Por um punhado de euros
Nuno Lebreiro
De uma perspectiva empírica, ou seja, partindo da realidade do mundo tal qual experimentado pelo Homem, a vida resume-se a um permanente acto de escolha entre diferentes valores que concorrem entre si. Por valores, entenda-se aquilo que valorizamos e que, em diferentes graus e formas, perseguimos, desejamos ou, por oposição, evitamos e repudiamos. Na nossa relação com o mundo, seja em que aspecto for — intelectual, material, espiritual — tudo é necessariamente individualmente avaliado, sendo esse processo de avaliação entre o que é bom ou mau para nós o momento basilar que sustenta toda a acção humana — perseguimos o que valorizamos e evitamos o que desvalorizamos. Depois, claro, uma análise empírica realista acresce uma simples conclusão sobre a vida humana: não se pode ter tudo. Pelo contrário, o mundo é, por natureza, moral, política e economicamente escasso, daí que a sabedoria popular, precisamente porque reflecte estes dois "factos da vida", resuma muito bem a coisa explicando que "não se pode sempre ter o sol na eira e a chuva no nabal".
Em política, então, a coisa é por demais evidente. Se apostamos no valor máximo da segurança, por exemplo, destapa-se o cobertor do lado da liberdade; se apostamos na igualdade para todos, perde-se o reconhecimento dos méritos individuais; se valorizamos muito o progresso, esquecemos a importância da tradição; ou, mesmo em questões práticas como as vírgulas do orçamento, atente-se no eterno conflito de valores em que todos querem impostos baixos ao mesmo tempo que desejam mais e melhores serviços públicos. Em suma, e como Isaiah Berlin não se cansou de explicar, a natural escassez do mundo implica uma inevitável necessidade de escolher, sendo que essa escolha representa, simultaneamente, por um lado, uma condenação, porque assenta a responsabilidade de decisão sobre tudo — desde o mais ínfimo pensamento que se descarta até aos maiores dilemas morais da Humanidade — nos ombros do Homem, mas, pelo outro lado, essa mesma escolha representa também o momento de criação humana na medida em que é perante o dilema, decidindo o caminho A ou B que o Homem, pensa, fala, faz, põe em prática, produz, explanando a sua vontade no mundo. Em suma, escolher é criar. Do mesmo modo, o pluralismo de valores caótico, hiper complexo, caracterizado por este perpétuo conflito-escolha primordial, representa o viveiro potencial da criação humana — do caos, pela escolha, o Homem inventa o seu próprio mundo.
Assim, o conflito permanece sempre como a verdadeira base da vida humana, em particular a política e social, alicerçada, desde logo, na eterna batalha entre dois valores fundamentais: os interesses do indivíduo, que se deve proteger face ao autoritarismo do colectivo, e o interesse público, um bem igualmente necessário quanto mais não seja para garantir que os direitos, liberdades e garantias de todos os indivíduos são acautelados por igual.
Em suma, no final, não há escape: o mundo faz-se necessariamente de valores, ou seja, de coisas que são importantes para nós, estes valores colidem entre si — não se pode ter tudo —, e daí a escolha torna-se inevitável, bem como a sua inerente subjectividade, garantindo que, tal qual os valores colidem entre si, também as escolhas de milhões de indivíduos, em condições e contextos tão distintos, mas todos disputando com igual dignidade a natural escassez da realidade humana, irão entrar em conflito umas com as outras. É assim que compreendemos que o conflito é aquilo que está na base da sociedade política, e não a concórdia ou a harmonia, seja de ideias ou valores. Pelo contrário, é o conflito decorrente dos diversos objectivos e as escolhas que cada um faz que cria uma base social necessariamente concorrencial, caótica, competitiva, conflitante.
Simplificando, há apenas duas formas como lidar sócio-politicamente com o fardo da escolha e o conflito social que esta implica: ou bem que a liderança política decide e impõe essa decisão a todos os indivíduos, liberando-os da responsabilidade de decidir em grande parte das matérias, mas agrilhoando-os à sua vontade expressa sob a capa do "bem colectivo"; ou então, como no Ocidente, encontram-se plataformas mais ou menos institucionalizadas de negociação sócio-política onde os representantes de cada visão, ou escolha, negoceiam entre si até encontrar formas de entendimento que, mesmo não agradando a todos, conseguem transformar o conflito e a necessidade de escolher em agendas de acção (e criação) colectiva. A este processo de integração do conflito, no Ocidente, demos o nome de democracia liberal, algo que olhado desta perspectiva é de amplitude muito superior ao simples arranjo institucional de representação política que vai variando de país para país.
A razão para o sucesso do sistema democrático-liberal deriva também desta característica conflitante da sociedade na medida em que a escolha é tanto mais bem feita quanto o agente decisor estiver mais próximo dela. Porque é quem está mais próximo que melhor conhece as hipóteses em causa, o contexto particular da escolha ou as consequências directas dos actos, a democratização e liberalização da escolha permitiu que ela passasse a ser feita de forma mais directa, eficiente e prática. Já as estruturas burocráticas centralizadas onde a decisão última reside permanentemente na cúpula do sistema, essa distância entre a necessidade de escolher e a decisão efectiva leva a distorções e perversões que prejudicam grandemente o sistema, em todas as suas cambiantes. Na economia, por exemplo, Ludwig Von Mises explicou este fenómeno através da distorção nos preços que sistemas de economia planificada implicam. No mundo das ideias, Stuart Mill comprovou como também aí a democratização e a liberdade de expressão coincidem com o necessário florescimento da inovação e o fortalecimento do pensamento adquirido através da livre concorrência. Também no mundo das acções humanas, precisamente porque acoplada com a escolha vem a responsabilidade individual, Antero de Quental — várias décadas antes de Max Weber, já agora — argumentou com sucesso que as sociedades culturalmente centralizadas caem necessariamente aos pés daquelas que, por diversos motivos são mais dinâmicas socialmente por colocarem o ênfase da decisão e da escolha no indivíduo, e não na autoridade local, regional ou eclesiástica.
É por estas razões que o mercado, o tão famigerado conceito que a esquerda vilipendia, na realidade não é apenas uma escolha, apesar de o ser também, que a intelectualidade canhota, porque materialista, tende a fazer crer se encontrar apenas dentro do supermercado. Muito mais que isso, o mercado, o verdadeiro mercado, é aquele que engloba esta intrínseca e inescapável necessidade de escolher — seja essa escolha feita ao nível das coisas, das ideias ou das vontades. Daí que, e também ao contrário do que a esquerda tende a fazer com a sua defesa da "liberdade", não se deva falar da, ou de uma, liberdade, mas sim "das liberdades", pois para cada dimensão da vida, para cada mundo de escolhas, há um necessário mercado e, consequentemente, uma liberdade que o garante mais próximo da vontade e decisão das pessoas: no mundo das coisas, é a propriedade privada que assegura a livre-troca de bens e serviços; no mundo das ideias, é a liberdade de expressão que as permite circular, trocar, crescer, misturar, fecundar, isso desde que a liberdade de pensar e falar seja assegurada; tal como no mundo das vontades e da acção humanas, é a liberdade face à coerção, definida pelos direitos e as garantias relacionadas com a vida, o corpo e a autonomia de cada indivíduo — a velhinha liberdade negativa de Isaiah Berlin — que permite o natural e espontâneo, para roubar o termo a Hayek, florescimento social e humano.
Liberdade para pensar, para falar, para agir, eis a súmula da garantia de que a escolha é feita de forma subsidiária, de baixo para cima, do indivíduo para a sociedade, e não ao contrário, como no Antigo Regime, onde a autoridade central impunha, junto com a soberania, a decisão de cima, do poder político, para baixo, para o povo, a quem competia acatar as decisões. Aliás, aqui se vê como o próprio conceito de soberania popular — outro chavão pervertido pela esquerda — nada significa se não estiver umbilicalmente conectado com as liberdades para pensar, falar e agir. No final, aquela soberania, e estas liberdades, dependem de uma vitória popular no eterno conflito de valores primordial que em todas as sociedades, em todas as suas diferentes dimensões, opõe o impulso centralizador do colectivo à ordem espontânea dos indivíduos e as suas naturais ligações e vontades valorativas, afectivas e espirituais. Em suma, é este mundo complexo, espontâneo, erigido de baixo para cima, do povo para o soberano, mas da livre associação dos indivíduos, das pessoas, nas suas vontades, culturas e tradições, as quais o poder político deveria apenas reconhecer, quanto muito proteger, que compõe a essência da solução democrática e liberal que trouxe a abundância, a prosperidade e o bem-estar ao Ocidente.
Em boa verdade, vendo por esta perspectiva, não poderia ter sido de outro modo: nem os sistemas centralizados ao lidarem com o conflito podem ser sistemas verdadeiramente livres, tal como também não podem ser tão prósperos como aqueles que o são. De facto, a chave do sucesso do Ocidente é a prova empírica que valida o argumento acima exposto. Ou seja, há razões que explicam o sucesso da ordem liberal ocidental, tal como essas mesmas razões explicam o falhanço das alternativas. O Ocidente não teve o sucesso que teve apenas por ser o Ocidente, pelo contrário, teve o sucesso do qual todos ainda beneficiamos porque seguiu políticas, estratégias e ideias certas, alinhadas com o mundo real, que, pelas razões acima referidas, garantiram o seu sucesso. Daqui decorre naturalmente uma outra pequena conclusão: se o Ocidente deixar de seguir esses importantes princípios, essa forma de lidar com o mundo, os seus valores, então não serão apenas as liberdades que mudarão fundamentalmente nas nossas sociedades — inevitavelmente estas deixarão também de ter condições para serem bem-sucedidas e prósperas.
Estranhamente, porventura por desgaste, sem dúvida por ignorância, senão mesmo dolo, na Europa parece ter-se apostado seriamente neste segundo caminho. Ao longo dos últimos anos, a União Europeia tem vindo progressivamente a substituir a subsidiariedade pela centralização, e se no início apenas na perspectiva económica — no mercado das coisas —, a verdade é que agora há muito que já estendeu essa reviravolta a todas as cambiantes da vida. Hoje, desde um socialismo impante ancorado em planos quinquenais de desenvolvimento económico centralizado e posto em prática através de subsídios e regulamentação de fins e objectivos, até aos planos da moeda digital (CBDC) que, a seu tempo, em sendo bem-sucedidos, permitirão ao BCE ganhar o poder de vasculhar toda e qualquer transacção, isto quando não definir a priori em quê, e em que moldes, pode cada unidade de dinheiro digital ser gasta ou transferida, impondo um modelo de grande centralização, planificação e autoritarismo económico, ainda para mais ora justificado debaixo da capa moralista, pseudo-salvífica, derivada da insanidade anti-científica obcecada pela "transição energética".
Depois, a nível social, um bizarro suicídio assente na importação massiva de pessoas que lidam fundamentalmente com as liberdades e o conflito de forma muito diferente dos Ocidentais, um fenómeno também ele imposto de cima para baixo, por decreto, contra as pessoas, motivado por cegueira ideológica "multiculturalista", pejada de soberba, que imagina que quem vier há-de querer ser como nós. Depois, novamente de cima para baixo, através de uma clara imposição de novos valores sociais — desde o defunto wokismo às bandeirinhas arco-íris — que, também pela regulação, bem como a pura chantagem com os estados membros sequiosos de bazucas, fundos estruturais e apoios à coesão, de Bruxelas se difundem para o continente inteiro. Finalmente, uma obsessão maníaca pela harmonia política própria do discurso único, já autoritário, que em nome da "verdadeira" liberdade, ou da "ciência", perverte as próprias liberdades, como é flagrante exemplo o perverso Digital Services Act e o seu sucedâneo "Escudo Democrático" onde, em nome de um alegado combate à desinformação, se propõe agora a UE a encontrar formas de regulamentar, controlar — censurar — o discurso na internet. Em suma, a UE de hoje perverte, inverte, destrói tudo aquilo que, em tempos idos, "fez o Ocidente grande".
A tentação do controlo tecnocrata centralista a coberto de alegados valores como "eficiência" ou "segurança", bem como slogans em nome da liberdade mesmo que significando o seu exacto contrário na medida em que implicam sempre passagem de poder de decisão das pessoas para os poderes políticos, aparece-nos agora de fora, com falinhas mansas e o mais velho truque do mundo: enquanto nos acena uma mão cheia de notas que prometem a salvação económica do país, com a outra mão, à socapa, levam-nos as nossas liberdades, a nossa soberania, não apenas a popular, mas a nacional também. Como procurei mostrar, em não se invertendo o actual processo, as consequências serão, naturalmente, catastróficas, não apenas para os portugueses, mas para todos os europeus. E, por estas, não me refiro apenas à perda da independência e soberania nacionais, algo que que, suspeito, a maioria dos portugueses trocaria de bom grado pela governança estrangeira desde que no futebol continue a ser a mesma bandeirinha que exalta corações e verte lágrimas pelas vitórias e derrotas. Não, as piores consequências são mesmo aquelas que advêm da substituição do sistema Ocidental de soberania popular, das liberdades individuais e da subsidiariedade pela soberania tecnocrática das elites, o triunfo do "bem" colectivo e a centralização progressiva dos meios de produção e decisão — a falência, a violência e o totalitarismo, portanto.
Já cá no burgo, entre o subsídio europeu que controla narrativas, vende promessas de paraísos futuros e estabiliza sistemas financeiros afogados em dívida, junto com o patético provincianismo português que imagina que tudo o que vem do estrangeiro é bom e melhor do que aquilo que por cá se faz — apesar de sermos os melhores do mundo nisto e naquilo —, gerou-se um silêncio ensurdecedor na sociedade civil portuguesa incapaz de discutir a gravidade da situação. Pelas mesmíssimas razões, os nossos políticos, incluindo aqui praticamente o parlamento inteiro e o governo, bem como todo o espaço publicado e mediático, assistem de boca calada, bolsos cheios e carreiras públicas de sucesso — um crime de lesa pátria que parece passar impune. No final, por enquanto, a situação parece ser mais ou menos esta: por um punhado de euros, anafados e saciados, alienados face à realidade do mundo, tranquila e silenciosamente vamos desbaratando tudo o que recebemos dos nossos "egrégios avós". Não vai correr bem.
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