Vasco Cordeiro disse no dia da votação da “separação dos mares” que era um dia histórico para o país. Será, de facto, um dia histórico para a desintegração do país, se o diploma for promulgado.
Esta semana o Tribunal Constitucional reiterou a deliberação, já dada por um tribunal de primeira instância, que considerou inconstitucional a obrigatoriedade de quarentena imposta a um cidadão português, residente na Ilha de S. Miguel, pelo governo regional dos Açores . O que o Tribunal Constitucional lembrou aos governantes regionais é muito simples. Não pode haver restrições aos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos numa situação de estado de contingência que então vigorava nos Açores. Fechar um cidadão num hotel sem poder estar com a família, um cidadão sem Covid-19, é uma restrição dos direitos liberdades e garantias protegidos pela Constituição. Este caso chegou ao Constitucional porque o cidadão em causa se recusou a assinar um documento em que, voluntariamente, aceitava o seu confinamento num hotel sem poder sair do quarto ou fazer exercício (algo que até nas prisões é concedido), e submeteu no Tribunal de primeira instância um pedido de Habeas corpus.
Indo directo ao assunto, em Portugal temos um problema regional: as autonomias regionais não são consideradas pelos líderes regionais como uma caraterística estável do nosso regime de governo– Portugal um país unitário com regiões autónomas com estatutos político-administrativos próprios e autarquias locais — mas antes como um processo infindável de crescente “autonomia” a caminho da independência, o sonho inconfessado de alguns líderes regionais, mas não dos ilhéus. Cada nova geração de políticos regionais, para sobressair em relação aos seus predecessores, tem de dar mais um passo nessa senda inesgotável e para isso todos os expedientes são úteis.
O pecado capital da questão autonómica, nasceu precisamente no início do Processo Revolucionário em Curso (PREC) com um artigo da Constituição (hoje a alínea j) do artº 127), que atribui às regiões autónomas todas as receitas nelas cobradas ou geradas. Isto não faz sentido nenhum do ponto de vista económico, pois significa que os cidadãos (e empresas) que tiverem domicílio fiscal nessas regiões não contribuem um cêntimo para as funções de soberania, por exemplo para financiar a Assembleia da República, o Presidente da República, a defesa nacional, os negócios estrangeiros, etc., de que também beneficiam. Ao inverso da famosa expressão inglesa, trata-se neste caso de representation without taxation. Um erro destes em período revolucionário até se compreende. O problema é que nestes 44 anos o PREC tem continuado imparável combinando as iniciativas legislativas das assembleias legislativas regionais com a inércia e o beneplácito de quase todos os partidos com assento na Assembleia da República.
Um dos casos mais relevantes ocorreu em Novembro de 2007. A Assembleia Legislativa Regional dos Açores aprovou a terceira alteração ao Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores (EPARAA) e a Assembleia da República por sua vez aprovou por unanimidade (!) o Decreto 217/X em 27 de Junho de 2008. O então Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva, fez bem em não o promulgar e enviou-o para o Tribunal Constitucional para que este apreciasse a constitucionalidade de doze normas do diploma. O Tribunal Constitucional no seu Acórdão (402/2008) pronunciou-se pela inconstitucionalidade de algumas (não todas) destas normas. Mesmo assim Cavaco Silva fez uma comunicação ao país advertindo que mesmo as normas consideradas constitucionais restringiam as competências do Presidente da República e alteravam o equilíbrio de poderes consagrado na Constituição. Sobre este episódio subscrevo na íntegra o que disse Jorge Miranda, em entrevista à RTP a 01 de Agosto de 2008: “Em 2004 fez-se uma revisão constitucional que se pretendeu destinada a resolver, de uma vez por todas, as questões da autonomia regional das regiões dos Açores e da Madeira. Passados poucos anos, vem este projeto de Estatuto, com normas claramente inconstitucionais, pôr em causa o acordo a que se tinha chegado em 2004. Estamos, portanto, numa espécie de PREC, numa espécie de factos consumados sucessivos, em que primeiro se chega a um acordo e depois, através da lei ordinária, se põe esse acordo em causa e então vai-se exigir uma nova revisão constitucional, isto sucessivamente. Não deixa de ser extremamente significativo que todos os partidos, nitidamente por razões eleitoralistas, por haver eleições nos Açores em Outubro, tenham aprovado por unanimidade as propostas vindas da Assembleia Legislativa dos Açores e agora já venham dizer que afinal não estavam de acordo, que afinal na especialidade tinham reservas ou que estão dispostos a reconsiderar quando o problema voltar à Assembleia da República. É uma situação muitíssimo triste.” É de facto triste.
O Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores (artº 8º) prevê a atribuição da gestão partilhada entre o Estado e as Regiões sobre as “zonas marítimas portuguesas”. Esta, foi posteriormente legislada, na lei de bases do ordenamento e gestão do espaço marítimo (Lei 17/2014), e regulamentada (DL 38/2015).
Porém, o último episódio desse PREC autonómico acaba de ocorrer no último dia de votações na Assembleia da República com a aprovação da proposta de lei que que reverte o essencial desta legislação e num sentido claramente inconstitucional. Mais uma vez a iniciativa pertenceu à Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores (ALRAA) e para fundamentar essa Proposta de lei, são encomendados, e pagos Pareceres (1), pela ALRRA e pelo Governo Regional, a eminentes juristas que têm uma opinião consonante com quem lhes pagou o Parecer. Estranho, não é? Aprendemos nestes doutos Pareceres conceitos inovadores como o de “Estado Regional” (Jorge Bacelar Gouveia) que apesar de não estar na nossa Constituição, parece prevalecer sobre o conceito que nela consta: “Estado unitário”.
Esta iniciativa foi aprovada com a maioria dos votos do grupo parlamentar do PS, o PAN e a IL (uma maioria relativa) a abstenção dos restantes Partidos e os votos contra de 12 deputados do PS (2) e da deputada não inscrita Cristina Rodrigues.
Este diploma acaba com a soberania e a integralidade do território da República portuguesa e das suas águas territoriais, e como alegam, e bem, os doze deputados socialistas, não só cria uma “fratura na soberania nacional” (com a criação de três novos espaços marítimos: dos Açores, da Madeira e do Continente), como submete o poder de soberania da República às Regiões Autónomas (pois dá poder de veto às Regiões Autónomas para além das 200 milhas exigindo um parecer obrigatório e vinculativo destas) e dá um poder residual ao Governo da República dentro das 200 milhas (que só requer parecer obrigatório e vinculativo deste em matérias vagas de soberania e integridade territorial).
Este diploma não é apenas mais um passo nas “autonomias”, mas um passo rumo à independência. O líder deste caminho foi durante décadas Alberto João Jardim que chegou a encomendar um estudo sobre a viabilidade económica da Madeira se tornar independente. Esse estudo concluiu que só a atividade turística e a zona franca não são suficientes para gerar os recursos necessários à independência. Hoje, como ontem, a esmagadora maioria de portugueses, quer residam nas ilhas quer no continente, é contra essa independência conforme revelam as sondagens. Vasco Cordeiro, neste particular, é o herdeiro socialista de Alberto João. Sabe bem que há empresas interessadas na prospeção de minérios no fundo do “mar dos Açores”. Este diploma ao criar o “mar dos Açores” e integrá-lo no território Açoreano, conjugado com o citado artigo da Constituição, que atribui as receitas cobradas e geradas no território regional à região, permite que uma exploração bem sucedida de minérios possa alimentar os cofres regionais. O sonho de Jardim, e agora de Miguel Albuquerque, para a Madeira – a independência — estaria assim em condições de se tornar realidade nos Açores. Vasco Cordeiro disse no dia da votação da “separação dos mares” que era um dia histórico para o país. Será, de facto, um dia histórico para a desintegração do país, se o diploma for promulgado. Só há uma pessoa que pode parar este processo. É Presidente da República e chama-se Marcelo Rebelo de Sousa.
(1) Foram enviados em complemento da Proposta de Lei 179/XIII/4ª da Assembleia Legislativa Regional, quatro pareceres: de Jorge Bacelar Gouveia, de Marta Chantal Ribeiro, de Ana Raquel Moniz e da Sérvulo e Associados (Rui Medeiros e Armando Rocha). Bacelar Gouveia fala quatro vezes em que Portugal é um Estado Regional, e apenas refere uma vez Estado unitário. Mais robusto Nos parece o Parecer de Medeiros e Rocha que alegam da inconstitucionalidade do DL 38/2015. Porventura será, mas não se resolve uma inconstitucionalidade criando uma nova.
(2) Merecem ser registados os nomes dos deputados socialistas que votaram contra e apresentaram declaração de voto: Ana Paula Vitorino, Ascenso Simões, Jorge Lacão, Marcos Perestrello, Pedro Bacelar de Vasconcelos, Pedro Cegonho, Sérgio Sousa Pinto, José Magalhães, Rosário Gamboa, Diogo Leão, Alexandre Quintanilha (mais um deputado que não consegui identificar). Paulo Trigo Pereira Observador
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