa é por demais evidente. Se apostamos no valor máximo da segurança, por exemplo, destapa-se o cobertor do lado da liberdade; se apostamos na igualdade para todos, perde-se o reconhecimento dos méritos individuais; se valorizamos muito o progresso, esquecemos a importância da tradição; ou, mesmo em questões práticas como as vírgulas do orçamento, atente-se no eterno conflito de valores em que todos querem impostos baixos ao mesmo tempo que desejam mais e melhores serviços públicos. Em suma, e como Isaiah Berlin não se cansou de explicar, a natural escassez do mundo implica uma inevitável necessidade de escolher, sendo que essa escolha representa, simultaneamente, por um lado, uma condenação, porque assenta a responsabilidade de decisão sobre tudo — desde o mais ínfimo pensamento que se descarta até aos maiores dilemas morais da Humanidade — nos ombros do Homem, mas, pelo outro lado, essa mesma escolha representa também o momento de criação humana na medida em que é perante o dilema, decidindo o caminho A ou B que o Homem, pensa, fala, faz, põe em prática, produz, explanando a sua vontade no mundo. Em suma, escolher é criar. Do mesmo modo, o pluralismo de valores caótico, hiper complexo, caracterizado por este perpétuo conflito-escolha primordial, representa o viveiro potencial da criação humana — do caos, pela escolha, o Homem inventa o seu próprio mundo.

Assim, o conflito permanece sempre como a verdadeira base da vida humana, em particular a política e social, alicerçada, desde logo, na eterna batalha entre dois valores fundamentais: os interesses do indivíduo, que se deve proteger face ao autoritarismo do colectivo, e o interesse público, um bem igualmente necessário quanto mais não seja para garantir que os direitos, liberdades e garantias de todos os indivíduos são acautelados por igual.

Em suma, no final, não há escape: o mundo faz-se necessariamente de valores, ou seja, de coisas que são importantes para nós, estes valores colidem entre si — não se pode ter tudo —, e daí a escolha torna-se inevitável, bem como a sua inerente subjectividade, garantindo que, tal qual os valores colidem entre si, também as escolhas de milhões de indivíduos, em condições e contextos tão distintos, mas todos disputando com igual dignidade a natural escassez da realidade humana, irão entrar em conflito umas com as outras. É assim que compreendemos que o conflito é aquilo que está na base da sociedade política, e não a concórdia ou a harmonia, seja de ideias ou valores. Pelo contrário, é o conflito decorrente dos diversos objectivos e as escolhas que cada um faz que cria uma base social necessariamente concorrencial,  caótica, competitiva, conflitante.

Simplificando, há apenas duas formas como lidar sócio-politicamente com o fardo da escolha e o conflito social que esta implica: ou bem que a liderança política decide e  impõe essa decisão a todos os indivíduos, liberando-os da responsabilidade de decidir em grande parte das matérias, mas agrilhoando-os à sua vontade expressa sob a capa do "bem colectivo"; ou então, como no Ocidente, encontram-se plataformas mais ou menos institucionalizadas de negociação sócio-política onde os representantes de cada visão, ou escolha, negoceiam entre si até encontrar formas de entendimento que, mesmo não agradando a todos, conseguem transformar o conflito e a necessidade de escolher em agendas de acção (e criação) colectiva. A este processo de integração do conflito, no Ocidente, demos o nome de democracia liberal, algo que olhado desta perspectiva é de amplitude muito superior ao simples arranjo institucional de representação política que vai variando de país para país.

A razão para o sucesso do sistema democrático-liberal deriva também desta característica conflitante da sociedade na medida em que a escolha é tanto mais bem feita quanto o agente decisor estiver mais próximo dela. Porque é quem está mais próximo que melhor conhece as hipóteses em causa, o contexto particular da escolha ou as consequências directas dos actos, a democratização e liberalização da escolha permitiu que ela passasse a ser feita de forma mais directa, eficiente e prática. Já as estruturas burocráticas centralizadas onde a decisão última reside permanentemente na cúpula do sistema, essa distância entre a necessidade de escolher e a decisão efectiva leva a distorções e perversões que prejudicam grandemente o sistema, em todas as suas cambiantes. Na economia, por exemplo, Ludwig Von Mises explicou este fenómeno através da distorção nos preços que sistemas de economia planificada implicam. No mundo das ideias, Stuart Mill comprovou como também aí a democratização e a liberdade de expressão coincidem com o necessário florescimento da inovação e o fortalecimento do pensamento adquirido através da livre concorrência. Também no mundo das acções humanas, precisamente porque acoplada com a escolha vem a responsabilidade individual, Antero de Quental — várias décadas antes de Max Weber, já agora — argumentou com sucesso que as sociedades culturalmente centralizadas caem necessariamente aos pés daquelas que, por diversos motivos são mais dinâmicas socialmente por colocarem o ênfase da decisão e da escolha no indivíduo, e não na autoridade local, regional ou eclesiástica.

É por estas razões que o mercado, o tão famigerado conceito que a esquerda vilipendia, na realidade não é apenas uma escolha, apesar de o ser também, que a intelectualidade canhota, porque materialista, tende a fazer crer se encontrar apenas dentro do supermercado. Muito mais que isso, o mercado, o verdadeiro mercado, é aquele que engloba esta intrínseca e inescapável necessidade de escolher — seja essa escolha feita ao nível das coisas, das ideias ou das vontades. Daí que, e também ao contrário do que a esquerda tende a fazer com a sua defesa da "liberdade", não se deva falar da, ou de uma, liberdade, mas sim "das liberdades", pois para cada dimensão da vida, para cada mundo de escolhas, há um necessário mercado e, consequentemente, uma liberdade que o garante mais próximo da vontade e decisão das pessoas: no mundo das coisas, é a propriedade privada que assegura a livre-troca de bens e serviços; no mundo das ideias, é a liberdade de expressão que as permite circular, trocar, crescer, misturar, fecundar, isso desde que a liberdade de pensar e falar seja assegurada; tal como no mundo das vontades e da acção humanas, é a liberdade face à coerção, definida pelos direitos e as garantias relacionadas com a vida, o corpo e a autonomia de cada indivíduo — a velhinha liberdade negativa de Isaiah Berlin — que permite o natural e espontâneo, para roubar o termo a Hayek, florescimento social e humano.

Liberdade para pensar, para falar, para agir, eis a súmula da garantia de que a escolha é feita de forma subsidiária, de baixo para cima, do indivíduo para a sociedade, e não ao contrário, como no Antigo Regime, onde a autoridade central impunha, junto com a soberania, a decisão de cima, do poder político, para baixo, para o povo, a quem competia acatar as decisões. Aliás, aqui se vê como o próprio conceito de soberania popular — outro chavão pervertido pela esquerda — nada significa se não estiver umbilicalmente conectado com as liberdades para pensar, falar e agir. No final, aquela soberania, e estas liberdades, dependem de uma vitória popular no eterno conflito de valores primordial que em todas as sociedades, em todas as suas diferentes dimensões, opõe o impulso centralizador do colectivo à ordem espontânea dos indivíduos e as suas naturais ligações e vontades valorativas, afectivas e espirituais. Em suma, é este mundo complexo, espontâneo, erigido de baixo para cima, do povo para o soberano, mas da livre associação dos indivíduos, das pessoas, nas suas vontades, culturas e tradições, as quais o poder político deveria apenas reconhecer, quanto muito proteger, que compõe a essência da solução democrática e liberal que trouxe a abundância, a prosperidade e o bem-estar ao Ocidente.

Em boa verdade, vendo por esta perspectiva, não poderia ter sido de outro modo: nem os sistemas centralizados ao lidarem com o conflito podem ser sistemas verdadeiramente livres, tal como também não podem ser tão prósperos como aqueles que o são. De facto, a chave do sucesso do Ocidente é a prova empírica que valida o argumento acima exposto. Ou seja, há razões que explicam o sucesso da ordem liberal ocidental, tal como essas mesmas razões explicam o falhanço das alternativas. O Ocidente não teve o sucesso que teve apenas por ser o Ocidente, pelo contrário, teve o sucesso do qual todos ainda beneficiamos porque seguiu políticas, estratégias e ideias certas, alinhadas com o mundo real, que, pelas razões acima referidas, garantiram o seu sucesso. Daqui decorre naturalmente uma outra pequena conclusão: se o Ocidente deixar de seguir esses importantes princípios, essa forma de lidar com o mundo, os seus valores, então não serão apenas as liberdades que mudarão fundamentalmente nas nossas sociedades — inevitavelmente estas deixarão também de ter condições para serem bem-sucedidas e prósperas.

Estranhamente, porventura por desgaste, sem dúvida por ignorância, senão mesmo dolo, na Europa parece ter-se apostado seriamente neste segundo caminho. Ao longo dos últimos anos, a União Europeia tem vindo progressivamente a substituir a subsidiariedade pela centralização, e se no início apenas na perspectiva económica — no mercado das coisas —, a verdade é que agora há muito que já estendeu essa reviravolta a todas as cambiantes da vida. Hoje, desde um socialismo impante ancorado em planos quinquenais de desenvolvimento económico centralizado e posto em prática através de subsídios e regulamentação de fins e objectivos, até aos planos da moeda digital (CBDC) que, a seu tempo, em sendo bem-sucedidos, permitirão ao BCE ganhar o poder de vasculhar toda e qualquer transacção, isto quando não definir a priori em quê, e em que moldes, pode cada unidade de dinheiro digital ser gasta ou transferida, impondo um modelo de grande centralização, planificação e autoritarismo económico, ainda para mais ora justificado debaixo da capa moralista, pseudo-salvífica, derivada da insanidade anti-científica obcecada pela "transição energética".

Depois, a nível social, um bizarro suicídio assente na importação massiva de pessoas que lidam fundamentalmente com as liberdades e o conflito de forma muito diferente dos Ocidentais, um fenómeno também ele imposto de cima para baixo, por decreto, contra as pessoas, motivado por cegueira ideológica "multiculturalista", pejada de soberba, que imagina que quem vier há-de querer ser como nós. Depois, novamente de cima para baixo, através de uma clara imposição de novos valores sociais — desde o defunto wokismo às bandeirinhas arco-íris — que, também pela regulação, bem como a pura chantagem com os estados membros sequiosos de bazucas, fundos estruturais e apoios à coesão, de Bruxelas se difundem para o continente inteiro. Finalmente, uma obsessão maníaca pela harmonia política própria do discurso único, já autoritário, que em nome da "verdadeira" liberdade, ou da "ciência", perverte as próprias liberdades, como é flagrante exemplo o perverso Digital Services Act e o seu sucedâneo "Escudo Democrático" onde, em nome de um alegado combate à desinformação, se propõe agora a UE a encontrar formas de regulamentar, controlar — censurar — o discurso na internet. Em suma, a UE de hoje perverte, inverte, destrói tudo aquilo que, em tempos idos, "fez o Ocidente grande".

A tentação do controlo tecnocrata centralista a coberto de alegados valores como "eficiência" ou "segurança", bem como slogans em nome da liberdade mesmo que significando o seu exacto contrário na medida em que implicam sempre passagem de poder de decisão das pessoas para os poderes políticos, aparece-nos agora de fora, com falinhas mansas e o mais velho truque do mundo: enquanto nos acena uma mão cheia de notas que prometem a salvação económica do país, com a outra mão, à socapa, levam-nos as nossas liberdades, a nossa soberania, não apenas a popular, mas a nacional também. Como procurei mostrar, em não se invertendo o actual processo, as consequências serão, naturalmente, catastróficas, não apenas para os portugueses, mas para todos os europeus. E, por estas, não me refiro apenas à perda da independência e soberania nacionais, algo que que, suspeito, a maioria dos portugueses trocaria de bom grado pela governança estrangeira desde que no futebol continue a ser a mesma bandeirinha que exalta corações e verte lágrimas pelas vitórias e derrotas. Não, as piores consequências são mesmo aquelas que advêm da substituição do sistema Ocidental de soberania popular, das liberdades individuais e da subsidiariedade pela soberania tecnocrática das elites, o triunfo do "bem" colectivo e a centralização progressiva dos meios de produção e decisão — a falência, a violência e o totalitarismo, portanto.

Já cá no burgo, entre o subsídio europeu que controla narrativas, vende promessas de paraísos futuros e estabiliza sistemas financeiros afogados em dívida, junto com o patético provincianismo português que imagina que tudo o que vem do estrangeiro é bom e melhor do que aquilo que por cá se faz — apesar de sermos os melhores do mundo nisto e naquilo —, gerou-se um silêncio ensurdecedor na sociedade civil portuguesa incapaz de discutir a gravidade da situação. Pelas mesmíssimas razões, os nossos políticos, incluindo aqui praticamente o parlamento inteiro e o governo, bem como todo o espaço publicado e mediático, assistem de boca calada, bolsos cheios e carreiras públicas de sucesso — um crime de lesa pátria que parece passar impune. No final, por enquanto, a situação parece ser mais ou menos esta: por um punhado de euros, anafados e saciados, alienados face à realidade do mundo, tranquila e silenciosamente vamos desbaratando tudo o que recebemos dos nossos "egrégios avós". Não vai correr bem.