Expresso
Diogo Cavaleiro
Jornalista
O primeiro-ministro foi responsável por uma reconfiguração dos bancos nacionais nos últimos anos
Houve leis alteradas para desbloquear os impasses accionistas em bancos portugueses, casos do BCP e do BPI, ou para facilitar contratações para a administração, exemplo da CGD. António Costa surgiu em eventos sobre temas de que o governo antecessor se afastava, dando a cara pela resolução do Banif e pela venda do Novo Banco.
Até houve ensaios para se poder vir a afastar Carlos Costa da liderança do Banco de Portugal, e foi para governador que António Costa nomeou um ministro que ao seu lado esteve no Conselho de Ministros durante quatro anos.
Na prática, foi com António Costa no poder – e também com a sua intervenção – que a CGD ganhou músculo e passou a pagar bem aos administradores, que o BCP ganhou a Fosun como maior acionista, que o Santander cresceu com o Banif (e depois o Popular), que o Novo Banco passou para a Lone Star, que o BPI ficou só nas mãos do CaixaBank, que a Associação Montepio (dona do banco com o mesmo nome) resolveu (mesmo que temporariamente) a situação que a atirava para um desequilíbrio preocupante.
Assim passaram anos de Governo de António Costa e da sua relação com a banca, um sector que agora o levará aos tribunais por considerar que Carlos Costa ofendeu o seu bom nome.
Esta é uma passagem do livro “O Governador”, escrito pelo jornalista Luís Rosa e onde constam memórias de Carlos Costa, ex-governador, sobre os 10 anos que esteve à frente do Banco de Portugal, entre 2010 e 2020, e que é apresentado esta terça-feira, 15 de novembro.
A passagem refere-se a uma carta enviada por António Costa ao Banco Central Europeu (BCE) e à Comissão Europeia em dezembro de 2015, que o ex-governador diz ter precipitado o trágico fim do Banif. E mostra um primeiro-ministro que logo naquela altura, mal tinha tomado posse, assumia a banca como um sector onde tinha “preocupações”: não só o Banif, como o Novo Banco, que tinha passado por um concurso de venda que falhara.
AS RESOLUÇÕES
No caso do Banif, no fim de 2015, foi António Costa que disse que a resolução, com divisão do banco em três e venda da parte saudável ao Santander, era, “no quadro das soluções [então] possíveis, a que melhor defende o interesse nacional”.
Foi também o primeiro-ministro que deu a cara, ao lado do ministro das Finanças, Mário Centeno, pela decisão de venda do Novo Banco à Lone Star, em março de 2017: “O Banco de Portugal decidiu a venda ao investidor norte-americano Lone Star”, disse, referindo que o fez porque ficaram salvaguardadas “três condições fundamentais” definidas pelo Governo.
O Governo de António Costa assumiu um papel que Passos Coelho e a sua ministra das Finanças, Maria Luís Albuquerque, sempre recusaram, dizendo que tudo o que era relativo ao BES e à resolução bancária era decidido pelo Banco de Portugal (exceto a disponibilização de verbas públicas).
RETIRAR AMARRAS À CGD
Mas a intervenção do Executivo não se ficou por aqui, porque foram as alterações legislativas que acabaram por resolver muitos dos problemas que existiam na banca.
Foi em março de 2017 que ficou concluída a capitalização da Caixa Geral de Depósitos (CGD), cuja negociação começara no verão anterior. Uma capitalização que permitiu a limpeza dos seus ativos tóxicos e hoje em dia possibilita apresentar os maiores lucros do sector e anunciar dividendos recorde.
Para isso, em julho de 2016, quando já queria contratar António Domingues, vindo do BPI, o Governo de António Costa teve de alterar o Estatuto do Gestor Público para dali retirar a CGD: só assim conseguiria pagar remunerações mais elevadas, sem terem de estar associadas ao salário do primeiro-ministro, ou ao lugar de origem do contratado (o que criava distorções nas administrações). Foi este diploma que depois pôs quase a sair do Governo o então ministro das Finanças, Mário Centeno, por desentendimentos sobre o acordo com Domingues relativamente à entrega de declarações de património e rendimento dos gestores.
Curiosamente, quando criou o Banco Português de Fomento, em 2020, o Governo de Costa e o seu antigo ministro Pedro Siza Vieira quiseram pôr o banco sob as amarras salariais do Estatuto do Gestor Público. A instituição acabou por ficar liberta dessas amarras este ano, porque o Executivo não conseguia contratar para a administração da entidade.
DIPLOMA BPI
Recuando à CGD, alterou-se a lei para favorecer os seus salários, mas antes já tinha havido uma experiência. Em abril de 2016, o Governo de Costa, com Mário Centeno nas Finanças (e Ricardo Mourinho Félix ao seu lado), já tinha publicado um diploma para tentar resolver um impasse acionista no BPI.
O banco tinha um limite aos direitos de voto, aquilo a que se chama a blindagem dos estatutos, que impedia um acionista de votar com mais de 20% dos votos, mesmo que tivesse capital acima dessa percentagem, como acontecia com os espanhóis do La Caixa/CaixaBank, que, tendo maior peso no capital, votavam praticamente com o mesmo poder de Isabel dos Santos, segunda maior acionista.
Depois de uma tentativa de compra falhada dos espanhóis, o Governo fez uma lei que determinava que a cada cinco anos os bancos têm de rever a blindagem de estatutos (e, nessa decisão, sem que se aplicasse os limites de votos).
Essa lei foi um passo para permitir ao BPI eliminar o limite aos estatutos (que colocava entraves a ofertas públicas de aquisição) e para resolver a necessidade ditada pelo BCE de reduzir o seu peso em Angola, onde tinha o Banco de Fomento Angola. Foi também uma negociação difícil com a investidora angolana Isabel dos Santos, num jogo de compensações que nunca foi totalmente claro (chegou a ser noticiada uma linha de crédito do CaixaBank a Angola, que depois acabou por nunca ser executada).
No programa “O Princípio da Incerteza”, transmitido no passado domingo pela CNN Portugal, o vice-presidente do BPI, António Lobo Xavier, frisou que “António Costa atravessou-se” neste processo, “interveio ativamente para desbloquear” o impasse no BPI, “contra os interesses” da filha do falecido presidente de Angola, José Eduardo dos Santos.
A consideração de Lobo Xavier (tinha sido também ele uma das vozes na polémica entre Domingues e Centeno por causa da CGD) foi feita para mostrar que António Costa não estava ao serviço de Isabel dos Santos – uma resposta ao trecho do livro “O Governador”, em que Carlos Costa censura o primeiro-ministro por o ter pressionado quando quis afastar Isabel dos Santos da administração do Banco BIC (hoje conhecido como Eurobic).
Segundo relata o ex-governador, António Costa terá dito que “não se pode tratar mal a filha de um Presidente de um país amigo de Portugal”, o que foi desmentido pelo primeiro-ministro – um desmentido que já passou para a ameaça do processo judicial.
Entretanto, o Observador noticiou esta terça-feira, 15 de novembro, uma mensagem escrita do primeiro-ministro ao ex-governador em que António Costa - que recusa ter dito a frase - diz que era “inoportuno” afastar Isabel dos Santos da administração do BIC naquela altura, quando se tentava também solucionar o BPI.
O que é certo é que Isabel dos Santos, que em junho de 2016 passou para a liderança da Sonangol, não continuou administradora do Banco BIC, mas continuou sua acionista até hoje. Mesmo depois do Luanda Leaks, em 2020, a investidora mantém-se na estrutura acionista do banco, numa venda que teima em demorar a acontecer (em cima da mesa está, agora, a alienação do banco aos espanhóis do Abanca).
DIPLOMA BCP
Foi também o Governo socialista, apoiado pela “geringonça”, que ajudou a resolver a fragilidade de capital que o BCP vivia em 2016, sendo que a sua resolução foi um pouco mais tarde que no BPI, mais precisamente em setembro daquele ano.
O BCP, com ações a valerem muito pouco (na casa dos cêntimos), queria fundir títulos, e a chinesa Fosun, que era já a dona da Fidelidade, queria investir no banco, com várias condições, uma delas precisamente a fusão de ações do BCP.
Só que para haver certezas jurídicas sobre esse reagrupamento de ações, foi preciso aprovar um diploma. O Governo de António Costa fê-lo.
PRESIDENTE INTERVENTIVO
Em todas as matérias, também Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente da República, teve um papel relevante, nem que fosse em matéria de calendário – por exemplo, no caso do BCP, aprovou o diploma governamental em 24 horas. No caso da CGD, a intervenção foi até mais evidente.
O Governo sempre foi recusando intervenções diretas (desde logo porque não pode fazer leis com um destinatário específico), dizendo que os diplomas tinham alcances para lá dos bancos em causa, mas a verdade é que ficou claro que foram esses diplomas que abriram as portas do controlo exclusivo do BPI aos catalães do CaixaBank e que permitiram à Fosun assumir-se como principal acionista do BCP.
OS CRÉDITOS AO MONTEPIO
Foi também no Governo de António Costa que se deu uma complexa operação fiscal e contabilística na Associação Mutualista Montepio Geral, a dona do Banco Montepio, que também a tirou de uma situação de desequilíbrio.
Uma decisão interna da equipa de António Tomás Correia foi o pretexto para que a entidade deixasse de ser isenta em sede de IRC – e tal passo, validado pelo Fisco, criou um grande balão de oxigénio que levou à constituição de créditos fiscais que engrossaram os seus ativos, dando força aos capitais próprios enfraquecidos.
O QUE NÃO ACONTECEU: BAD BANK E A REFORMA
O envolvimento no sector foi ainda mais além, mas também nem tudo foi concretizado. O Executivo de António Costa quis desenhar uma solução com um banco “mau”, que ficasse com os ativos tóxicos dos bancos comerciais, mas foi contra as exigências da Comissão Europeia – houve depois uma plataforma que pretendeu a renegociação com credores comuns dos principais bancos, que não correu bem.
Costa entrou com tanta vontade de mudar o sector que logo quis promover uma reforma da supervisão financeira. Foi muita promessa de mudança, que depois acabou por demorar anos a ser elaborada, e esbarrou nos prazos da Assembleia da República - e o Governo não insistiu.
O AFASTAMENTO QUE NUNCA ACONTECEU
Ao longo do seu mandato, o Governo foi criticando Carlos Costa, o primeiro governador com quem coexistiu, e que, embora tivesse sido inicialmente convidado pelo Governo socialista de José Sócrates, em 2010, não contou com o apoio do PS na sua recondução, em 2015, por decisão do Governo então liderado por Pedro Passos Coelho.
António Costa era contra a manutenção de Carlos Costa, depois da derrocada do BES e das dúvidas levantadas sobre a supervisão bancária, e o Executivo foi de vez em quando levantando dúvidas sobre a sua atuação.
Ricardo Mourinho Félix, que era então secretário de Estado das Finanças e está hoje no Banco Europeu de Investimentos (de onde tinha vindo Carlos Costa em 2010), chegou a acusá-lo de cometer uma “falha grave” de informação, devido aos últimos dias de vida do Banif, sendo que uma “falha grave” é a única forma de se poder exonerar banqueiros centrais a meio dos seus mandatos. O tema da possível exoneração regressou depois por conta dos créditos polémicos da CGD (de que Carlos Costa fora administrador).
Apesar do ensaio, o Governo nunca seguiu em frente nessas considerações, e não tentou o afastamento. Mas foi uma nuvem que por ali sempre deixou.
A PROMOÇÃO DO MINISTRO
Quando Carlos Costa acabou o mandato, foi o ministro das Finanças de António Costa, Mário Centeno, que ganhou lugar na liderança do Banco de Portugal, de que era quadro. Centeno, cuja promoção interna no supervisor tinha anos antes sido travada pelo então governador, acabava por ser o seu sucessor.
Durante mais de quatro anos no Conselho de Ministros português, e depois da presidência do Eurogrupo (que junta os ministros das Finanças do euro), o primeiro responsável pelas Finanças de Costa passou a ser governador do Banco de Portugal e a ter assento no Conselho do BCE, que junta a comissão executiva de Christine Lagarde com todos os outros governadores da zona euro, e onde são tomadas as principais decisões monetárias, como a subida de juros - que o primeiro-ministro agora frontalmente critica.