quinta-feira, 18 de maio de 2023

Resumo fundamentado de um ano de guerra na Ucrânia

Comentário Pessoal:

Para os ‘licenciados em ciências militares’ será certamente um artigo interessante (que, provavelmente, aprovarão numas áreas e não tanto, noutras).

Para mim – que não tenho capacidade para fazer essa análise – é um ‘artigo para ler sem poder fazer a minha habitual crítica analítica (e para arquivo).

estatuadesal.com

(Roberto Buffagni, Observatoriocrisis, 02/02/2023, Tradução de ‘Estátua de Sal’)


Um ano após o início da guerra, está claro que uma vitória militar ucraniana sobre a Rússia é materialmente impossível, mas a ajuda ocidental à Ucrânia pode prolongar o conflito. Agora, se eu tiver que arriscar um palpite, acho que a Rússia continuará a guerra de desgaste por muito mais tempo…


Neste artigo analiso, com a maior brevidade e clareza, o percurso estratégico e a dinâmica que conduziu à atual quarta fase da guerra na Ucrânia, fase que considero transformadora. Não insiro notas a não ser uma, referente a um grande estudo da RAND Corp., publicado enquanto preparava este texto, no final de janeiro de 2023.

Agradeço sinceramente ao General Marco Bertolini, ao historiador Giacomo Gabellini e Giuseppe Germinario, que tiveram a gentileza de ler este rascunho e me aconselhar. Claro que a responsabilidade pelos defeitos e limitações do artigo é exclusivamente minha.

ETIOLOGIA DA GUERRA NA UCRÂNIA. NATUREZA E FINS DA GUERRA DO PONTO DE VISTA RUSSO E OCIDENTAL

Sobre a etiologia da guerra na Ucrânia compartilho a interpretação histórica do professor John Mearsheimer. O conflito é consequência da expansão da NATO para leste e do desejo dos EUA de criar um reduto militar ocidental na fronteira russa, integrando a Ucrânia na NATO: uma estratégia que a Federação Russa declarou absolutamente inaceitável desde a Cimeira da NATO em Bucareste em 2008, em que esta organização militar anunciou a sua intenção de integrar a Geórgia e a Ucrânia na Aliança Atlântica.

Entre 2008 e 2022, os Estados Unidos gradualmente integraram a Ucrânia na NATO, embora de facto e não de jure. Em 2014, pressionaram pela desestabilização do governo recém-eleito e instalaram um regime amigo, e nos anos seguintes elevaram as forças armadas ucranianas para o nível de prontidão da NATO. Em 2014, a Federação Russa anexou a Crimeia sem conflito militar.

No entanto, em 2021, registou-se uma aceleração significativa do processo de integração de facto da Ucrânia na Organização Militar Atlantista: importantes fornecimentos de armas, grandes exercícios militares conjuntos e, em novembro desse ano, foi renovada uma Convenção bilateral EUA-Ucrânia que reafirmou a intenção comum de integrar a Ucrânia na NATO, desta vez de jure.

De acordo com esta interpretação etiológica, do ponto de vista russo, a guerra na Ucrânia é uma guerra preventiva em defesa de interesses russos vitais, e não uma guerra imperialista de anexação/conquista e não é o prólogo de uma qualquer expansão territorial russa na Europa. Este último objetivo é, ao contrário, a definição da natureza e dos propósitos da intervenção russa adotada pelos Estados ocidentais.

PRIMEIRA FASE DA GUERRA (24 DE FEVEREIRO A PRIMAVERA DE 2022). ESCALADA MILITAR RUSSA: INVASÃO DA UCRÂNIA. ESCALADA POLÍTICA OCIDENTAL: REJEIÇÃO DE QUALQUER NEGOCIAÇÃO DIPLOMÁTICA.

Em dezembro de 2021, a Federação Russa, que nos meses anteriores havia destacado um contingente militar pronto para intervir na fronteira ucraniana, propôs uma solução diplomática aos EUA, na fórmula inusitada de um projeto de tratado tornado público. As principais reivindicações russas eram, fundamentalmente: a Ucrânia neutra e a aplicação efetiva dos acordos de Minsk para a proteção das populações de língua russa de Donbass, onde ocorre uma guerra civil desde 2014, apoiada não oficialmente pelos governos ucraniano e russo. Os Estados Unidos não responderam à proposta de forma satisfatória para os russos (adiaram, paralisaram, recorreram à “ambiguidade estratégica”).

Em 24 de fevereiro de 2022, a Federação Russa intervém militarmente na Ucrânia. Não é possível saber ao certo porque foi escolhido esse momento. Talvez, mas esta é apenas a minha inferência lógica, porque de acordo com as informações que possuo, a Federação Russa acreditava que o exército ucraniano estava prestes a intervir contra as milícias de Donbass, uma vez que destacou a maioria de suas tropas que estavam em posições defensivas. que eles construíram ao longo dos anos, a fim de evitar uma possível intervenção militar russa e torná-la muito mais difícil, cara, incerta.

Os russos intervêm com um contingente militar de cerca de 180 a 200.000 homens, em condições de inferioridade numérica relativamente ao exército ucraniano em cerca de 3:1, embora os manuais tácticos prescrevam uma relação inversa atacantes/defensores (pelo menos 3:1 a favor do atacante, para compensar a vantagem da defesa).

Os russos desenvolvem ataques em cinco linhas, tanto no sudeste quanto no noroeste da Ucrânia. Os ataques no Noroeste são ataques secundários, uma grande manobra diversiva destinada a colocar tropas ucranianas em defesa de Kiev e outros centros afetados pela manobra, para moldar o campo de batalha no Sudeste, no Donbass, para onde se dirigem. Ao interpretar a manobra russa dessa maneira, concordo com a interpretação oferecida por “Marinus”, provavelmente o pseudónimo do tenente-general (ret.) Paul Van Riper.

Em três ou quatro semanas, a manobra de diversão russa foi bem-sucedida. No final de março, as tropas russas que haviam realizado ataques secundários no Noroeste retiraram-se, enquanto o grosso das forças russas se desdobrou em praticamente todo o Donbass, infligindo pesadas perdas, especialmente materiais, ao exército ucraniano graças a um clara superioridade em poder de fogo de artilharia e foguetes. A ação militar russa evita cuidadosamente o envolvimento de civis, não toca nas infraestruturas de uso civil e militar (por exemplo, a rede elétrica) e, em última análise, assume a forma de “diplomacia armada”: os russos tentam obter, com pressão militar moderada, os objetivos que não foram alcançados com a crescente pressão diplomática de vários anos.

Até ao final de março de 2022, parece que a “diplomacia armada” russa pode ter sucesso: entre 24 de fevereiro e o final de março, sete reuniões diplomáticas são realizadas entre a Rússia e a Ucrânia e, no final de março, o presidente Zelensky declara oficialmente a jornais russos independentes que está pronto para negociar a neutralidade da Ucrânia e a solucionar o problema das populações de língua russa de Donbass.

Primeira escalada política ocidental

Mas, em 7 de abril de 2022, o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, visita o presidente ucraniano e declara oficialmente que a Ucrânia ”contra as probabilidades, desafiou e empurrou as forças russas para fora das portas de Kiev, realizando a maior façanha de combate do século XXI”. A partir desse momento, cessaram todas as relações diplomáticas entre a Ucrânia e a Federação Russa.

A interpretação ocidental “aquela pequena Ucrânia derrotou a grande Rússia no campo de batalha” é baseada numa leitura das primeiras semanas da guerra que é radicalmente diferente daquela que propus acima.

De acordo com esta interpretação, o objetivo russo teria sido a tomada de Kiev e a “mudança de regime”, o derrube do governo ucraniano e a sua substituição por um governo fantoche pró-Rússia, e os ataques no noroeste seriam ataques principais fracassados, não ataques secundários fazendo parte de uma ampla manobra de diversão. É uma interpretação possível, que, se verdadeira, denuncia uma grave insuficiência militar e política da Federação Russa: é impossível atingir objetivos tão ambiciosos com um desdobramento tão reduzido de forças e uma intensidade tão baixa do conflito.

As facções mais extremistas do campo ocidental e do governo ucraniano confiam cegamente nessa interpretação dos eventos militares, sejam elas corretas ou incorretas, genuínas ou enganosas. No Ocidente cristaliza-se a certeza oficial de que é possível infligir uma derrota militar decisiva à Rússia, sendo por isso realista propor objectivos estratégicos maximalistas, como a sangria da Rússia e a sua desestabilização política, tanto por pressão militar como por pressão económica através de sanções e a ativação de forças centrífugas. O objetivo final: a expulsão da Rússia das fileiras das grandes potências, o estabelecimento de um governo pró-ocidental e possivelmente a fragmentação política da Federação Russa.

Esses objetivos maximalistas foram reivindicados oficialmente em 24 de abril pelos secretários de Estado e de Defesa dos Estados Unidos. Assim, os países europeus e da NATO, exceto a Turquia e a Hungria, alinham-se sem escrúpulos e votam, por maioria parlamentar esmagadora, por duras sanções económicas à Rússia e remessas de armas para a Ucrânia. A Suécia e a Finlândia, historicamente neutras, anunciam sua intenção de se tornarem membros da NATO. A “diplomacia armada” russa falhou.

SEGUNDA FASE DA GUERRA (PRIMAVERA – MEADOS DO VERÃO DE 2022). CONQUISTA RUSSA DE DONBASS. A CONDIÇÃO DE POSSIBILIDADE DE VITÓRIA PARA A UCRÂNIA.

A conquista russa de Donbass continua com sucesso, com confrontos urbanos altamente violentos, de casa em casa em Mariupol e em outros lugares. As tropas russas presentes na linha de contato com o inimigo são principalmente as milícias Donbass, as formações de voluntários chechenos e o grupo Wagner. As formações do exército regular russo atuam principalmente (não só) no apoio, com artilharia, mísseis e comando operacional. A ação militar russa não tem como alvo a infraestrutura civil e militar (de uso duplo) da Ucrânia.

A proporção de perdas ucranianas para russas é claramente desfavorável aos ucranianos, tanto por causa do poder de fogo russo superior, quanto porque as operações militares ucranianas são fortemente influenciadas pela necessidade de justificar, aos governos ocidentais e à opinião pública, o colossal e quase unânime apoio político e financeiro à Ucrânia, apoio que tem sérias repercussões políticas e económicas nos países europeus, especialmente na Alemanha, que se vê excluída do fornecimento de energia russa barata, na qual baseia há décadas, a sua prosperidade.

Em suma, os ucranianos são obrigados a “vender” resultados no terreno, resistência inflexível e agressividade constante. Esta é a sustentabilidade política do indispensável apoio ocidental: a perspectiva de uma futura vitória militar ucraniana sobre a Rússia.

Claro, a corajosa resistência ucraniana não pode ser atribuída apenas a isso: para grande parte da população, o conflito com a Rússia transformou-se numa guerra de libertação nacional, que é complementada por uma guerra civil e uma guerra por procuração dos Estados Unidos. Estados Unidos/NATO contra a Rússia

A condição de possibilidade de uma vitória militar ucraniana

No entanto, a condição para a possibilidade de uma vitória militar decisiva da Ucrânia sobre a Rússia é baseada numa suposição.

É um pressuposto que funciona como princípio ordenador da estratégia de dissuasão desenvolvida pelo general francês Gallois: tornar a relação custo/benefício da vitória sobre a potência mais fraca desfavorável para a potência mais forte.

De acordo com a tese de Gallois, se uma grande potência nuclear atacasse a França, certamente poderia destruir o país completamente, mas a ativação de sua força nuclear infligiria danos politicamente inaceitáveis ​​para a potência mais forte.

Resumindo: para vencer, o poder mais fraco deve assegurar que a vitória do poder mais forte não lhe custe uma guerra total inaceitável. A Ucrânia é fraca, a Rússia é forte.

Mesmo com a ajuda ocidental, os recursos estratégicos da Ucrânia (população, poder económico latente, poder militar manifesto, tropas mobilizadas e mobilizáveis, profundidade estratégica) ainda são em ordem de grandeza inferiores aos recursos estratégicos da Rússia, porque a Rússia tem 145 milhões de pessoas, pode mobilizar até 25 milhões de homens, possui enormes recursos naturais e capacidade de transformá-los, uma grande base militar-industrial e uma profundidade estratégica de 11 fusos horários. (“Profundidade estratégica” é o espaço dentro do qual um exército atacado pode recuar, se reorganizar e contra-atacar, assim como os soviéticos fizeram após a devastadora série de avanços da Wehrmacht no início da Operação Barbarossa.)

Repito: uma potência muito mais fraca pode vencer uma potência muito mais forte apenas se tornar o custo/benefício da vitória desfavorável para a potência forte.

Foi assim que o Vietname e o Afeganistão derrotaram os Estados Unidos (foi assim também que os afegãos derrotaram a URSS). O que aconteceu é que se essas duas grandes potências tivessem decidido comprometer totalmente os seus ativos estratégicos, o Vietname e o Afeganistão não poderiam ter evitado a derrota total. Mas os EUA e a URSS não o fizeram porque consideraram que uma guerra desse tipo era politicamente insustentável: perdas muito altas, compromisso político, económico e militar de longo prazo inaceitável, crescente oposição interna à guerra, etc. Em suma, os EUA e a URSS decidiram perder porque avaliaram que, para eles, a relação custo/benefício da derrota era mais vantajosa do que a relação custo/benefício da vitória.

O que está em jogo para a Rússia

Mas hoje os objetivos estratégicos declarados oficialmente pelo governo americano e relançados pela NATO e pelos países europeus são objetivos maximalistas: sangramento e enfraquecimento permanente do poderio económico e militar da Rússia, desestabilização do governo, ativação de forças centrífugas dentro da Federação Russa, expulsão de Rússia da lista de grandes potências, possível fragmentação territorial. Particularmente aterrorizante para a Rússia – que historicamente se constituiu como um império multiétnico, multinacional e multirreligioso – é a possibilidade de ativação de forças centrífugas étnicas, religiosas e nacionais, num cenário semelhante ao da Jugoslávia na década de 1990.

Em suma, os objetivos declarados do Ocidente constituem uma ameaça existencial ao governo, estado, sociedade e nações russas. Assim, a liderança russa convenceu-se de que apostas absolutas estão em jogo na guerra da Ucrânia e, portanto, estão dispostas a fazer literalmente qualquer coisa para a vencer, e repetidamente o têm dito oficialmente. Na verdade, eles estarão dispostos, até compelidos, a fazer pleno uso de todos os recursos estratégicos russos para vencer a guerra: vencer a Ucrânia e, eventualmente, se for um conflito direto, vencer também a NATO.

Assim, a condição de possibilidade de uma futura vitória ucraniana é eliminada: que para a Rússia a vitória sobre a Ucrânia não valeria uma guerra até ao amargo fim da vitória. Para conquistar o “mundo russo”, a Ucrânia e seus aliados ocidentais teriam que obter uma vitória decisiva sobre uma Federação Russa disposta, ou melhor, forçada a comprometer plenamente, pelo tempo que for necessário, todos os seus recursos estratégicos: em suma, eles deveriam fazer a Rússia capitular.

Ao mesmo tempo, os EUA e seus aliados ocidentais, ao se comprometerem publicamente com objetivos maximalistas, estão fechando o espaço de manobra da diplomacia e a aumentar as apostas políticas das suas classes dominantes, que correm o risco de serem varridas pela derrota; apesar de um resultado desfavorável da guerra não prejudicar, como tal, os interesses vitais de suas nações, nenhuma das quais corre o risco de desestabilização após uma derrota ucraniana.

A única nação do campo ocidental que arrisca tudo é a Ucrânia, que só pode esperar terríveis desastres com a continuação da guerra e provável derrota.

TERCEIRA FASE DA GUERRA (FIM DO VERÃO – OUTONO DE 2022). SUCESSO DA CONTRA-OFENSIVA UCRANIANA . ESCALADA POLÍTICA RUSSA: ANEXAÇÃO DE QUATRO PROVÍNCIAS DE DONBASS. ESCALADA MILITAR RUSSA: BOMBARDEIO DE ALVOS MILITAR E CIVIL DE USO DUPLO. GUERRA DE MANOBRA E GUERRA DE ATRITO.

As forças russas estão estacionadas em Donbass, ocupando quase 20% de todo o território ucraniano e posicionadas numa frente de, aproximadamente, 1.500 km. Reorganiza-se o aparelho militar ucraniano, alarga-se a mobilização convocando os reservistas e estendendo-se o serviço militar obrigatório até aos 60 anos, abastece-se de novas armas ocidentais (em grande parte de material ex-soviético) para substituir as destruídas na anterior fases do conflito, o país é intervencionado por um envolvimento mais intenso do estado-maior da NATO e por uma estruturação mais capilar das funções ISR (Inteligência, Vigilância e Reconhecimento)… e em setembro de 2022 lança uma contra-ofensiva, tendo como alvo principal Kharkiv.

A contra-ofensiva ucraniana é bem-sucedida. Os russos tiveram de recuar ao longo de toda a frente, recuando mais ou menos em ordem. Motivo: o cobertor russo é muito curto. As unidades russas conquistaram vastos territórios que não podem manter com o pequeno número de tropas envolvidas na “operação militar especial”. Devem, pois, resistir retirando-se o mais ordenadamente possível, encurtar a frente, reduzir os territórios a defender e fortificá-los para neles se instalarem, reconfigurar o dispositivo militar e reforçá-lo.

A Rússia ajusta-se à nova realidade no terreno. O comandante-geral das operações na Ucrânia, general Surovikin, propõe à Duma, que vota por unanimidade, a mobilização parcial de 300 mil reservistas. Também estão mobilizadas as indústrias militares, que trabalharão em três turnos de oito horas.

Escalada política russa: anexação dos quatro oblasts de Donbass

O governo propõe à Duma, que também votou por unanimidade em outubro, a anexação de quatro oblasts de Donbass: as regiões de Donetsk, Lugansk, Zaporizhzhya e Kherson, após um plebiscito organizado pelas autoridades russas de ocupação.

É a escalada política mais decisiva de toda a guerra, porque com ela a Rússia deita para trás das costas qualquer hesitação e implicitamente anuncia a sua firme disposição de comprometer todos os seus recursos estratégicos até ao fim para obter a vitória sobre a Ucrânia e seus aliados. Para que a Rússia se retire da anexação, devolvendo à Ucrânia os territórios que formalmente se tornaram território nacional da Federação Russa, a Ucrânia e seus aliados teriam que infligir uma derrota decisiva a toda a Federação Russa e fazê-la capitular.

Escalada militar russa. Bombardeio de propósito duplo de alvos militares e civis

A Rússia reconfigura o dispositivo militar em torno da unidade de comando e consolida a frente, enquanto a mobilização dos reservistas ocorre no meio de diversas dificuldades (é a primeira mobilização em oitenta anos e o aparato administrativo e logístico russo não está pronto; milhares dos russos atravessam as fronteiras para evitar o recrutamento).

O Comandante General Surovikin decide sobre escalada militar. Pela primeira vez, alvos civis e militares de uso duplo, em particular a rede elétrica ucraniana, mas também infraestruturas gerais como ferrovias, fábricas, depósitos de material militar e civil, etc., são afetados por uma série incessante de bombardeios de mísseis. A Rússia não ataca civis, mas ao atacar a infraestrutura causa sérios transtornos à população, põe em risco o curso normal da vida quotidiana e, obviamente, causa “danos colaterais”, vítimas civis atingidas por engano pelos seus mísseis e pelo fogo antiaéreo ucraniano.

O general Surovikin também toma a decisão, politicamente difícil e impopular mas correta, de abandonar Kherson, um importante centro formalmente anexado ao território nacional russo, e retirar as tropas que o ocupam para a margem sul do rio Dnieper. A decisão operacional permite não desperdiçar forças evitando uma contra-ofensiva num ponto sensível, mas concentrar esforços no Donbass. Isso levará a resultados concretos benéficos no campo de batalha.

Guerra de manobra, guerra de desgaste. O exemplo histórico da Operação Barbarossa

A “guerra de manobra”, em alemão Bewegungskrieg (guerra de movimento), é o oposto simétrico da “guerra de atrito”, Stellungskrieg, (guerra de posição). Cada guerra combina, em porcentagens diferentes, manobra e desgaste. A guerra de atrito visa desgastar gradualmente as capacidades de combate do inimigo com a aplicação sustentada e constante da força superior. A guerra de manobra visa destruir rapidamente as capacidades de combate do inimigo, criando e explorando habilmente o Schwerpunkt, ou seja o ponto de viragem vital mais fracamente defendido da formação inimiga, contra o qual um ataque rápido e decisivo é lançado.

A vantagem da manobra sobre o desgaste parece óbvia: a manobra oferece a possibilidade de uma vitória rápida e decisiva, mas também ameaça a possibilidade de uma derrota igualmente rápida e decisiva, porque atacar é sempre arriscado e o inimigo sempre pode responder.

Como aponta Clausewitz, não existe “ciência da vitória”, e a lógica que rege a guerra não é linear mas paradoxal, como ilustra o ditado romano “si vis pacem para bellum” (se queres a paz prepara-te para a guerra). A guerra de manobras é utilizada por exércitos que sofrem uma clara desvantagem na guerra de desgaste: são exércitos menos numerosos, com capacidades materiais ou logísticas inferiores às do inimigo.

Nesta fase do conflito ucraniano, que nas duas fases anteriores viu uma combinação de manobra e desgaste, a guerra estabiliza-se na forma de uma “guerra de atrito”, o tipo de conflito onde mais pesa a disparidade de recursos estratégicos entre os contendores. De fato, na guerra de atrito, o que mais conta para a vitória é a capacidade de fornecer forças humanas e materiais de forma sustentável. É onde a Rússia tem a maior vantagem sobre a Ucrânia.

A vantagem russa é reforçada por um fato político essencial: a Ucrânia é totalmente dependente do apoio ocidental, e os líderes ocidentais devem justificar o crescente custo político e económico desse apoio para a opinião pública e para o seu eleitorado. Assim, os ucranianos são obrigados, por motivos políticos, a enviar constantemente tropas, mesmo insuficientes ou despreparadas, para a linha de contacto com os russos, mantendo vivo o conflito, renovando no Ocidente a admiração pela sua resiliência e alimentando a convicção de que a vitória final da Ucrânia é possível.

Do ponto de vista militar, os ucranianos deveriam realmente fazer uma pausa, reorganizar as suas reservas, reforçá-las e treiná-las, e economizar homens e equipamentos para futuras contra-ofensivas. Com efeito, uma potência com recursos estratégicos claramente inferiores ao seu inimigo só pode esperar derrotá-lo com uma hábil, agressiva e rápida guerra de manobra, especialmente rápida: numa guerra de atrito, o tempo corre a favor da potência com maiores recursos estratégicos.

Foram essas considerações fundamentais que ditaram a maneira como o poder militar prussiano, e posteriormente alemão, se desenvolveu e organizou, ou seja, na Prússia estavam os mestres da guerra de manobra agressiva e rápida.

Historicamente, tanto a Prússia quanto a Alemanha tiveram que lidar com a sua própria situação geopolítica: exposição em várias frentes no centro da Europa, fronteiras desprotegidas por obstáculos naturais, recursos naturais e humanos limitados; e, portanto, decidiram resolver esta difícil equação desenvolvendo um aparato militar altamente preparado para travar guerras de manobra rápida com grande agressividade e habilidade. Exemplos dos sucessos do estilo germânico são a magistral Blitzkrieg contra a Polónia e a França na Segunda Guerra Mundial.

No entanto, o fracasso da Operação Barbarossa também é exemplar. A Alemanha invadiu a URSS, obtém vitórias esmagadoras por seis meses, mas não consegue causar o colapso político e social do inimigo e chega ao limite das suas capacidades logísticas. A URSS não capitula, ela reorganiza-se e passa a gerar forças humanas e materiais cada vez maiores e superiores às forças que a Alemanha é capaz de gerar. Serão quatro anos de amargo conflito, mas o destino da Alemanha está selado.

Deve notar-se que na época da Operação Barbarossa todos os Estados-Maiores do mundo, deslumbrados com os esplêndidos sucessos alemães, deram como certa a vitória da Wehrmacht. Mas isso só poderia ter acontecido se a URSS tivesse entrado em colapso após os primeiros meses de derrotas devastadoras. A Operação Barbarossa foi, portanto, uma arriscada aposta estratégica, em que a vitória final dependia inteiramente do colapso da coesão política, militar e social do inimigo. O Alto Comando Alemão, por sua vez, não levou em conta tanto os recursos estratégicos da URSS quanto, e sobretudo, a sua capacidade de gerar novas forças, durante o tempo necessário para encerrar a guerra. vitoriosamente.

É o mesmo tipo de erro que o alto comando ocidental cometeu neste conflito ucraniano.

Eles subestimaram enormemente os recursos atuais da Rússia: esse erro da inteligência militar ocidental explica as constantes alegações de que “a Rússia está prestes a ficar sem reservas de mísseis e projéteis de artilharia”. Esse tipo de desinformação tem-se tornado cada vez mais grotesco e desconectado da realidade; o Ocidente subestimou seriamente a capacidade da Rússia de gerar novas forças humanas e materiais a curto e médio prazo: daí a avaliação incorreta do impacto das sanções económicas sobre a Rússia, erroneamente acreditada; eles também subestimaram seriamente a coesão política e social da estrutura russa, a sua vontade de lutar e de se mobilizar: isso também explica os anúncios cada vez mais ridículos de um derrube iminente do governo russo por setores da classe dominante.

QUARTA FASE DE TRANSFORMAÇÃO DA GUERRA (FIM DO OUTONO 2022 – INVERNO 2022/23). DUAS FACÇÕES NA LIDERANÇA DOS EUA: ESCALADA OU DESCALADA? TRÊS FACTOS SIGNIFICATIVOS. ESTIMATIVAS DE PERDAS PARA UCRÂNIA E RÚSSIA. PREVISÕES. A DUPLA ARMADILHA ESTRATÉGICA

Considero a fase atual da guerra transformadora porque só nesta fase vem à tona a sua natureza de dupla armadilha estratégica. Na quarta fase da guerra, três eventos significativos ocorrem.

Sabotagem Northstream 2

Em novembro de 2022, uma sabotagem submarina desativou o Northstream 2, o gasoduto construído para transportar metano russo para a Alemanha através do Mar Báltico, contornando a Ucrânia. A investigação imediatamente parou, devido à impossibilidade política de identificar os autores: de facto, a lógica sugere que os Estados Unidos são os responsáveis ​​​​pelo ataque.

A operação é provavelmente o resultado de uma colaboração entre a Marinha Real, as forças especiais britânicas e polacas. Motivo da sabotagem: a classe dominante alemã está cada vez mais preocupada com os efeitos desastrosos de longo prazo (desindustrialização progressiva da Alemanha) e a cessação do fornecimento barato de energia russa.

A sabotagem do gasoduto é um verdadeiro ato de guerra contra a Alemanha, destinado a intimidá-la a alinhar-se sem hesitação com a estratégia de oposição frontal à Rússia decidida pelos Estados Unidos. A intimidação é bem-sucedida. A Alemanha está intimidada. O único estado europeu que não adere à linha americana é a pequena Hungria; na NATO, o único estado com alto grau de autonomia política é a Turquia.

Declarações públicas do general Milley, chefe do Estado-Maior Conjunto dos EUA

Em novembro, e novamente em dezembro de 2022, o general Mark Milley, presidente do Estado-Maior Conjunto dos EUA, emite declarações públicas informais, pedindo a abertura de negociações diplomáticas com a Rússia e afirmando que “não se pode pedir mais aos ucranianos”.

Os comentários improvisados ​​de Milley são uma indicação clara de que duas grandes facções estão em desacordo nos centros de tomada de decisão dos EUA: uma centrada no establishment bipartidário da política externa, a favor da continuação da guerra na Ucrânia até ao fim; e outra, articulada no Pentágono, a favor da desescalada do conflito.

O facto de Milley comunicar publicamente suas posições mostra que, no debate dentro da Administração dos Estados Unidos, a posição do Pentágono é minoritária, e que o choque entre as duas posições é muito amargo.

Como prova adicional da existência desses dois alinhamentos dentro da liderança americana, um estudo muito recente publicado pela RAND Corporation ( Evitando uma longa guerra: a política dos EUA e a trajetória do conflito Rússia-Ucrânia ), analisa, do ponto de vista de o interesse nacional dos EUA, os custos de um prolongamento da guerra na Ucrânia, e recomenda a desescalada e o estabelecimento cauteloso de um processo diplomático que leve a uma conclusão negociada do conflito. A RAND Corporation é um importante e prestigioso think tank que desde sua fundação realiza análises e projetos, sobretudo para o Pentágono.

Reconfiguração da estrutura de comando russa, anúncio da reforma das forças armadas russas

Em janeiro de 2023, o governo russo reconfigurou o comando militar das operações na Ucrânia e anunciou uma reforma estrutural mais geral de suas Forças Armadas. O soldado russo de mais alta patente, General Gerasimov, Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas Russas, recebe o comando geral das operações na Ucrânia, enquanto o General Surovikin reassume o seu papel anterior como Comandante das Forças Aeroespaciais.

O governo restaura os distritos militares de Moscovo e de Leninegrado, ordena a formação de um novo grupo do exército na Carélia, na fronteira finlandesa, e a criação de doze novas divisões do exército. Também anuncia que até 2026 aumentará o tamanho de seus meios militares permanentes, elevando-os para 1,5 milhão de homens.

Os principais líderes russos começam a declarar publicamente que a guerra em curso na Ucrânia é, de facto, uma guerra entre a Rússia e a NATO. Essas declarações públicas sem precedentes também têm, como sempre na guerra, valor de propaganda interna, mas interpretadas à luz das reformas militares em curso, sugerem, com alto grau de plausibilidade, que os governantes russos estão a preparar-se para o pior cenário, ou seja, para uma intervenção direta das forças ocidentais no conflito ucraniano.

A guerra de desgaste continua. Estimativas de perdas ucranianas e russas

Enquanto isso, a guerra de desgaste continua em solo ucraniano. Os ataques com foguetes contra a infraestrutura civil e militar de uso duplo da Ucrânia continuam. O dispositivo militar russo é consolidado nas posições defensivas ocupadas e fortalecidas após a retirada.

A formação dos reservistas reformados continua e é aperfeiçoada, e a logística adapta-se gradualmente à chegada dos reforços e à continuação dos intensos e constantes ataques de mísseis. Os departamentos russos lançam ataques incrementais contra as linhas defensivas ucranianas, com uso reduzido de tropas e fogo de artilharia intenso e prolongado, para limitar ao máximo as suas perdas. Os ucranianos, continuam presos à necessidade política de atacar o mais rápido possível, para justificar o apoio ocidental,

É impossível, enquanto durar a guerra, ter dados confiáveis ​​sobre as perdas. Enquanto escrevo, no final de janeiro de 2023, fontes ocidentais como a Strategic Forecasting, uma importante agência de inteligência que frequentemente colabora com a CIA, falam de mais de 300.000 ucranianos mortos e perdas irrecuperáveis ​​totais de cerca de 400.000 homens.

As estimativas ocidentais não oficiais mais recentes de perdas russas irrecuperáveis ​​falam de 20.000 mortos e 30.000 feridos graves. Mesmo com todas as precauções necessárias, é bem provável que a relação entre as perdas da Ucrânia e as perdas da Rússia esteja entre 10:1.

Nas grandes batalhas da Segunda Guerra Mundial, a taxa de baixas entre o perdedor e o vencedor girava em torno de 1,3 – 1,5 para 1. O exército ucraniano não parece capaz de preparar uma contra-ofensiva em grande escala num futuro próximo: por ter sofrido um elevado número de baixas, especialmente oficiais veteranos e suboficiais; pela escassez de material bélico, apesar dos renovados carregamentos de armas ocidentais; pela crescente desorganização das estruturas de comando militar; e, pela degradação crescente e progressiva das condições económicas e sociais de toda a Ucrânia.

Eleições operacionais do Alto Comando Russo. Previsões.

Em síntese, na quarta fase da guerra começa a ficar claro que o aparato militar russo alcançou, ou está prestes a atingir, as condições necessárias e suficientes para dar ao conflito o rumo desejado por seu comando militar e político.

Claro, apenas o Alto Comando Russo sabe qual é esse rumo, mas atualmente parece ser capaz de:

Um: continuar a guerra de desgaste, aplicando constantemente a sua força superior no aparato militar ucraniano e em toda a sociedade e economia ucranianas: economizando assim o seu recurso mais precioso, os homens. Os homens são o ativo mais valioso da Rússia politicamente, por razões óbvias reforçadas pelas próximas eleições presidenciais russas de 2024. Eles também são o ativo mais valioso da Rússia militarmente, e especialmente os veteranos, que precisam treinar reservistas, nenhum dos quais com experiência direta em cargos tão elevados. guerra de intensidade (ninguém no mundo a tem exceto aqueles que nela participaram, de um lado ou do outro).

Dois: Partir para a ofensiva em larga escala, numa ou mais linhas. Objetivos estratégicos previsíveis, aniquilação progressiva da capacidade de combate do exército ucraniano; a reconquista das porções territoriais dos quatro oblasts anexados à Rússia e tomados pela Ucrânia após a retirada russa; a ocupação e a anexação de Odessa e de todo o território de Novorossiya à Rússia, a fim de excluir a Ucrânia do acesso ao mar.

Provavelmente, nas avaliações do alto comando russo estão presentes, e não em segundo plano, as previsões da reação ocidental a uma e outra decisão operacional russa. Continuar a guerra de desgaste permite que os líderes ocidentais adiem decisões político-estratégicas sobre escalada ou desescalada e provavelmente beneficiará a facção pró-desescalada, dando-lhe tempo para se organizar melhor, encontrar aliados, divulgar os seus argumentos.

Passar à ofensiva os força a escolher rapidamente, muito rapidamente, se o ataque pretende ter um êxito claro. A facção dos EUA a favor da desescalada continua sendo uma minoria: a situação no terreno favorece-a, mas carece do apoio aberto de pelo menos um dos mais importantes aliados europeus.

Na minha opinião, é vantajoso para a Rússia evitar uma aceleração do conflito, tanto pelos riscos de fracasso quanto pelos custos humanos – sempre associados a ações ofensivas de grande escala. Isso pode mudar por decisão do “partido da guerra” que, aproveitando um choque emocional, poderia iniciar uma participação direta e formal das forças ocidentais no campo de batalha, por exemplo, com a ação de uma “coligação de vontades” proposta em novembro de 2022 pelo General (ret.) David Petraeus. Ou seja, com tropas polacas, romenas, bálticas, que interviriam sob suas próprias bandeiras, mas não como membros da NATO, a partir de um pedido de ajuda militar do governo ucraniano: uma manobra legal para evitar o conflito direto entre a NATO e a Rússia,

Então, se eu tiver que arriscar um palpite, diria que a Rússia continuará a guerra de desgaste por muito mais tempo.

Vitória decisiva apenas para a Ucrânia. Vitória decisiva com intervenção ocidental direta. chance e probabilidade

Em suma, um ano após o início da guerra, está claro que uma vitória militar decisiva da Ucrânia sobre a Rússia é materialmente impossível, mas a ajuda ocidental pode continuar, ou mesmo aumentar, nas suas formas atuais. A situação só pode mudar com a participação direta das tropas ocidentais.

No entanto, surgiram dúvidas entre as lideranças político-militares ocidentais de que uma participação direta das tropas ocidentais na guerra não seria suficiente para garantir uma vitória decisiva sobre a Rússia. Acima de tudo, as dúvidas são militares: é por isso que a facção dos EUA a favor da desescalada se sedia no Pentágono.

Razões:

A atual estrutura militar da NATO, incluindo os Estados Unidos, não está projetada e preparada para uma guerra convencional de alta intensidade contra um inimigo capaz de travá-la, como a Rússia. Desde o fim da Guerra Fria, todas as nações da NATO reduziram drasticamente as suas forças militares, desmantelaram grande parte das suas instalações logísticas, direcionaram a construção e treino das suas forças armadas e a produção das suas indústrias militares para conflitos de curta duração contra inimigos. geralmente pertencentes ao “Grande Sul do mundo”; uma decisão inteiramente razoável, até que a NATO se opôs à Rússia, que de fato não a ameaçou de forma alguma.

A Rússia, por sua vez, estruturou as suas forças armadas e a sua indústria militar com vista a uma guerra defensiva contra a NATO, tradição histórica de um país que sempre teve de enfrentar e repelir grandes invasões ao seu território. Até agora privilegiou a defesa de último recurso, a tríade nuclear mas, como prova a guerra na Ucrânia, não abandonou a preparação convencional e está a reforçá-la. Ela também ganhou uma relativa superioridade sobre os Estados Unidos em áreas cruciais, como mísseis e defesa aérea. Leva-se anos a compensar tal deficiência.

Um rearmamento ocidental é muito difícil, o seu resultado incerto, os tempos longos. O financiamento, mesmo o crowdfunding, não chega: o dinheiro só compra o que já existe, e o que já existe não chega. Para fazer existir o que falta, é preciso primeiro determinar politicamente a estratégia de segurança coletiva da NATO, processo muito complicado e difícil também pela fragmentação dos centros de decisão.

Se o principal inimigo da NATO é a Rússia, é essencial, no mínimo e apenas para começar: construir um grande número de caças-bombardeiros para serem usados ​​em apoio à infantaria, e capazes de sobreviver às defesas antimísseis russas; construir a infraestrutura logística necessária para uma grande projeção de forças em caso de crise, com o planeamento correspondente; lançar um grande programa de defesa antiaérea integrada do território europeu; lançar um vasto programa de recrutamento e formação de tropas, especialmente oficiais e suboficiais.

Neste sentido, há que ter em conta que a renúncia por parte dos países da NATO ao serviço militar obrigatório tem levado à perda de enormes reservas treinadas a que se pode recorrer em caso de necessidade. Basicamente, no caso de uma guerra que nos envolva (por muito tempo e com perdas significativas), mobilizações como as convocadas por Moscovo e pela Ucrânia são quase impossíveis nos países da Europa Ocidental. É bom ter em mente que a renúncia de recrutamento por parte de todos os países da NATO levou à perda de enormes reservas treinadas, às quais se poderia recorrer em caso de necessidade.

Obviamente, o envolvimento direto do Ocidente na guerra impediria os Estados Unidos de se concentrarem em conter a China, solidificaria a aliança desta última com a Rússia, exporia os Estados Unidos a uma possível guerra em duas frentes contra duas grandes potências nucleares e aumentaria progressivamente o risco das armas nucleares aparecerem no conflito.

Quanto mais direto e intenso for o conflito convencional entre as duas grandes potências nucleares como a Rússia e os Estados Unidos, mais provável é que o contendor que acredite estar sujeito a uma provável derrota decisiva, considere seriamente o uso de armas nucleares.

Igualmente óbvio, num conflito direto entre as forças ocidentais e a Rússia, as baixas ocidentais chegariam a dezenas de milhares, um custo humano difícil de justificar politicamente.

Uma armadilha dupla estratégica

Com a expansão da NATO para o Leste, e insistindo em incluir a Ucrânia, os Estados Unidos armam uma armadilha estratégica à Rússia, obrigando-a a escolher entre duas alternativas, ambas muito perigosas a médio e longo prazo: aceitar a proibição de ter uma esfera de influência e aceitar a presença ameaçadora de uma fortaleza militar ocidental no limiar da Rússia européia; ou intervir militarmente, assumindo o grave risco de um conflito com a NATO, e comprometendo as suas próprias relações políticas e económicas com a Europa. Esta é a primeira “mandíbula” da armadilha estratégica em que a Rússia entrou de olhos abertos, depois de quatorze anos tentando evitá-la.

No entanto, os Estados Unidos subestimaram seriamente as capacidades de reação e resistência militares, económicas, políticas e sociais da Federação Russa e também superestimaram tanto o prestígio dissuasor de sua força quanto a sua atual capacidade e potencial militar e económico. Portanto, eles são forçados a escolher entre duas alternativas, ambas muito perigosas a médio e longo prazo.

A primeira alternativa é a redução de danos, uma desescalada do conflito ucraniano que se traduz numa clara derrota político-diplomática, um forte descrédito dissuasivo, a possível abertura de uma crise por falhas no sistema de alianças e graves retrocessos políticos internos, por exemplo, uma grave deslegitimação geral da classe dominante.

A segunda alternativa é a fuga para a frente, uma escalada total do conflito, com a possível – na verdade provável, porque necessária – participação direta das tropas ocidentais; o risco de uma guerra convencional de alta intensidade para a qual os Estados Unidos e a NATO não estão preparados; o possível envolvimento futuro do território nacional dos Estados Unidos e, em perspectiva, a crescente possibilidade de uma degeneração nuclear do conflito.

A segunda “mandíbula” dessa dupla armadilha estratégica está agora a fechar-se para os estrategas americanos que a implementaram: eles entraram com os olhos fechados e só agora começam a vê-la.

Athes, a deusa que cega os líderes, a princípio os seduz com gestos amigáveis, mas depois os arrasta para redes onde não há esperança de fuga para eles” (Ésquilo, Os Persas, 96-100).

Podem encontrar o artigo original em: https://observatoriocrisis.com/2023/02/02/resumen-razonado-de-un-ano-de-guerra-en-ucrania/


Nota

[1] Charap, Samuel e Miranda Priebe, Evitando uma longa guerra: a política dos EUA e a trajetória do conflito Rússia-Ucrânia. Santa Monica, CA: RAND Corporation, 2023. https://www.rand.org/pubs/perspectives/PEA2510-1.html

Resumo do trabalho da Organização Rand: “A discussão da guerra russo-ucraniana em Washington é cada vez mais dominada pela questão de como ela pode terminar. Para informar essa discussão, essa perspectiva identifica as maneiras pelas quais a guerra poderia evoluir e como trajetórias alternativas afetariam os interesses dos EUA.

Os autores argumentam que, além de minimizar os riscos de uma escalada séria, os interesses dos EUA seriam mais bem atendidos ao evitar um conflito prolongado. Os custos e riscos de uma guerra prolongada na Ucrânia são significativos e superam os benefícios potenciais de tal trajetória para os Estados Unidos. Embora Washington não possa determinar a duração da guerra em si, pode tomar medidas que tornem uma eventual conclusão negociada para a guerra mais provável. conflito. Baseando-se na literatura sobre o fim da guerra, os autores identificam os principais obstáculos para as negociações Rússia-Ucrânia como otimismo mútuo sobre o futuro da guerra e pessimismo mútuo sobre as implicações da paz. A perspectiva destaca quatro ferramentas políticas que os Estados Unidos poderiam usar para mitigar esses obstáculos.


portugueseman.blogspot.com (08fev2023)

Guerra Global: O Ataque ao ‘Nord Stream’


Este blogue está muito focado nos conflitos energéticos entre grandes potências. E sempre dediquei bastante atenção aos novos gasodutos Nord Stream/South Stream/Turquish Stream.

Na conclusão do Nord Stream 2, suspeitei que fosse o início de muita coisa e falei sobre isso em 2021 (Nord Stream 2: A Conclusão Dos Pipelines Para a Europa). Esta ligação é estratégica entre a Rússia e a Alemanha. Demasiado estratégica para os gostos dos EUA.

A partir da conclusão deste pipeline, temos o ultimato da Rússia aos EUA, o início da guerra na Ucrânia e posteriormente o ataque aos gasodutos.

As investigações sobre o ataque passaram a ter resultados secretos. Se alguns países conseguiram identificar os países envolvidos estão de boca selada. Razão? É um acto de guerra. Alguém cometeu um acto de guerra contra a Alemanha e a Rússia. Convém lembrar que a Rússia é uma super-potência nuclear e alguém arrisca-se, caso seja identificado a estar em guerra com uma super-potência.

Eu falei sobre isto e sobre as minhas suspeitas no post Guerra Na Europa: O Ataque À Alemanha e rematei com o seguinte:

Possivelmente, dia 26 de Setembro de 2022, marca o início de uma nova grande guerra na Europa.

Hoje, um jornalista de renome e que no passado descobriu uma série de escandalos sobre acções americanas lança uma bomba sobre o assunto.

How America Took Out The Nord Stream Pipeline

The New York Times called it a “mystery,” but the United States executed a covert sea operation that was kept secret—until now...

[Link]

A coisa deverá estar a ser levada a sério, pois a Casa Branca, já correu a dizer que é falso.

White House says blog post on Nord Stream explosion 'utterly false'

The White House on Wednesday dismissed a blog post by a U.S. investigative journalist alleging the United States was behind explosions of the Nord Stream gas pipelines as "utterly false and complete fiction."

Reuters has not corroborated the report, published by U.S. investigative journalist Seymour Hersh, which said an attack was carried out last September at the direction of President Joe Biden...

[Link]

Jornalista de investigação diz que Marinha dos EUA fez explodir Nord Stream

As alegações de Seymour Hersh foram desmentidas pela Casa Branca. Os dois gasodutos que ligam a Rússia à Europa Central sofreram danos devido a explosões em Setembro...

... O trabalho de Hersh foi feito a partir de relatos de apenas uma fonte anónima “com conhecimento directo do planeamento operacional” da missão.

O jornalista ganhou notoriedade em 1970, quando revelou o massacre de My Lai, no Vietname, cometido pelas forças norte-americanas, pelo qual recebeu o Prémio Pullitzer. Mais recentemente, Hersh divulgou pormenores sobre os abusos de direitos humanos cometidos contra suspeitos na prisão de Abu Ghraib, no Iraque, operada pelos EUA.

A porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros russo, Maria Zakharova, disse que “a Casa Branca deve comentar todos estes factos”, referindo-se às alegações publicadas por Hersh...

[Link]

Isto tem o potencial de desatar alguns nós na actuação da Rússia. Se forem encontrados os sabotadores, a questão não será a reacção da Alemanha. A grande questão será a reação da Rússia para quem se atreveu a fazer isto.

E suspeito que a resposta terá que ser algo grande. Estratégicamente grande.

Daquelas que se podem perder o controlo sobre a evolução dos acontecimentos.

E que toda a gente sabe, no que costuma dar.

Definitivamente, um assunto a acompanhar.

NA FARMÁCIA DO EVARISTO

Na Farmácia do Evaristo, admirável conto de filosofia política de Fernando Pessoa (1888-1935), é um texto perturbador e incomodativo: está vivo.

E quem o lê, percebe porquê: é que às vezes dói.

Foi escrito em 1925…quase 50 anos antes do ‘25 do 4’.

Fernando António Nogueira Pessoa foi um poeta, filósofo, dramaturgo, ensaísta, tradutor, publicitário, astrólogo, inventor, empresário, correspondente comercial, crítico literário e comentarista político português. Fernando Pessoa é o mais universal poeta português.


SINOPSE

Que ‘Farmácia do Evaristo’ teria Fernando Pessoa escrito sobre o 25 de Abril, com a sua trémula mão dos 85 anos, se ainda estivesse vivo nesse «dia inicial inteiro e limpo» de 1974?

Uma coisa é certa, escreveria. São inúmeros os textos de Fernando Pessoa sobre os acontecimentos políticos a que assistiu.
Na farmácia do Evaristo, encontram-se cidadãos mais ou menos comuns, que, em diálogo, reagem, comentam e dissecam a tentativa de golpe de Estado de 18 de Abril de 1925.

Para além de Evaristo, entram na conversa Mendes, um republicano democrático, o Justino dos coiros, o Canha das barbas, o coronel Bastos e José Gomes, mais conhecido por Gomes Pipa, que passa a dissecar o sistema eleitoral, a organização dos partidos e a condução destes por directórios minoritários.
Se entramos na Farmácia com certezas, saímos dela com dúvidas e perplexidades. Na Farmácia do Evaristo, admirável conto de filosofia política de Fernando Pessoa, é um texto perturbador e incomodativo: está vivo.

E quem o lê percebe porquê: é que às vezes dói.

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NA FARMÁCIA DO EVARISTO

Era uma tarde de domingo. Acabara, na manhã desse dia, o movimento militar de 18 de Abril. Estava restaurada a ordem visível. Em todas as caras se via o aborrecimento e o mal-estar que a imprensa do dia seguinte havia de chamar "a alegria que se lia em todos os rostos", o que é possível num país onde tão pouca gente sabe ler.

A farmácia do Evaristo, que estivera sempre aberta, começou a receber os seus estacionários do costume. A conversa misturou-se, simultânea e prolixa. A voz alta do Mendes, republicano democrático, erguia-se congratulatória. Nisto assomaram à porta os dois habituais que ainda faltavam. Um saudação geral os acolheu.

O José Gomes, mais conhecido por o Gomes Pipa, entrou lentamente na farmácia. Das duas razões da sua alcunha, uma estava à vista no bojo formidável da sua corpulência. A outra, se alguém a quisesse saber, sabê-la-ia logo nas palavras que vinha dizendo, Acompanhava-o o Justino dos coiros. O Gomes vinha limpando a boca.

— Já tenho bebido melhor...

— Pois sim, mas não é mau...

— Não, mau, mau não é... — Aqui este tipo defronte — pena é estar fechado — é que tem um vinho branco...! Então já está tudo sossegado?

—Tudo, disse o Mendes.

— E o amigo Mendes contente com o restabelecimento da ordem, ham?

— Pois é claro...

— E com a conduta das tropas fiéis — isto é, fiéis àquilo a que foram fiéis?...

— Àquilo a que foram fiéis? Ao governo, que é a quem tinham obrigações de ser fiéis. Ao governo, a ordem, à disciplina, às instituições! Portaram-se bem. mas não fizeram senão a sua obrigação.

— Folgo muito, Sr. Mendes, disse o Gomes sentando-se num banco e puxando pela bolsa do tabaco; folgo muito, como amigo da ordem, em vê-lo apreciar devidamente a fidelidade ao dever jurado e à obrigação militar.

— Não vejo razão para folgar tanto! Como não pode haver dúvida que eles fizeram bem cumprindo o seu dever de militares, e até de cidadãos, não é de estranhar que se ache bem que eles o cumprissem...

- Sim, senhor, respondeu o Gomes Pipa. Mas não é só por isso que eu folgo com o seu aplauso a eles e com o seu justo apreço da fé jurada e do dever militar. Folgo sobretudo, como monárquico, com a condenação, que com isso o sr. fez, da revolução e dos revolucionários do 5 de Outubro.

— Hem? O quê? Do 5 de Outubro?

O Gomes enrolou lentamente o seu cigarro vulgar.

— Sim, do 5 de Outubro. Os militares e marinheiros, que no 5 de Outubro se revoltaram, tinham jurado, como estes, manter a ordem e defender as instituições, que eram então as monárquicas. E como estes fizeram bem mantendo-se firmes ao seu juramento e ao seu dever militar, aqueles fizeram mal faltando ao deles. É com esta sua opinião que eu folgo. Estimo-a pela imparcialidade, vindo, como vem, de um republicano.

— Perdão... Não é nada disso... O 5 de Outubro é um caso diferente..

— Diferente? Diferente em quê? — E o Gomes suspendeu calmamente o acendimento do seu cigarro.

— No 5 de Outubro a revolução nasceu de um impulso nacional, correspondeu, por assim dizer, a um mandato imperativo da nação inteira, ou, pelo menos, da sua enorme maioria. Tanto assim que o movimento venceu com facilidade, e com torças aparentemente insuficientes...

— O ter vencido com forças aparentemente insuficientes não é argumento, meu amigo. Num país que não está numa situação brilhante de disciplina e de ordem, corno então acontecia, e com um governo fraco ainda por cima, um movimento revolucionário, desde que passe de uni simples motim, facilmente vencerá, pela repugnância que há em combater compatriotas, e pela falta de hábito em fazê-lo, para que se vença essa repugnância. Deixemos isso da vitória fácil... Ou o sr. pretende basear na facilidade dessa vitória o único argumento a favor do carácter nacional do 5 de Outubro? Se vamos a isso, com muito mais facilidade venceu o chamado "movimento das espadas", com que foi ao poder o Pimenta de Castro, sendo portanto consideravelmente mais nacional.

— O movimento das espadas foi um movimento exclusivamente militar, tomou toda a gente de surpresa...

— Exactamente. É isso que eu digo... Basta tomar de surpresa, apanhar os outros sem preparação condigna para vencer, sem que a vitória representa mais que os outros não estarem prontos...

— Espera lá: não é só isso... O movimento das espadas, repito, foi exclusivamente militar; no 5 de Outubro entraram muitos civis...

— Isso quer dizer simplesmente que havia civis que estavam na conspiração, e, se estavam, é natural que viessem para a revolução também. E quanto a outros quaisquer, logo que os armassem, porque não entrariam?... Mas eu não nego que o partido republicano tivesse em 1910 partidários bastantes para poderem entrar bastantes civis na revolução... O que nego é aquilo em que o sr. pretende basear a sua justificação da traição e da aleivosia dos militares e marinheiros (para não falar nos civis) que entraram na revolução de 5 de Outubro. O sr. diz que essa traição se justifica pelo facto de o 5 de Outubro ser um movimento nacional, uma espécie de mandato imperativo da nação. E o sr. não me citou argumento nenhum que provasse esse carácter nacional do movimento, nenhum argumente pelo qual esse movimento se distinga de qualquer outro movimento em que entrem militares, faltando à sua obrigação e ao seu juramento, e civis, porque estavam combinados para entrar ou foram armados para que entrassem. O próprio facto, que o sr. citou, de o movimento ter tido poucas forças — de aí, diz o sr. o ser de pasmar que ele vencesse, mas eu já lhe expliquei isso —, o próprio facto, repito, de o sr. dizer que o movimento se fez com pouca gente não é com certeza a melhor maneira de provar que ele representasse um mandato imperativo da nação, ou uma aspiração nacional a realizar-se.

— Talvez, Sr. Gomes, eu me exprimisse mal... Exprimi-me mal, com certeza... É atmosfera, o ambiente, do movimento que provaram bem o seu carácter nacional...

- Oh, amigo Mendes, isso não serve... Reduza lá isso das atmosferas e dos ambientes a qualquer coisa mais visível. Há-de haver por força sinais evidentes, distintivos, de se um movimento é nacional ou não. Essa atmosfera, esse ambiente, hão-de reflectir-se em qualquer coisa de concreto, de palpável... Refere-se o sr. por acaso à circunstância, que na verdade se deu, de o movimento ter sido acolhido, em geral, com uma certa simpatia?

— Sim, isso, por exemplo... O que é que isso prova senão que...

— Prova que toda a gente tinha um medo medonho da revolução republicana, julgando, pela falta de prática de revoluções, que caíam este mundo e o outro quando uma revolução viesse... Em comparação com o que as imaginações aterrorizadas se figuravam do que fosse uma revolução, o 5 de Outubro, que realmente foi brando e limpo, foi um alívio, como o é sempre a realidade, ainda que má, quando a imaginação a figurava muito pior.. Essa própria sensação de alívio deve ter despertado em muita gente uma certa hesitação esperançosa... Mas isso tudo, amigo Mendes, são fenómenos posteriores à revolução, ambiente sobrevindo mas não preexistente... Os mandatos, salvo erro, precedem o acto a que compelem... Um ambiente que se segue não é um ambiente que precede... Continuo, pois, a não achar aceitáveis as razões que alega para considerar o 5 de Outubro um movimento nacional...

— É difícil de explicar, realmente, mas...

— Vamos lá a ver se com o meu auxílio o sr. consegue desencaixotar a sua lógica... Vamos a um facto concreto, que realmente pode alegar-se como justificação de se chamar nacional à revolução de 5 de Outubro... Esse facto é o de ter ficado e durado a República...

— Ora exactamente, é isso mesmo.

— Não é, amigo Mendes, não é... A República tem durado, sim; mas tem durado de uma maneira irregular, cortada constantemente por movimentos vários, monárquicos e outros, e em perpétua atitude de sobressalto, de defesa e de confusão. E como esses vários movimentos não têm sido motins vulgares, de rua, mas revoluções em forma, algumas vitoriosas, em que entram regiões inteiras do país (como na restauração monárquica no Norte) e grandes forças do exército e numerosos civis, tem havido, ao que parece, ambiente e atmosfera para os dois lados. De modo que nada autoriza a que afirmemos que o 5 de Outubro teve mais "carácter nacional" que qualquer outra revolução ou revolta. O impulso nacional seria indubitável se, proclamada a República, caíssemos em paz, sem mais agitações nem revoluções, ou, quando muito, com meros pequenos motins, episódicos e incaracterísticos... Mas agora reparo que nos afastámos do nosso caso original... Mesmo que o 5 de Outubro fosse um movimento classificável de "nacional", isso nada tinha com a questão da traição e da deslealdade dos militares e dos marinheiros que o fizeram... É esse, creio eu, o ponto que estávamos discutindo

— Perdão, alguma coisa tem...

— Que coisa?

— A fidelidade ao juramento é realmente uma coisa importante. Mas há casos em que não é a mais importante de todas. Os interesses supremos da Pátria, que são o mais importante de tudo, podem prevalecer, se for preciso, sobre todos os juramentos e sobre todos os compromissos de fidelidade!

— Ah, sim... É verdade: o Sr. foi germanófilo?

— Eu?!... Eu germanófilo?!... Mas a que propósito?...

— É que esse é o argumento de que se serviu von Bethmann Hollweg naquela célebre declaração em que chamou aos tratados "farrapos de papel". Os interesses supremos da Alemanha, sua pátria, estavam, disse ele, acima da fé dos tratados, isto é, do compromisso, ou juramento, escrito que um tratado representa...

— Pois sim, pois sim... Mas um tratado é uma coisa diferente...

— É apenas compromisso, ou juramento, escrito. O sr. naturalmente não vai sustentar a teoria de que é legítimo, por exemplo, a gente negar as dívidas de que se não possa apresentar documento?... Mas, enfim, isto não tem nada para o caso. O seu argumento pode ser germânico e válido: a Alemanha não está proibida, depois da guerra, de ter razão... Vamos ao argumento... Se é legitimo faltar ao juramento e é obrigação em favor e defesa dos interesses supremos da Pátria — e por interesses supremos da Pátria entende o sr. sem dúvida aquilo que os revolucionários pensavam ser os interesses supremos da Pátria porque não é legítimo nos actuais revoltosos, e em todos os outros que se têm revoltado durante a República, invocar o mesmo argumento? O sr. vê neste movimento, por exemplo, homens sérios e que se mantiveram sempre fiéis à defesa da ordem e do cumprimento da disciplina. Sirva de exemplo o tenente coronel Raúl Esteves. Para ele ter entrado neste movimento, tendo-se recusado sempre a entrar em qualquer outro dos vários para que constantemente o convidavam, o que sem dúvida pensou que a isso o compeliam os superiores interesses da Pátria. Não há, pelo menos, o direito de pensar o contrário, porque então se pode pensar o mesmo contrário dos revolucionários do 5 de Outubro. Não dou o argumento como legítimo para mim — para mim nada pode prevalecer sobre o juramento prestado —, mas dou-o como legítimo para si, visto que o emprega para defender os revolucionários do 5 de Outubro, pessoas de muito menos categoria e prestígio, aliás, que os chefes desta última revolta.

— Perdão, sr. Gomes... Eu não nego, nem preciso negar, que pudesse ser boa a intenção dos chefes desta revolta. O que afirmo é que, se a sua intenção era boa, era ao mesmo tempo errada. E tanto era errada, tanto o movimento não correspondia a uma aspiração nacional, que se deu com ele, apesar de bem planeado, uma coisa que eu ia ainda agora objectar-lhe, mas que guardei para depois para o não interromper... É que este movimento foi sufocado; falhou... E a verdadeira prova da falta de ambiente é essa: falhar...

— Tem graça: outro argumento germânico!

— Outro argumento germânico?

— Sim. Foi o filósofo alemão Hegel que inventou o argumento de que a própria vitória é a justificação da vitória, e que quem vence é que tinha direito a vencer, por isso mesmo que vence. É um argumento que andou muito em uso nos escritores militares e militaristas da Alemanha, e que tem um certo parentesco moral com aquilo de "a força supera o direito" que o (...) disse, atacando Bismarck, que podia ser a divisa dele. Mas enfim, aqui estamos no mesmo caso de ainda há pouco. Um argumento pode ser de Hegel e ser valido. O caso principal é outro. A vitória é que prova a legitimidade, o "ambiente" de um movimento? Está bem... Ora o Sidónio venceu...

— E quanto tempo durou a situação do Sidónio, Sr. Gomes?

— Durou até ao fim, como todas as coisas. Durou enquanto durou. Não durou tão pouco que isso pese como argumento, nem acabou senão porque, estando concentrada num só homem, uma simples bala, isto é, um só homem pode terminá-la. Mas, afinal, em que é que ficamos? O Sr. tinha-me dito que a vitória de uma revolta é que provava o seu ambiente. Eu já respondi em parte a isso quando respondi à sua alusão à facilidade com que o 5 de Outubro vencera; agora respondo de novo com a vitória do Sidónio. Mas o sr. fala-me agora, já não em simples vitória, mas em duração da situação criada pela vitória, o que é uma coisa diferente... Quanto tempo é que uma situação tem que durar para o sr. a considerar legítima?

— Não é o durar, meu caro senhor, é e maneira de durar...

— Também já respondi a isso... Já lhe disse que se a vida da República tivesse sido de inteira paz, se a vinda da República tivesse eliminado as dissenções importantes, se poderia com efeito considerar de carácter nacional o movimento que a implantou. Mas, como não sucede isso, mas exactamente o contrário. não vejo a que "maneira de durar" o sr. alude...

O Canha das barbas, que, do lado, sentado contra o balcão, tinha estado a ouvir atentamente o decurso da conversa, interveio de repente, depois de tossir.

— Dá-me licença, ó Gomes, o caso não é esse... Não se trata de maneira de durar nesse sentido. Se aqui o Mendes me dá licença que fale por ele, vou ver se ponho o caso mais a claro... Desde que se implantou a República tem havido, com efeito, vários movimentos revolucionários, de parte a parte, e, dos opostos à chamada "normalidade constitucional", alguns temporariamente vitoriosos. Mas, mais tarde ou mais cedo, tem-se sempre vindo a cair na linha original, isto é, na sucessão legítima dos governos republicanos, saídos de parlamentos que são eleitos, bem ou mal, segundo normas constitucionais assentes, comuns a todos os estados civilizados. Mais tarde ou mais cedo tem-se sempre vindo cair nesta "normalidade" constitucional; por isso se pode afirmar que os movimentos contra essa normalidade constitucional, falhados ou temporariamente vitoriosos, têm sido simples interrupções, sem carácter nacional. E tanto têm sido interrupções, que as situações criadas por eles, mesmo quando plenamente vitoriosos, acabam sempre por se extinguir com uma rapidez espantosa, como a situação dezembrista se sumiu pelo chão abaixo depois da morte do Sidónio. É isto, se me não engano, que o Mendes queria dizer quando se referia à "maneira de durar" dos governos republicanos constitucionalmente legítimos, e à pouca duração do regímen sidonista como prova da sua falta de carácter nacional, em comparação com esses outros governos. É isto ou não é, ó Mendes?

— Exactamente, Sr. Canha, anuiu o Mendes; é isso sem tirar nem pôr. Ainda bem que falou por mim, porque eu não punha as coisas tão certas...

— Está bem, disse o Gomes Pipa. Aquilo a que se chama normalidade governativa, seja ou não constitucional, assenta forçosamente em uma de três coisas ou na continuidade com a governação anterior ou na justificação eleitoral, ou na aceitação espontânea pelo país, haja ou não continuidade e justificação eleitoral. Pode assentar em mais que uma destas três coisas, mas pelo menos em uma tem forçosamente que assentar. E não há quarta coisa em que possa assentar.

Ora agora, meus amigos, vamos lá considerar essas coisas uma a uma. Comecemos pela mais simples, visto que não importa por qual se comece, desde que se considerem todas. A mais simples, para o nosso caso, é a de investigar se há ou não aceitação espontânea, da parte do país, da situação republicana, ou seja dos resultados da revolução do 5 de Outubro. A isso já eu respondi. Se, vinda a República, o país tivesse caído em normalidade constitucional autêntica, isto é, em ausência de revoluções, de contra-revoluções e de pronunciamentos, tão importantes que alguns têm sido vitoriosos, haveria direito a supor a aceitação espontânea, pelo país, da situação republicana. Mas, como se não dá essa circunstância, a aceitação espontânea não só se não pode presumir, mas claramente se vê que não existe. Pode, ainda, alegar-se que esses movimentos vários são golpes de audácia, sem mais sentido que serem golpes de audácia. Para que isso se pudesse alegar com razão era, porém, preciso — primeiro, que essas revoluções e revoltas não fossem constantes, sendo portanto constante o estado de anormalidade, que é o contrário de normalidade, constitucional ou outra; segundo, que essas revoluções não fossem importantes, e muito menos vitoriosas de quando em quando, o que indica que têm consigo a massa ou força suficiente para, pelo menos naquele momento, terem mais massa e força que o governo; terceiro, se se quiser alegar que esses movimentos são simples de audácia felizes, que se não pudesse alegar precisamente a mesma coisa do 5 de Outubro, feito com muito menos forças que a maioria desses outros movimentos. Não há, portanto, aceitação espontânea, pelo país, da situação republicana, nem nada que de longe se pareça com essa aceitação espontânea. Vamos ver, agora, se haverá justificação ou pela continuidade com a situação governativa anterior, ou pela ratificação eleitoral.

Comecemos pela consideração se há ou não justificação eleitoral. Ora as eleições em Portugal ou são uma burla, ou não são uma burla ou são às vezes uma burla e outras vezes não. Se são sempre uma burla, como crê a maioria da gente, desde que não esteja a mentir por obrigação partidária, então não há justificação eleitoral, e o argumento cai pela base. Se não são nunca uma burla, então são tão válidas as eleições do tempo do Sidónio como as dos períodos democráticos, sendo-o especialmente a formidável votação que elegeu o Sidónio, por sufrágio directo, presidente da República, e que foi a maior manifestação eleitoral que tem havido dentro da República. E, neste caso, o povo português é de uma volubilidade extrema e doentia, devendo ter a governá-lo, ou regímen nenhum, para haver correspondência governativa com essa volubilidade, ou um regímen monárquico ou ditatorial absoluto, para a refrear eficazmente. Se as eleições são às vezes uma burla e outras vezes não, como distinguiremos uma coisa da outra? Considerando, não só por observação directa que qualquer de nós pode fazer e tem feito inevitavelmente, mas também pelo número de revoluções de diversos tipos que tem havido, e que têm tido força bastante para se formar e às vezes para vencer, que o país se encontra dividido entre várias correntes políticas, entre as quais algumas bastante fortes, as eleições que foram menos burla serão aquelas em que a representação parlamentar se encontra mais dividida, em que os adversários da situação política se encontrem mais largamente representados, sobretudo se forem adversários do próprio regímen. Ora o único parlamento republicano onde houve uma larga representação monárquica foi o parlamento do Sidónio. Foi portanto esse o parlamento que, sem ser necessariamente eleito com absoluta seriedade, foi o que mais se aproximou dela.

O Canha das barbas interrompeu sacudidamente.

— Ora adeus, ó Gomes! Os monárquicos foram eleitos nessa proporção porque o Sidónio quis...

— Se o Sidónio quis, isso quer dizer que não usou de burlas eleitorais contra eles, e é isso mesmo que eu pretendo provar — que foram essas eleições, sem serem boas, em todo o caso as melhores que tem havido durante a República.

O Mendes interveio, encolhendo os ombros.

— O Sidónio quis, mas não foi por espírito de justiça... Quis porque os monárquicos o apoiavam, e portanto não lhe importava nada que houvesse muitos no parlamento.

— Óptimo, replicou o Gomes. Se os monárquicos não hostilizavam o próprio Sidónio, temos o ideal de um parlamento de "normalidade constitucional", em que ambas as correntes que o formam, embora entre si adversas, dão ambas apoio ao chefe do Estado. É um parlamento como o inglês, em que todas as grandes correntes, que o constituem estão de acordo na obediência e aceitação do Chefe do Estado, que ali é o Rei.

— V. esquece (disse o Canha) que os velhos partidos republicanos se abstiveram de ir às urnas nessa eleição...

— Exactamente como os monárquicos se abstiveram de ir às urnas nas eleições para as Constituintes republicanas, o que, por esse critério, tira todo o valor a essas Constituintes, que são o início "legal" da tal normalidade constitucional.

Do canto da casa, onde sempre se anichava, o coronel Bastos, reformado e matreiro, meteu a voz suave e um pouco rouca no intervalo rápido da conversa.

— Não sei porque é que o Sr. Gomes gasta tanto tempo com esse argumento, a pôr hipóteses e mais hipóteses...

— Com qual argumento, coronel?

— Com o da justificação eleitoral. Ninguém, que esteja falando inteiramente a sério e com lealdade pode apresentar esse argumento como legítimo. Está sabido e ressabido que as eleições em Portugal são sempre uma burla, e uma burla descaradíssima. Se aqui o Sr. Mendes ou o Sr. Canha viessem objectar esse argumento, equivalia a dizer que não tinham argumento nenhum. Compreendo que se queira justificar a existência da República por qualquer dos outros dois argumentos, que o sr. pôs como hipóteses, e uma das quais já refutou, mas pelo da ratificação eleitoral... francamente!...

O Gomes sorriu e voltou-se para o coronel interruptor.

- Bem vê, coronel, o dever do argumentador é expor e considerar todas as hipóteses, sejam ou não plausíveis. Se não são plausíveis, o argumento o demonstrará. É claro que estou de acordo consigo e que ninguém admite como legítimas as eleições que se fazem em Portugal. A minha obrigação de argumentador era, porém, supor que alguém as pudesse admitir a sério como legítimas e refutar esse hipotético alguém. De resto, deixe-me dizer-lhe, o argumento da justificação eleitoral e refutável de outras maneiras...

— Por exemplo?... perguntou o Evaristo.

— Por exemplo, este... Uma eleição é, ou pretende ser, uma expressão de opinião. Para que uma eleição seja, portanto, válida como expressão de opinião, é preciso que a opinião a reconheça como expressão de opinião. Ora ninguém em Portugal acredita nas eleições políticas como expressão de opinião, ou nos resultados delas como manifestando de alguma maneira a opinião, excepto no caso de alguns deputados das oposições, que têm realmente que ter consigo alguma opinião e apoio legítimo para poderem romper as malhas da rede eleitoral do governo. Ora se as eleições são tidas pela opinião de todos como não representando a opinião de todos, as eleições não são eleições e não há justificação eleitoral porque não há realmente facto eleitoral. E o constante apelo para as revoluções e para os pronunciamentos confirma isto decisivamente. Que querem dizer essas revoluções e esses pronunciamentos, no fundo, senão a falta de confiança na legitimidade dos resultados eleitorais, o reconhecimento, por toda a gente, que esses resultados eleitorais não são realmente válidos? E quando não queiram dizer isso, mas signifiquem simplesmente a vontade de saltar por cima dos resultados eleitorais, que quer isso dizer senão que não há respeito orgânico pelos resultados eleitorais; e que portanto um regímen ou situação política, para se justificar perante todos e ser tido geralmente por válido, tem que buscar outro apoio que não seja o das eleições?

— Não há dúvida, disse o Evaristo.

— Tudo isto, porém, continuou o Gomes, todos estes argumentos são dispensáveis. O verdadeiro argumento contra a justificação eleitoral por eleições das que caracterizam os regimens liberais é que essas eleições, mesmo quando feitas com seriedade moral, são organicamente uma burla política.

— Ora essa! — exclamou o Mendes. — E porquê?

— Em toda a parte, em todos os países civilizados, como disse ali o sr. Canha, as eleições, que custam muito dinheiro, que necessitam de uma propaganda insistente e hábil, de uma organização especializada, só podem ser efectuadas por organismos partidários para isso preparados, para isso habilitados, e dispondo dos fundos para isso. Assim é em Inglaterra, por exemplo, onde as eleições são, ao que dizem, moralmente limpas, e onde há uma antiga tradição representativa.. E se assim é em Inglaterra, onde as eleições são tão moralmente limpas quanto podem ser, em todos os outros países são de aí para pior. O facto é, porém, que, à parte um outro deputado independente, que, em geral, por uma questão de influência local — que pode, aliás, ser puro caciquismo, como se costuma dizer —, só os partidos organizados é que fazem as eleições e elegem os candidatos, dispondo assim, por fim, não da maioria, mas da enorme maioria ou quase totalidade da assembleia representativa resultante. O eleitor não escolhe o candidato; escolhe entre candidatos que lhe apresentam os partidos e, se embirra com todos, não vota, e os partidos ganham da mesma maneira. Ora os partidos são dirigidos e orientados por directórios, ou como quer que se lhes chame, nos quais prepondera a opinião de três ou quatro indivíduos, o máximo, e por vezes de um indivíduo só. No fundo, pois, o resultado de uma eleição política no regímen liberal — mesmo sendo essa eleição séria e moralmente limpa — é a imposição hipócrita da vontade de meia dúzia de indivíduos a uma nação inteira, que por vezes, em casos extremos de auto-sugestão, como na Inglaterra, chega a acreditar que tem vontade própria. E a assembleia "representativa", uma vez eleita, passa a funcionar sem fiscalização directa da própria "opinião" que a "elegeu", e a fazer, muitas vezes, exactamente o contrário do que prometeu nos comícios, e, outras vezes, coisas que, se não são esse contrário, são coisas que, pelo menos, o eleitorado não sancionaria, se as levassem perante ele. É em virtude disso que os conservadores ingleses — os conservadores, reparem! — chegaram a propor, para o caso de certas medidas graves, surgindo inesperadas, e que não haviam sido objecto das declarações nos comícios, o estabelecimento do princípio, aparentemente tão pouco conservador, do referendum.

O Gomes parou um pouco, e aproveitou a própria paragem para puxar de novo pela bolsa do tabaco.

— Os indivíduos — a tal meia dúzia ou dúzia de indivíduos, se não forem menos — que preponderam nos organismos partidários, e que portanto verdadeiramente governam o país, têm a sua responsabilidade nas situações políticas coberta e dispersa pela massa do partido a que pertencem, do eleitorado que compeliram a votar neles através do partido, e da assembleia "representativa" "eleita" por esse eleitorado. Exercendo realmente uma ditadura, exercem-na hipócrita e cobardemente, cobertos por uma massa partidária que, como é anónima, vem a ser praticamente ninguém; contraem portanto, com a índole despótica do ditador, a obliquidade moral que vem do sentimento da impunidade e alguns, se não todos os vícios que provêm do exercício constante do disfarce e da hipocrisia. E quando a isto se acrescenta que, para subirem nesses partidos até à situação de preponderância que neles têm, esses homens tiveram que servir os ditadores hipócritas que os precederam na direcção real desses mesmos partidos, vê-se que a índole hipócrita e a obliquidade moral, que seria natural que contraíssem no mero exercício da sua ditadura velada, já as haviam realmente adquirido antes, no serviço dessa mesma ditadura, pelo qual conseguiram chegar, por sua vez, a ser ditadores.

Estes factos indubitáveis (continuou o Gomes, com uma certa animação) sofrem um certo paliativo nas nações mais instruídas e educadas, porque a própria hipocrisia do ditador velado lhe impõe limites nas doutrinas e processos que empregue; a relativa lucidez e atenção do espírito público espontaneamente se revoltariam se os ditadores velados quisessem pôr em prática medidas de profunda corrupção — sobretudo de corrupção visível — ou normas de onde derivasse um manifesto perigo para a nação ou para os seus componentes. O hipócrita tem que contemporizar. E de aqui resulta que aquelas vantagens que se costumam atribuir aos regimens liberais — citando a sua acção em países como a Inglaterra — não provêm realmente dos regimens liberais, mas da educação e instrução do povo, do seu activo orgulho nacional, da sua moral social relativamente elevada. A mesma educação, a mesma instrução, o mesmo orgulho e senso moral operariam do mesmo modo qualquer Que fosse o regímen, e não poderia pensar em ir contra ele um rei mais do que um ditador velado, considerando sobretudo que num caso a responsabilidade é directa e visível, no outro dispersa e ocultada.

— Mas essa educação e esse orgulho nacionais, interveio o Canha, não serão, pelo menos em parte, produzidas por esse regímen liberal?

— Não, respondeu o Gomes. Quanto à instrução, ela nasce e desenvolve-se com o desenvolvimento da civilização, que por sua vez promove; qualquer regímen, que reja uma nação civilizada, tem forçosamente que estimular e desenvolver a educação; porque o espírito público assim o exige e espera. Quanto à moral social, nenhum regímen a cria, porque não é essa a esfera de acção dos regimens políticos; a moral social, criam-na a família os indivíduos no seu simples trato social, as influências morais e religiosas. E quanto ao orgulho nacional, cria-o, em parte, o ser uma nação grande; o sentimento da independência, cria-o o ser uma nação ou ameaçada ou constantemente agredida, e assim por aí adiante... Mas, enfim, isto são notas à margem. Voltemos ao seu argumento primitivo. Creio ter demonstrado que, se não há justificação da nossa República pelo assentimento espontâneo do país, também a não há pela ratificação eleitoral.

— Está bem, provou, concedeu o Canha. Mas ainda havia uma outra hipótese, se me não engano...

— Havia... A terceira hipótese, que é a que falta considerar, é de que a República possa ter uma justificação da sua existência na continuidade com o sistema governativo anterior...

O coronel Bastos desatou o riso.

— Aí não é preciso argumento, disse. Se o que estava antes era a Monarquia, basta a República não ser Monarquia para não haver essa continuidade.

— Sem dúvida, coronel... Mas um argumentador hábil complicaria um pouco mais a questão; e o meu dever é pôr as objecções, quando as ponho eu a mim mesmo, como se elas fossem postas por quem soubesse pô-las. A essência do regímen liberal — de qualquer regímen liberal — é a limitação do poder do Chefe do Estado, ou, antes, a sobreposição ao poder do Chefe do Estado, por uma assembleia emanada directamente (por aquele lindo processo que já expus) de um certo número de indivíduos inscritos em cadernos eleitorais, a que, não sei porquê, se chama "a nação". Dizendo melhor, a essência do regímen liberal é a transferência do poder para a tal "a nação", quer ela aceite o Chefe do Estado (que é quando, sendo rei, não é eleito por ela), quer ela eleja directamente o Chefe do Estado como no regímen republicano presidencialista, e assim nele delegue esse tal poder que em ela reside, quer eleja uma assembleia qualquer em quem delegue esse seu poder, e que depois, por sua vez, eleja o Chefe do Estado. Ora a República Portuguesa — a tal da normalidade constitucional — pode alegar em seu favor, isto é, em favor do seu carácter nacional, que realmente está em linha de continuidade com a essência do regímen liberal, salvo num pormenor — a chefia do Estado desse regímen. Mas, infelizmente para a República, este argumento também não serve.

O Gomes Pipa parou um pouco, e enrolou o cigarro de cujo pensamento a lógica o afastara.

— O regímen liberal, continuou sem acender o cigarro, é já uma quebra de continuidade governativa. Até 1820, e quaisquer que fossem as vicissitudes da nossa política interna, uma coisa permaneceu firme e contínua — o facto de que o poder todo residia essencialmente no Rei. O regímen liberal manteve o Rei, mas transferiu o poder para a tal "nação". Propriamente falando isto não é manter o rei, nem manter continuidade nenhuma, pois o Rei não é separável do seu poder, e, não o sendo, não há continuidade desde que se faça a separação. Mas, enfim, isso agora não importa, e é um outro assunto... O regímen liberal, repito, manteve o Rei, e assim, na linha de argumento que nós estamos considerando, poderia alegar como manutenção de continuidade a manutenção da Monarquia. A revolta republicana o que fez? Manteve continuidade com o regímen liberal naquilo que nele, perante este argumento de continuidade (que é o que estamos considerando, e não outro), representa ruptura de continuidade. Como a continuidade tem que ser contínua, para que possa ser invocada como continuidade e chamada continuidade, vem isto a dar em que a República continuou o liberalismo naquele ponto em que ele não continuou nada, Isto é, em que, perante o argumento da continuidade, era ilegítimo. Em outras palavras, a República, perante este argumento da continuidade, não é senão o regímen liberal elevado à injustificação absoluta.

— Bravo! — exclamou o coronel Bastos, quase caindo do seu banco. Isso é que é argumentar!

O Gomes acendeu finalmente o seu cigarro adiado.

Depois voltou-se para o Mendes, e um momento lhe passou nos olhos uma luz subtil de manha irónica.

— Quer dizer, amigo Mendes, disse ele sorrindo, ainda há uma espécie de continuidade que os senhores poderiam invocar, e que não é nem a continuidade do regímen aparente, nem a continuidade do regímen real. Os senhores poderiam invocar a continuidade de maneira de governar.. — Será essa que os senhores quererão invocar?...

— "Maneira de governar" como? interrogou o Mendes.

— Da seguinte forma... Os governos monárquicos eram incompetentes e corruptos, o sistema eleitoral monárquico incompetente e corrupto, o governo do país, sob a Monarquia, era uma oligarquia de partidos governando à parte da nação e contra a nação.

(Estou-me servindo de asserções dos senhores, sem as discutir, porque estou argumentando pelos senhores.) Ora os senhores podem alegar que não representam uma quebra de continuidade porque continuam a governar com incompetência e corrupção, que continuam a fazer eleições com competência e corrupção, e que continuam a ser uma oligarquia de partidos (ou de um só, mas não faço caso dessa pequena falha no seu argumento) que governam à parte da nação e contra ela. Não sei se querem que eu considere também este argumento...

O Mendes, num gesto brusco, pôs em meio-risco um vaso tapado com seringas de diversas espécies.

— Isso é uma brincadeira! exclamou irritado.

— Bem: o caso é consigo... Então abdica do argumento?

— O argumento não é meu; não tenho que abdicar dele...

— Não é seu mas é dum argumentador hábil que falasse por si... Em todo o caso, há para ele uma resposta a sério... Vou refutá-lo.

— Homem, para quê? interpôs o Canha.

— Diga, diga, ó Gomes! pediu o coronel puxando por um charuto e por mais contentamento.

— Vou refutá-lo, amigo Canha, por duro dever de raciocinador. Tenho por obrigação pôr todas as hipóteses possíveis, e refutar as que considere falsas, que neste caso das justificações possíveis da República, são todas. Mas isto vai depressa... O caso é este...

— Ora adeus! — exclamou o Mendes, num gesto parado de quem vai a sair.

— É claro, prosseguiu o Gomes Pipa, que uma legitimação pela imoralidade é impossível, e por isso, realmente, o argumento é improcedente e absurdo. Mas, admitindo mesmo que o não seja, é improcedente até na espécie em que se estabelece. Para continuar a imoralidade convém alterar o menos possível as condições de imoralidade; ora fazer uma revolução é, pelo menos, introduzir uma perturbação no estado, perturbação necessariamente seguida, como foi, de diversas outras perturbações. Ora para comer tranquilamente à mesa do orçamento o essencial é essa mesa não estar em riscos de ser arrancada aos comensais. A perturbação é, portanto, incompatível mesmo com o propósito de imoralidade. Dir-se-á que os republicanos não poderiam facilmente apoderar-se do poder, e comer eles só, sem afastar primeiro os outros que lá estavam. Nesse caso, mandava a boa imoralidade que se juntassem a um partido dos outros, que, dada a força que levariam consigo, de bom grado lhes pagaria a adesão. Ou então formassem um partido à parte, dentro da Monarquia, e, valendo-se, para fins de simples ameaça, da força que puseram em prática na revolução, conquistassem efectivamente o poder para eles só e para o jantar em família. E, se se alegar que não tinham força para essa conquista, sem ser pelo processo revolucionário, resulta que a sua força era fictícia, podendo vencer só com o golpe de audácia e de surpresa, de modo que até aqui, e no meio deste triste argumento, se vê bem que o movimento não tinha carácter nacional, nem mesmo imoral, e que nem a continuidade da corrupção e da

incompetência pode ser invocada, apesar de todas as aparências, pelos republicanos.

— Está bem, homem, está bem, disse, irritado, o Mendes. Para que está V. a perder tempo com essa brincadeira?

— Para disfarçar um sofisma, interveio o Canha. O nosso Gomes, não sei se os senhores repararam? sofismou todo este argumento da continuidade, e por isso convém-lhe acabá-lo numa espécie de desvio de brincadeira...

— Sofismei o argumento?

— Sim senhor, sofismou.

— E em que é que o sofismei?

— No seguinte... A continuidade, que se pode exigir à República que invoque para alegar a sua legitimidade, ou a sua normalidade constitucional ou governativa, não é, amigo Gomes, a continuidade com a monarquia, e muito menos com a monarquia absoluta, etc., etc. A continuidade republicana tem que contar-se desde que se estabeleceu a República; é a continuidade do regímen consigo mesmo e adentro de si mesmo, e não com outros regimens, e fora de si... Lá nos outros argumentos, o da aceitação nacional, e o da justificação eleitoral, foi V. muito bem, mas aqui teve que sofismar, que tirar o problema do seu verdadeiro campo, para simular o triunfo...

O Mendes, o Evaristo e até o Justino, em geral atado ao seu silêncio, sorriram ou riram desta objecção oportuna. Mas o Gomes Pipa, ao contrário do que seria de esperar, sorriu também, uni sorriso vasto e contente. O coronel Bastos, que o fitava atento, carregou a expressão de atenção.

— Contra essa objecção, disse o Gomes, esfregando as mãos, há nada menos de cinco respostas. Em primeiro lugar, não se trata de simples continuidade, mas de continuidade como sinal de legitimidade; ora a continuidade de uma coisa consigo mesma não pode determinar, de si, a legitimidade, porque assim tudo neste mundo era legítimo, visto que tudo, enquanto dura, dura, e é pois contínuo consigo mesmo. — Em segundo lugar, não se trata de continuidade como simples duração, mas, como Os senhores mesmos disseram, de maneira de durar. Se se tratasse de continuidade como simples duração, então é essencial que essa continuidade não fosse nunca interrompida, que não tivesse havido nunca movimento revolucionário algum, com carácter vitorioso, a cortar a vida da "república original", em outras palavras, que não houvesse descontinuidade. — Em terceiro lugar, reparem que estávamos considerando a justificação irracional da República; a continuidade de que se trate, pois, para esta justificação, é uma continuidade nacional, e não uma continuidade de regímen ou de partido. Ora, como a nacionalidade não começou em 5 de Outubro de 1910, a continuidade nacional também não começa aí. E se há uma continuidade partidária e não nacional, há uma continuidade partidária e anti-nacional, e esse partido está contra a nação. — Em quarto lugar, trata-se de continuidade governativa, e como a essência do governo é dominar, e uma das condições de dominar é reprimir revoltas e movimentos adversos, desde que haja ou movimentos adversos constantes, ou um só vitorioso, não há continuidade de domínio, não há portanto continuidade de governo. — Em quinto lugar, a continuidade constitucional, que é a de que se trata, é uma continuidade de ordem e a "República Constitucional" nem tem mantido a ordem, nem, quando tem retomado o seu curso, o tem sempre retomado por processos de ordem. E aqui tem, amigo Canha, cinco dedos da mão do argumentador a estrangular a sua objecção...

— Magnífico, magnífico! exclamou o coronel, trincando a ponta do charuto como se ele soubesse a raciocínio. — Quanto mais o apertam, mais V. se desembaraça.

O Gomes apontou o seu corpo prolixo. — Quando me enlaçam, caio em cima deles... disse modestamente.

Fez-se uma pausa ligeira na conversa. Entrara um freguês que se devolveu à rua com uma garrafa de água de Vidago. O coronel Bastos acendeu, sorrindo, o seu charuto. Depois, indo o freguês a sair, voltou-se para o Gomes com uma voz interessada: (...)

Autor: Fernando Pessoa

1925

RELATÓRIO DA OPERAÇÃO ESPECIAL “Computas e vinho verde”

(Por lei) Só escapam à censura a sátira e a paródia

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Missão: Improvável

(mas, com este Governo, nunca se sabe)

A defesa da Nação face ao fascismo implica a defesa de quem a representa, o Governo; e a defesa do Governo face ao fascismo obriga à defesa de quem o sustém, o Partido. Cautela com o fascismo.

02 mai. 2023, José Diogo Quintela, ‘Observador’

Assunto:

RELATÓRIO DA OPERAÇÃO ESPECIAL “Computas e vinho verde”

Prioridade: MÁXIMA Importância: VITAL

Impacto: ALTÍSSIMO Nível: ELEVADO

Categoria: NÃO TEM

Classificação: TOP SECRET CONFIDENCIAL

APENAS PARA OS SEUS LINDOS OLHOS

Operacional: AGENTE XXXX XXXXXX, Nº XXX/37

Às 22:51 do dia 26 de Abril recebi uma mensagem encriptada do Centro de Acção Operacional Superior activando um código Roxo que me fez largar imediatamente o serviço onde me encontrava destacado. Na altura, tratava-se da vigilância ao sujeito de interesse XXXX XXXXXX, o operador de câmara responsável pela captação indevida de conversas sensíveis sobre assuntos de interesse nacional levadas a cabo por Suas Excelências o Senhor Presidente da República, o Senhor Presidente da Assembleia da República e o Senhor Primeiro-Ministro. Da minha perícia inicial, que entretanto passei ao colega Agente XXXXXX XXXXXXX, Nº XXX/28, concluí estarmos perante um perigoso cameraman (são muito usados agora pela extrema-direita) em conluio com um perigoso editor de site (a extrema-direita passou a recrutar nesta categoria profissional) numa típica operação de agitprop de cariz fascista.

Às 22:57 estava na sede do CAOS para receber as minhas instruções orais directamente do Tenente-Coronel XXXXXX XXXXX. A seriedade do Tenente-Coronel (que nem sequer aludiu ao nosso Benfica, nem nada) fez-me compreender a gravidade da situação. O Tenente-Coronel referiu que eu tinha sido escolhido para esta missão pela minha experiência em temas de interesse nacional relacionados com membros do Governo, uma vez que fizera parte da equipa de resposta rápida enviada ao Alentejo para colocar papel higiénico na berma da A6, de modo a fazer parecer que o trabalhador atropelado pelo Ministro Eduardo Cabrita tinha ido fazer cocó ao separador central. Esses “trabalhadores incautos” têm sido muito usados em acções desestabilizadoras levadas a cabo pela extrema-direita. Uma tarefa pela qual recebi dois louvores, uma condecoração e um fim-de-semana com tudo pago (meia-pensão) no Hotel Alcobaça, em Alcobaça.

Segundo o Tenente-Coronel, a missão, urgente e secreta, consistia na recuperação de material informático contendo informação sensível, com impacto na segurança do Estado, obtida de forma ilegal por um agente duplo ao serviço de uma potência estrangeira, que, sob a identidade de “Frederico Pinheiro”, infiltrado no gabinete do Ministro João Galamba, se introduzira nessa noite no Ministério das Infraestruturas, imobilizando 12 agentes nacionais e evadindo-se montado numa bicicleta com que atravessou uma janela de vidro reforçado, lançando-se da varanda do 4º andar. Claramente um operacional treinado e extremamente perigoso, possivelmente um agente adormecido russo, formado na Escola de Minsk do ex-KGB. Um dos colibris do General Palhassov, sem dúvida. Têm sido muito usados pela extrema-direita.

Às 23:11, disfarçado de vendedor de raspadinhas (realizei o pecúlio de 27 euros – nota de entrega em anexo), postei-me à porta da morada do alvo, no número XX da Av. XXXX XXXXX XXXXX, em Lisboa. Às 23:25, enquanto vigiava o perímetro, registei actividade suspeita por parte de um operacional disfarçado de entregador da Glovo, que interceptei e capturei. Era um paquistanês (muito usados agora pela extrema-direita). Interroguei-o durante 15 minutos. Infelizmente, não dispus de mais tempo para o fazer, pois ele ainda tinha uma entrega de raviolis e carbonara para fazer e a comida italiana fria perde a graça. Deixei-o ir, não sem antes ficar com o seu contacto, porque dá jeito ter alguém a quem ligar nos dias mais movimentados, em que o tempo de espera de um McDonalds chega a ser uns absurdos 25 minutos. Fiquei também com a sua mochila e assumi o papel de entregador, para aceder à casa do agente inimigo. Inspeccionei a refeição, o que reforçou a minha ideia de se tratar de um subterfúgio: era de um restaurante vegan. Obviamente, um agente que acaba de desempenhar uma missão fisicamente exigente e que, sem dúvida, deve permanecer em estado de alerta e prontidão imediata, não pode ter uma alimentação à base de tofu e couve chinesa.

O sabotador abriu a porta de roupão, mostrando ser um profissional que sabe o valor de armas escondidas. De imediato, confrontei-o com o seu crime. Não o negou. Pelo contrário, de pronto entregou-me o computador, dizendo: “Aqui está, peço desculpa pelo incómodo”. A sua reacção desconcertou-me e, por momentos, perdi a calma. Não resisti a perguntar: “Não tem vergonha de, com a sua infame traição, estar a desvalorizar a TAP, uma empresa tão importante para o país?” Ao que ele respondeu: “Dizer que isto desvaloriza a TAP é o mesmo que estar a vender um chaço todo ferrugento, com os pneus furados, sem amortecedores, com os vidros partidos, motor gripado, e pedir para não fumar lá dentro, porque isso o desvaloriza”.

A inteligência da resposta, juntamente com não haver vestígios de presença feminina no apartamento, fez-me ter a certeza de estar perante um dos brilhantes burocratas do ISCTE, treinados no uso de ferramentas retóricas de controlo neurolinguístico (aquilo que os civis chamam “conversa fiada”).

Para evitar ser subjugado, não o deixei continuar. Disse apenas ter pena que ele não fosse mais como o Inspector-Geral das Finanças que falsificou um parecer porque, como disse com orgulho, antes de auditor, é português. E acusei-o de, por sua causa, a comunicação social só falar nas mentiras do Governo, em vez de nos fantásticos números do PIB.

Às 23.31 estava de volta ao carro com o computador. Numa primeira análise superficial consegui aperceber-me da gravidade da situação que o país enfrenta. Por exemplo, uma avaliação da caixa de e-mail permitiu ver que muitos mails com combinações sobre ocultar documentos à Comissão Parlamentar de Inquérito são enviados através de um Outlook sem licença oficial da Microsoft. É uma vergonha para Portugal quando os seus governantes cometem aldrabices em nome do Estado através de software pirateado.

Às 23.52 voltei ao Centro de Acção Operacional Superior e entreguei o computador, dando a missão como terminada.

NOTA: foi com grande honra e satisfação que levei a cabo esta missão. Por duas razões. A mais pessoal prende-se com o facto de a vítima ter sido o Ministro João Galamba. Não é um facto muito conhecido, mas o Ministro Galamba é um herói na comunidade de inteligência portuguesa, pela intrepidez que demonstrou, há quase dez anos, quando recolheu informação sobre a captura iminente de José Sócrates para o avisar. Para amador, foi um trabalho de excelência.

A outra razão é o amor à Pátria. É a minha modesta contribuição para o esforço de defesa nacional que nos cabe a todos, não só enquanto agentes do Estado, mas como patriotas que cumprem o seu dever. A defesa da Nação face ao fascismo implica a defesa de quem a representa, o Governo; e a defesa do Governo face ao fascismo obriga à defesa de quem o sustém, o Partido. Cautela com o fascismo. Cautela com os traidores do interesse nacional, que atacam Portugal via Governo e via Partido. Não esquecer: nada contra o Estado!

A bem da Nação, Agente XXXX XXXXXX, Nº XXX/37 (assinatura ilegível)

domingo, 14 de maio de 2023

Veículos Eléctricos: Hesitação do Consumidor.

Uma pesquisa é apenas uma pesquisa, e os números sobre as intenções de compra podem mudar de mês para mês, mas a JD Power tem alguns dados interessantes sobre a demanda por veículos elétricos (EVs):

Nem tudo é sol na estrada para o futuro EV. Embora a tendência de longo prazo na participação no mercado de VEs tenha crescido significativamente de 2,6% de todas as vendas de veículos novos em fevereiro de 2020 para 8,5% em fevereiro de 2023, as vendas atingiram um aumento de velocidade em março, com a participação de mercado mensal caindo para 7,3%. Embora seja de se esperar alguma volatilidade mês a mês, uma análise mais detalhada das barreiras à adoção de VEs mostra que muitos compradores de veículos novos estão se tornando mais inflexíveis sobre sua decisão de não considerar um VE em sua próxima compra.

De acordo com novos dados. . . esse aumento constante na porcentagem de consumidores que dizem que é “muito improvável” considerar um EV para a próxima compra de veículo reflete preocupações persistentes sobre infraestrutura de carregamento e preços de veículos.

A partir do relatório deste mês [de maio], 21% dos compradores de veículos novos dizem que é “muito improvável” considerar um EV, acima dos 18,9% em fevereiro e 17,8% em janeiro. Enquanto isso, a porcentagem de compradores de automóveis que dizem que são “muito prováveis” de considerar um EV é de 26,9% e tem se mantido estável nos últimos três meses…

https://www.nationalreview.com/corner/electric-vehicles-consumer-hesitation/?utm_source=recirc-desktop&utm_medium=homepage&utm_campaign=right-rail&utm_content=corner&utm_term=second