terça-feira, 25 de agosto de 2020

O cobarde cura

Se calhar, no meio de tantas cativações no Ministério da Saúde, Mário Centeno cativou os tomates dos médicos. É possível. A minha mulher fez-me o mesmo e nem sequer trabalha no Governo.

Segundo alguns linguistas, a expressão popular “cor de burro quando foge” terá surgido da corruptela do provérbio “corro de burro quando foge”. Alguém percebeu mal (um mouco, provavelmente) e começou a usar o dito incorrecto. Faz sentido. Sair da frente de um asno desembestado é uma atitude inteligente; já a cor do bicho enquanto o faz é um detalhe que só interessa a especialistas da Robbialac. Estou convencido que foi isso que aconteceu a António Costa: ouviu mal um provérbio e interiorizou o conceito errado. Onde a maior parte de nós diz “o que arde cura”, Costa percebeu “o cobarde cura”. E ficou. Para o PM, os médicos têm aquela caligrafia por estarem a tremer de medo.

Se calhar, Costa ainda vai mudar o hino. Depois de “nação valente”, acrescenta-se “excepto a classe médica, que é composta por borrinhas”. Convida-se o Sérgio Godinho, o único capaz de enfiar tantas palavras na melodia, e espera-se por um jogo da selecção para assistir aos jogadores a atrapalharem-se nesta nova parte.

Recapitulemos: primeiro, houve médicos que cobardemente não quiseram ir ao lar de Reguengos; depois, António Costa chamou cobardes a esses médicos, mas pelas costas, mesmo à cobarde; a seguir, o Expresso quis pôr essas declarações a circular, mas sem as publicar, optando pela cobardia de enviá-las para vários meios de comunicação social, aumentando as hipóteses de fuga; posteriormente, um jornalista que viu o vídeo pô-lo a circular nas redes sociais, sem se identificar, típico dos cobardes; por fim, sentado confortavelmente em frente ao mar a beber um drink de fim de tarde, preparo-me para fazer pouco de todos. Como o cobarde que também sou.

Trata-se de um cobarde a comentar a fuga de informação cobarde de uma filmagem cobarde de uma denúncia cobarde de um acto cobarde, num interessante mise en abyme de pusilanimidade. No fundo, é uma matriosca de medricas, com poltrões a saírem de dentro uns dos outros. Quer dizer, não é bem a saírem, que para isso é preciso alguma coragem. É mais a espreitarem sorrateiramente, cheios de miúfa.

Devo dizer, que já há muito desconfiava que os médicos não são lá muito corajosos. Todas as vezes que consultei um clínico e foi necessário efectuar um procedimento doloroso, nunca foi o médico a sofrê-lo. Se alguém sai dorido do consultório, sou sempre eu. Coincidência? Não me parece. Nunca se chegam à frente, nunca dizem: “Olhe, tenho aqui uma injecção para lhe dar, mas primeiro vou dá-la também a mim, para partilhar a dor”. Portanto, é possível que António Costa tenha razão e aqueles doutores sejam cagunfas. Se calhar, no meio de tantas cativações no Ministério da Saúde, Mário Centeno cativou os tomates dos médicos. É possível. A minha mulher fez-me o mesmo e nem sequer trabalha no Governo.

Entretanto, continua sem se saber como é que as imagens de António Costa saíram cá para fora. Dizem que é muito estranho. Não concordo. Estranho não é aparecer este vídeo. Estranho é nunca ter aparecido um vídeo, depois de Pedrógão, em que o Primeiro-Ministro, em off, diz que os bombeiros foram mariconços e recusaram ir apagar o fogo. Estranho é nunca ter aparecido um vídeo, depois de Tancos, em que o Primeiro-Ministro, em off, diz que os militares foram caguinchas e recusaram ir ao paiol quando ouviram os ladrões. Não só é estranho não terem aparecido os vídeos, como também não estarem disponíveis na Netflix.

É que, ao contrário do que pode parecer, esta polémica não prejudica António Costa. Só o beneficia. Costa insinua que os culpados são médicos cobardes, mas como se trata de uma conversa informal, não tem de especificar a acusação com factos e nomes. Mantém a postura institucional de PM e, oficialmente, nunca confirmará. Mas também nunca desmentirá. E a sugestão fica feita. Agora, os portugueses sabem que a culpa não é dele, porque ele disse que a culpa não é dele, sem nunca ter precisado de dizer que a culpa não é dele. Sabem isso e sabem que, pelo sim, pelo não, devem evitar adoecer na região do Alqueva.

António Costa sacode a água do capote ao mesmo tempo que diz que não apanhou chuva, nem nunca vestiu o típico agasalho alentejano. O nosso PM é uma espécie de CR7 da desresponsabilização. A diferença é que enquanto o Cristiano Ronaldo, depois de fazer qualquer coisa, aponta para si próprio e diz “eu estou aqui”, Costa leva o dedo à boca e sussurra “chiu, eu nunca cá estive”.

José Diogo Quintela

https://observador.pt/opiniao/o-cobarde-cura/

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