segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Há novas regras para produzir energia solar em casa. Eis o que tem de saber se quer investir.

O Governo reformulou o regime jurídico das unidades de produção para autoconsumo, tentando simplificar o licenciamento e as regras para quem quer produzir a sua própria electricidade. Apresentamos-lhe aqui o essencial das novas regras em 12 perguntas e respostas

O Governo acaba de publicar em Diário da República o novo regime jurídico da produção de energias renováveis para autoconsumo, com um decreto-lei que enquadra todos os direitos e deveres dos cidadãos e entidades que pretendam investir em pequenas instalações solares. O novo regime previsto no Decreto-Lei 162/2019, visa sobretudo simplificar e facilitar a vida aos novos produtores, mas nem tudo fica já definido. As novas regras entram em vigor a 1 de Janeiro de 2020.

O que são Unidades de Produção para Autoconsumo?

As Unidades de Produção para Autoconsumo (UPAC) são pequenas instalações de produção de electricidade de origem renovável que visam essencialmente cobrir parte ou a totalidade do consumo de electricidade de uma habitação ou de outros edifícios ou pontos de consumo de energia. Abrangem tanto micro-produtores que podem ter apenas um painel solar como produtores com dezenas de painéis. As UPAC distinguem-se de outras unidades de produção pelo facto de as primeiras terem obrigatoriamente de estar ligadas a um ponto de consumo de electricidade enquanto as segundas (orientadas para o negócio de venda de energia) podem unicamente injectar electricidade na rede.

Quais as obrigações de licenciamento?

Com o novo regime há vários níveis de controlo. Para instalar painéis até aos 350 watts o consumidor-produtor não precisa sequer de qualquer registo. Basta comprar os equipamentos e instalá-los. Instalações entre 350 watts e 30 kW estão sujeitas a uma comunicação prévia à Direcção-Geral de Energia e Geologia, num portal que será criado para o efeito. Já projectos de 30 kW até 1 megawatt (MW) precisarão de um registo na DGEG e da obtenção de um certificado de exploração. Unidades com potência acima de 1 MW precisam de licença de produção e exploração. As regras que vigoravam até agora obrigavam todos os produtores (mesmo os que tenham menos de 350 w) a comunicação prévia à DGEG.

Há um limite para o número de painéis solares a instalar?

Não. O novo regime jurídico indica que um dos deveres do consumidor é "dimensionar a UPAC de forma a garantir a maior aproximação possível da energia eléctrica produzida à quantidade de energia eléctrica consumida", mas as famílias e empresas são livres de instalar o número de painéis que pretendam. Os módulos fotovoltaicos em comercialização têm diversas potências e características, mas um painel comum de um metro de largura por 1,6 metros de comprimento tem habitualmente uma potência entre 250 e 280 watts (que seria suficiente para cobrir, por exemplo, o consumo energético de um frigorífico durante o dia). Se quiser instalar dois painéis deste tipo (uma solução que pode custar em torno de mil euros, embora o preço varie de fornecedor para fornecedor) já precisará de fazer comunicação prévia à DGEG.

As unidades de autoconsumo permitem viver desligado da rede?

Não, porque cada UPAC tem de estar ligada a um ponto de consumo e a um contador. Em teoria é possível instalar painéis solares suficientes para cobrir todo o consumo de uma determinada habitação e nessa mesma casa instalar baterias que permitam armazenar electricidade produzida a mais durante o dia para satisfazer o consumo nocturno. Mas essa é ainda uma solução demasiado cara para se constituir como vantajosa para o consumidor. Por outro lado, mesmo não considerando a compra de uma bateria doméstica, as famílias que adiram ao autoconsumo devem ter em conta que quanto mais painéis instalem (para cobrir o máximo de consumo possível durante o dia) mais tempo levarão a recuperar o investimento. O novo regime jurídico permite às famílias com UPAC vender à rede a energia excedentária que não consumam, mas o preço de venda será livremente fixado entre estes pequenos produtores e os comercializadores que contratem a compra da energia. O regime que vigorava até agora também o permite, mas com um preço pré-definido que equivale a 90% do preço grossista da electricidade no mercado ibérico (um tecto que desincentiva instalações sobre-dimensionadas). Por uma questão de segurança de abastecimento, os consumidores que se tornem produtores devem continuar a contar com um fornecedor de energia para os períodos do dia em que não são cobertos pelos seus painéis solares.

As UPAC são só para energia solar?

Não. O novo regime jurídico apenas limita as UPAC a "energias renováveis", mas não estipula que tenham de se basear em painéis fotovoltaicos, podendo portanto incluir também outras fontes, como as micro-eólicas. No entanto, o custo de ter pequenas turbinas eólicas é muito superior ao de investir em painéis solares, tornando esta a opção dominante nas instalações do tipo UPAC que têm sido feitas em Portugal.

É preciso um seguro?

Só precisarão de seguro de responsabilidade civil as UPAC sujeitas a registo ou licença, ou seja, instalações com mais de 30 kW (o equivalente a mais de 100 painéis solares).

Posso instalar eu mesmo?

A instalação de uma UPAC com potência instalada superior a 350 w é obrigatoriamente executada por uma entidade instaladora de instalações eléctricas de serviço particular ou técnicos responsáveis pela execução de instalações eléctricas, nos termos da Lei n.º 14/2015, de 16 de Fevereiro, e do Decreto-Lei n.º 96/2017, de 10 de Agosto. E essa entidade instaladora ou o técnico responsável deve assegurar que os equipamentos a instalar estão certificados.

Que requisitos há para a contagem da energia?

Segundo as novas regras, as unidades de autoconsumo colectivo (por exemplo, num condomínio ou partilhadas por um conjunto de empresas de um parque industrial) estão obrigadas a ter telecontagem (isto é, um contador inteligente que comunique em tempo real com o operador da rede eléctrica os dados de produção e de consumo). Essa obrigação de telecontagem é extensível aos particulares que tenham unidades com mais de 4 kW (instalações com 16 painéis tradicionais de 250 kW já ficarão sujeitos a isso).

As instalações estão sujeitas a inspecções?

As de maior dimensão sim. O novo regime jurídico estipula que as UPAC com potência entre 20,7 kW e 1 MW estão sujeitas a inspecções a cada 10 anos. Acima de 1 MW as inspecções serão feitas a cada oito anos.

E se mudar o titular do contracto de electricidade?

O novo regime jurídico estipula que se houver uma mudança no titular do contracto de fornecimento de electricidade ao qual está associada a unidade de produção, isso deve ser comunicado no portal da DGEG.

O que acontece a quem já tem painéis solares em operação?

As instalações de autoconsumo já em operação ao abrigo do Decreto-Lei 153/2014 passam a reger-se pelas novas normas a partir de Janeiro de 2020, mas não perdem os direitos assegurados, nomeadamente os contractos que tenham para a venda de energia excedente à rede, que se manterão válidos até ao final de 2025.

E se investir em painéis solares em quanto tempo terei o investimento pago?

Depende do preço a que comprar os equipamentos, da quantidade de energia que eles produzam (instalações no Sul do país poderão ter um retorno mais rápido do que no Norte) e do volume de energia que cada família consuma. A empresa SunEnergy, por exemplo, estima que uma instalação com quatro painéis, e com um custo de 1750 euros, permitirá poupanças anuais na factura de electricidade de 376 euros (no Porto) a 428 euros (em Faro), o que significa que em quatro ou cinco anos o investimento feito na instalação terá sido recuperado por via das poupanças na factura da luz. A partir daí o consumidor-produtor passará a acumular poupanças até ao fim da vida útil dos painéis (que podem durar cerca de 25 anos).

Miguel Prado

Armando Lacerda, o cientista que Portugal esqueceu.

Quem foi o cientista português que criou aparelhos mágicos, com nomes estranhos como tonógrafo ou labiógrafo e que na primeira metade do século XX atraiu para a periférica Coimbra cientistas das maiores universidades europeias e norte-americanas? Quem reconhece hoje em Armando de Lacerda (1902-1984), o criador de invenções que estiveram na origem de mecanismos como as impressoras de jacto de tinta?

O investigador de quem quase não se fala em Portugal continua a motivar publicações e conferências internacionais, mas pouco mais do que ninguém sabe quem foi o homem que marcou uma área e que desapareceu silenciosamente, magoado pelo esquecimento. O criador daquele que chegou a ser considerado um dos laboratórios de fonética mais avançados do mundo é ainda um enigma por decifrar.

Lacerda a utilizar o seu policromógrafo no Instituto de Fonética da Universidade de Bona, em 1932. Da esquerda para a direita, Paul Menzerath, diretor do instituto, e Armando de Lacerda, na época bolseiro de investigação da Junta de Educação Nacional

Lacerda a utilizar o seu policromógrafo no Instituto de Fonética da Universidade de Bona, em 1932. Da esquerda para a direita, Paul Menzerath, diretor do instituto, e Armando de Lacerda, na época bolseiro de investigação da Junta de Educação Nacional Museu Nacional da Ciência e da Técnica (Coimbra)

Mas afinal, o que se passou com o investigador português que em Harvard foi considerado um génio? Porque é que o seu percurso foi coberto por um espesso manto de silêncio? Uma das hipóteses é que terá sido vítima da deslocação de verbas para a guerra em África, retirando-lhe capacidade de actualização. Outra é que se deixou fechar entre um estreito grupo de seguidores, esquecendo-se da necessidade de alargar contactos e actualizar métodos. Ou ainda que a independência política de um cientista que soube crescer durante a ditadura do Estado Novo fez-se pagar com o apagamento no período democrático.

Congresso de Amesterdão, 1932

Congresso de Amesterdão, 1932 Arquivo Familiar Paulo Lacerda

Lacerda fez-se referência a estudar a contiguidade dos sons, ou seja, a forma como o som enunciado está já a preparar o seguinte, influenciando o que se acaba de dizer. Um trabalho que o levou a percorrer o país, captando os falares regionais e registando tipos humanos de um Portugal que já não existe. Assim, acabou por construir um enorme património sobre a identidade nacional. E, apesar de décadas de esquecimento, o resgate da importância de Lacerda está em curso, fruto do trabalho de um investigador do Instituto de História Contemporânea, Quintino Lopes. Doutorado em História e Filosofia da Ciência pela Universidade de Évora, tomou a braços a missão e encontrou na família do falecido cientista os parceiros disponíveis a ajudá-lo a restaurar o papel de Lacerda na história da ciência em Portugal.

Este mês de Outubro, Armando Lacerda foi tema de uma aula aberta na Casa Comum da Reitoria da Universidade do Porto e de uma conferência nos EUA a convite da Academia Militar de West Point.

I

O cientista ambicioso

Ouvir a voz humana e transformá-la em peças de Lego, tubos e juntas para construir máquinas surpreendentes, com nomes enigmáticos. Armando Lacerda ouvia para ver, registava riscos para ler sotaques, fixava sons em bobines feitas de fitas de papel. Misto de Jacinto, a personagem principal de "A Cidade e as Serras" de Eça de Queirós, e das deliciosas e loucas personagens do filme "Esses Homens Maravilhosos e as suas Máquinas Voadoras", o cientista português encarnava a ambiguidade característica da transição entre os séculos XIX e XX. Desinibido, deu-se a liberdade de aparafusar os falares regionais em dispositivos por ele criados. Muito fez, mas outro tanto sonhou apenas. O tempo tudo foi apagando, escondendo no fundo das gavetas das memórias familiares e no descaso da Academia, mas, sempre que sobra um resto no fundo de uma gaveta, aninha-se um fragmento de esperança de que alguém a venha a abrir. Há sempre tempo para fazer-se história, só não é possível recuperar o que se perdeu, o que ficou por fazer.

É aqui que entra o investigador Quintino Lopes. A relação entre este e Armando Lacerda começou com a preparação do doutoramento que resultou no livro "A europeização de Portugal entre guerras" em que é analisado o papel da Junta de Educação Nacional (JEN), criada em 1929, para fomentar e europeizar a investigação científica em Portugal durante os primeiros anos do Estado Novo. É ali que a história do foneticista começa a ser explicada. Percebe-se, por exemplo, que Lacerda foi um dos 65 conferencistas presentes no congresso da História da Atividade Científica Portuguesa, que reuniu em Coimbra, em 1940, algumas das principais figuras da ciência nacional da altura.

Armando de Lacerda em criança, com os pais e o irmão, por volta de 1908

Armando de Lacerda em criança, com os pais e o irmão, por volta de 1908 Arquivo Familiar Paulo Lacerda

Um fragmento do discurso de Lacerda sobre a contribuição de Portugal no campo da Fonética Experimental expõe a ambição do cientista, quando recorda que o seu primeiro trabalho na área tinha sido publicado oito anos antes e já numa revista internacional, os "Archives Néerlandaises de Phonétique Expérimentale". O autor não se furta a reivindicar uma atitude que marcaria o seu percurso profissional - a capacidade de inovar. "Apesar de se tratar dum artigo cujo texto abrangia, somente, uma meia dúzia de páginas, manifestou uma atitude nova, inteiramente contrária à maioria dos representantes da fonética experimental dessa época", afirma Lacerda. E, consciente do papel que desempenhava, não se furta a chamar a si um destaque que não lhe passava pela cabeça não ver reconhecido: "A obra realizada no espaço de tempo, relativamente breve, de oito anos, apresenta resultados de valor indiscutível".

Será na Alemanha que as investigações de Armando de Lacerda começam a ganhar corpo, país para onde o foneticista foi viver, financiado pela JEN e pelo Instituto de Alta Cultura (IAC), e onde conseguiu encontrar apoios e estrutura para desenvolver não só novos instrumentos de pesquisa como novos métodos de investigação fonética, ultrapassando as técnicas tradicionais então dadas como adquiridas. O que a investigação de Quintino Lopes parece indicar é, contudo, ainda mais surpreendente, indiciando que o regime de Salazar tinha planos para Lacerda que ultrapassavam o mérito individual das suas conquistas científicas.

"Este plano pressupunha, praticamente desde o seu início, o objetivo último de atrair para Portugal membros da comunidade científica internacional, o que efetivamente se concretizará", afirma o investigador Quintino Lopes no seu livro sobre a JEN. Dito de outra forma: através do cientista, a ditadura quer tirar Portugal da periferia científica. O que, contudo, não fez de Lacerda um amigo do regime. Quintino Lopes explica, inclusive, que a polícia política elaborou uma ficha sobre Lacerda, onde se podem ler críticas às suas relações com "elementos esquerdistas da faculdade", como Mário Silva, diretor do Laboratório de Física da Universidade de Coimbra, que acabou por ser afastado e de quem Lacerda era bastante próximo. Apesar destas ligações, o foneticista assumia uma grande latitude nas suas relações, que abrangiam colegas próximos do nazismo e outros de países então comunistas, como a Hungria, o que hoje pode ser comprovado pela correspondência trocada com investigadores.

Policromógrafo, Museu Nacional da Ciência e da Técnica, Coimbra

Policromógrafo Museu Nacional da Ciência e da Técnica (Coimbra)

Mas a história de Armando de Lacerda precede a do cientista. Armando Soeiro Moreira de Lacerda nasceu numa família favorecida da cidade do Porto em 1902, no romper do século XX. Perdeu o pai com 19 anos e a mãe pouco depois. Educado com as luzes do século XIX, fez-se culto e amante das artes, como a música erudita ou a poesia. Licenciou-se em Filologia Germânica pela Faculdade de Letras do Porto com classificações elevadas, que o incentivaram, juntamente com os trabalhos experimentais na cidade natal e um curso de férias na Universidade de Berlim, a pedir uma bolsa para continuar os estudos na Alemanha, país onde se instala no verão do difícil ano de 1930. E enquanto o mundo tremia em todas as esquinas com o crescimento dos nacionalismos e a derrocada da economia, o cientista português focava as atenções na sua especialidade de eleição, a Fonética Experimental.

Depois de um ano em Hamburgo, Armando de Lacerda é convidado pelo diretor do Laboratório de Fonética da Universidade de Bona, Paul Menzerath, para continuar as suas investigações naquela cidade alemã. A bolsa é prorrogada, explica Quintino Lopes, com a justificação de que era necessário Portugal acompanhar a evolução da área da Fonética Experimental que acontecia nos principais centros universitários europeus e dos Estados Unidos. Um ano mais tarde, Simões Raposo - médico que se destacou no fim da Primeira República pela fundação e direção da Junta de Orientação dos Estudos, destinada a dar bolsas e criar institutos científicos e que constituiu o primeiro esforço no século XX para fomentar a investigação científica em Portugal - pede a Lacerda que se empenhe na montagem de um laboratório de fonética português. Tudo estaria a seu cargo, desde a escolha e organização do espaço, à decisão sobre qual o material de investigação mais indicado a adquirir e a definição dos trabalhos que ali seriam desenvolvidos. Lacerda tinha carta branca do regime para agir, o que só poderia acontecer porque estava garantido o suporte político de que as verbas necessárias apareceriam.

Em apenas dois meses, numa carta citada no livro de Quintino Lopes, o cientista informa que já tinha sido aceite como membro da International Society of Experimental Phonetics e avança mesmo que a criação de um laboratório em Portugal com o apoio da JEN permitirá organizar cursos para investigadores nacionais e estrangeiros, assumindo, mais uma vez, a ambição de atrair a nata da investigação da área para um país sem tradição ou provas dadas na Fonética Experimental. O ano de 1932 fica marcado ainda pela realização do I Congresso Internacional de Ciências Fonéticas, que teve lugar em Amsterdão. Autorizado pela comissão organizadora a proferir uma conferência na qual faria demonstrações de um novo aparelho de sua autoria, o policromógrafo, Armando de Lacerda tornar-se-ia num dos pólos de atração do encontro. "Reconhecendo a importância dessa participação, que consagraria um português como o criador de um novo método de investigação, o cromográfico - método de registo sonoro para análise de sons da linguagem - e garantindo a sua repercussão no desenvolvimento da Fonética Experimental em Portugal, a JEN concede um subsídio extraordinário de 11.000$00 para a construção do aparelho, que ficará em posse do Centro de Estudos Filológicos", explica Quintino Lopes.

Mais sensível e menos dispendioso do que os aparelhos inscritores de sons até então criados, e susceptível de permitir ao utilizador registar em algumas horas o que exigia semanas de trabalho, a apresentação do policromógrafo em Amsterdão terá sido um verdadeiro sucesso. No fim desse ano, Lacerda recebe o reconhecimento internacional, quando o presidente da International Society of Experimental Phonetics, E. W. Scripture, escreve a Paul Menzerath atestando-o: "Acabo agora mesmo de percorrer o trabalho genial de V. Xª e do Sr. Lacerda. Só posso dizer que sob o ponto de vista da aparelhagem e dos métodos se chegou a uma perfeição até hoje ainda não alcançada. Não posso deixar de admirar a genialidade e habilidade dos autores. Os registos propriamente ditos são de uma precisão e perfeição que não têm igual. As explicações das curvas são excelentes. As conclusões que se deduzem são da maior importância. O trabalho é certamente do melhor que se tem publicado na fonética experimental."

Armando de Lacerda a lecionar um curso de introdução à cromografia no Instituto de Fonética da Universidade de Bona, em 1933

Armando de Lacerda a lecionar um curso de introdução à cromografia no Instituto de Fonética da Universidade de Bona, em 1933 Arquivo Familiar Zamora Canellada

Apesar de ter sido convidado a permanecer em Bona, onde poderia reger um curso sobre cromografia apenas para investigadores, Lacerda acabaria por voltar a Portugal no verão de 1933, nomeado pela JEN para dirigir a instalação do primeiro laboratório nacional de fonética experimental. Quintino Lopes conta que, antes de partir da Alemanha, Lacerda apressa-se em encomendas de livros e instrumentos de investigação, graças a mais um subsídio extraordinário do governo português. Um novo horizonte parecia abrir-se.

Mas em Portugal nada é tão simples quanto parece. Durante 39 meses, Lacerda confronta-se com a dificuldade de verbas exíguas quando comparadas com a sua ambição e capacidade. Tem de reduzir as suas participações em reuniões científicas, abandonando totalmente as deslocações internacionais. Numa carta, o cientista expõe a sua frustração e desencanto: "Foi-me concedido o subsídio mensal de mil escudos por mais um ano; como não me é possível viver com essa quantia... vejo-me obrigado a frequentar a Escola Normal onde vou continuar os meus estudos durante tanto tempo interrompidos. [...] Desejava dedicar-me inteiramente ao laboratório que vai ser montado em Coimbra e poder continuar a trabalhar de forma a não descer do nível a que nos habituamos nos centros alemães de especialização, mas a índole portuguesa tão inimiga do entusiasmo pela investigação não permite que se abandone a rotina. Em Portugal, a investigação continua a ser um luxo porque no final de contas, salvo raras excepções, ninguém investiga coisa alguma, e como o resultado é nulo, só se admite o investigador amador que nunca tem tempo para investigar, pois a sua atenção tem de se dividir por muitas e variadas ocupações. Tentei todos os meios de luta mas encontrei por toda a parte a mesma apatia, reflexo natural duma sociedade que vê na Junta de Educação Nacional, apenas, um meio de se viajar à custa do Estado."

Imagens dos portugueses que colaboraram com a pesquisa de Armando de Lacerda sobre os falares regionais, Biblioteca da Faculdade de Letras de Coimbra, folha 1 Album

Imagens dos portugueses que colaboraram com a pesquisa de Armando de Lacerda sobre os falares regionais Biblioteca da Faculdade de Letras de Coimbra

A 10 de setembro de 1936, contudo, são finalmente superadas as dificuldades e é publicado o Decreto-Lei nº 26994 que cria o Laboratório de Fonética Experimental da Faculdade de Letras de Coimbra e para ali convergiriam avultados subsídios, como explica Quintino Lopes, que apresenta a soma total de 162 mil escudos, entre 1934 e 1936. A ousadia de Armando de Lacerda concretiza-se na ocupação de várias salas para trabalhos laboratoriais (chegaram a ser dez salas), repletas de equipamentos para investigação, mesas para classificação e exame de registos sonoros, outras para a realização de trabalhos gráficos, uma câmara de captação microfónica para tomada e registo de som, uma sala de audições acusticamente condicionada associada a um pequeno auditório, uma fonoteca e um arquivo de gráficos e outros documentos, o arquivo sonoro dos falares regionais portugueses, uma sala de leitura e outra para serviços de direção". Um espaço essencialmente vocacionado para o estudo da língua portuguesa e as suas múltiplas entoações.

Alguns dos momentos mais interessantes do trabalho de Armando de Lacerda foram as viagens pelo interior do país à procura dos falares regionais. Minucioso, o investigador registava tudo em fotografia e em fichas individualizadas, com uma pormenorizada caracterização da pessoa ouvida. Nas fotografias aparece um país já extinto, com homens e mulheres identificáveis pelas roupas que vestiam, revelando um Portugal que já não há. Sempre com a primeira mulher, Berta, como companheira e ajudante e muitas vezes levando investigadores estrangeiros, Lacerda passou o país em revista. E encontrou portugueses como José Luzio, de alcunha Mariano, com 50 anos, que nasceu no concelho de Arraiolos, na freguesia de Nossa Senhora dos Mártires, viajou até Évora, Beja e "foi e voltou" de Espanha. Matador de porcos, foi entrevistado pelo cientista a 26 de maio de 1954. Na ficha, ficou registado que "sabia assinar o nome", mas revelava ter "integridade mental duvidosa" . Ou como Maria Helena, a Nicas, que nasceu em Mora, e com 22 anos já tinha ido quatro vezes a Lisboa e duas a Évora. "Criada de servir", era "vaidosa e pouco inteligente", foi entrevistada um dia depois de José e até cantou para Lacerda. Ou o Farrica, de nome Manuel Francisco, com 72 anos, também Arraiolos, que não passou de Évora e à frente da profissão "trabalhador", o cientista colocou um ponto de interrogação. Falhava na pronúncia dos erres e no dia da conversa mostrou-se "triste e cansado". Coimbra, centro do mundo fonético.

Inspirado nos melhores exemplos europeus, durante os três primeiros anos de atividade, Armando de Lacerda vai a Londres, Bona e Berlim visitar outras centros congéneres, estabelece relações com a Universidade de Harvard e, desta forma, vai cumprindo a missão assumida perante a direção da Junta de Educação Nacional (JEN) em 1932 de colocar Portugal na centralidade da investigação de ponta em Fonética Laboratorial e, desta forma, atrair investigadores estrangeiros para o laboratório de Coimbra, onde poderiam especializar-se nos seus métodos de pesquisa, consagrando-os cientificamente. Num registo citado por Quintino Lopes aparecem os nomes de 13 investigadores internacionais visitantes, entre espanhóis, suecos, escoceses, ingleses, noruegueses, norte-americanos, franceses, brasileiros, italianos e até um vindo do Gana, entre 1939 e 1956. E surgem nomes sonantes de universidades como Uppsala, Harvard, Barcelona, Edimburgo, Oslo ou Milão, entre outras.

Algumas destas instituições reconhecem a importância do laboratório de Coimbra e a excelência da investigação de Lacerda ao concederem bolsas de estudos aos seus investigadores para estudarem em Coimbra. Foi o caso de Harvard, Uppsala ou Londres. O método português chega a ser exportado quando, em 1955, o reitor da Universidade da Bahia, no Brasil, convida Lacerda a criar o primeiro laboratório de Fonética Experimental da América do Sul. Segue-se o Rio de Janeiro, onde no Colégio Pedro II, renomada instituição pública de ensino secundário, também é instalado um espaço semelhante. Lacerda foi ainda convidado a lecionar na Universidade de Madison-Wisconsin e, já em 1965, no Queens College, em Nova Iorque.

II

Pó e esquecimento

Deste período áureo, sobram hoje pilhas de mais de duas mil fotografias, muitos livros, opúsculos e registos dos mais variados tipos - legado da intensa dedicação de Armando de Lacerda à área da Fonética Experimental. Das instalações então ocupadas pelo cientista no subsolo da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, resta um pórtico de madeira, atualmente pintado de branco. Por baixo da tinta nova ainda é possível entrever as letras gravadas com o anúncio de que a partir dali entrava-se no território de Lacerda (Laboratório de Fonética Experimental). E nas paredes de algumas salas, hoje ocupadas por arquivos bibliográficos, existe uma cobertura de cortiça, traço visível de tudo o que desapareceu.

"Quem lá trabalha nem faz ideia do que se passou naquelas instalações durante a primeira metade do século XX", afirma Quintino Lopes, frequentador assíduo do espaço. Os mistérios sobre o trabalho de Lacerda acumulam-se, a maior parte dos livros ainda não foi analisada, como o papel com um organigrama manuscrito, em que para lá de categorias previsíveis como "registo sonoro" ou "medições e análises", surgem outras imprevistas - sob a referência a "manifestações linguísticas regionais", aparecem as palavras "candomblé", "capoeira", "maculelê" ou "samba de roda". O que terá Armando de Lacerda descoberto ao estudar estes aspetos da cultura brasileira que o fez dar-lhes tal estatuto?

Policromógrafo hoje

Policromógrafo hoje Rúben Pereira

Também das gravações encontradas em Coimbra, muito continua por descobrir. O que estará registado nas finas fitas castanhas, tão opacas quanto mais raros parecem ser os equipamentos disponíveis para as decodificar? Ainda não se sabe, embora a nova direção do Museu da Ciência da Universidade de Coimbra se mostre interessado em ajudar a descobrir. A instituição guarda nas suas reservas um conjunto de instrumentos estranhos que pertenceram ao espólio de Armando de Lacerda. Peças agora incompletas e a pedir restauro, objetos que têm de ser recuperados, inventariados e, sobretudo, colocados à disposição da sociedade. Como o tonómatro multiplicador ou o tradutor de figurações tonais em configurações luminosas, para já segredos aos olhos leigos.

E assim, o que ficou do inovador trabalho de Armando de Lacerda vai se deixando cobrir de pó e esquecimento, sem conseguir interromper o ciclo de decadência que se iniciou na segunda metade da década de 60 do século XX, quando as atenções da ditadura tinham urgências maiores a acudir do que os ambiciosos projetos de fazer de Coimbra um centro da investigação mundial em fonética. Lacerda perdeu importância, viu desaparecer interlocutores e, como resultado, as suas dez salas foram sendo ocupadas por outras áreas de investigação, até que, já nos anos 70, tudo parecia caber num só quarto. E muito do seu equipamento se perdeu. No início dos anos 70, Armando de Lacerda contacta ele próprio a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, dizendo que o laboratório de Coimbra iria fechar e oferecendo o material que quisessem. Algumas peças acabariam por ser transferidas para o Laboratório de Fonética e de Fonologia, atualmente o único do género em Portugal.

III

Os sonhos por cumprir

As portas da última sala do laboratório fecharam-se em 1979. Já ninguém se recordava do que em 1955 parecia ser uma sentença gravada em pedra, quando em Harvard se ousava dizer que "na Universidade de Coimbra está soberbamente instalado o Laboratório de Fonética Experimental. Créditos devidos ao seu genial diretor, Dr. Armando de Lacerda". "O trabalho do meu avô era uma forma de arte e era sociologia como quando percorreu o país a registar os falares regionais e acabou por fazer o retrato de um país, mas era também um trabalho técnico, que passou pela criação de dispositivos especificamente concebidos por ele para registar os sons", afirma Paulo Lacerda, o neto cujo rosto faz lembrar a imagem de Lacerda, fixada nas muitas fotografias a preto e branco do cientista guardadas pela família.

É também muito de Armando de Lacerda que ainda marca a memória de Paulo, como a imagem de ver o avô a escrever "muito depressa à máquina" e ainda hoje o barulho da sineta, cada vez que Lacerda trocava de linha, soa-lhe nos ouvidos à saudade. Lembra-se de a avó Adélia (segunda mulher de Armando de Lacerda) dizer que o marido "escrevia ao ritmo do pensamento" e que a velocidade devia-se à prática do piano. Fragmentos familiares do cientista que em 1933, enquanto em Berlim cresciam as sombras do nazismo, vivia em Bona, trabalhava no Instituto de Fonética, e sonhava com a possibilidade de criar "uma máquina falante [que] permitirá aos mudos exprimirem os seus pensamentos, manejando um simples teclado". Um homem que deixou marcas em investigadores de vulto como Francis Millet Rogers, da Universidade de Harvard, que evocando a morte do português com quem durante quatro meses em 1939 estudou em Coimbra, não teve pudor em afirmar: "infelizmente, o mundo falhou em apreciar até que ponto ele havia antecipado muitas ideias e descobertas da era posterior."

Armando de Lacerda, na praia de Ipanema, no Rio de Janeiro, em 1958

Armando de Lacerda, na praia de Ipanema, no Rio de Janeiro, em 1958 Arquivo Familiar Paulo Lacerda

Um homem que não se fechou no seu querido laboratório, mas escreveu mais de dez peças de teatro, obras de poesia, e deixou um legado ainda longe de estar todo estudado. Uma personagem que não cessa de surpreender, mesmo ao próprio neto, que encontrou na última página do último livro de Armando de Lacerda - "Objetos verbais e Significado Elocucional Toemas e Entoemas Entoação" - a citação a propósito do que o próprio autor diz ser "a impossibilidade de verbalizar o que se pensa ou sente", de um verso de um seu grande amigo, o poeta Campos de Figueiredo, que parece revelar tanto pelo pouco que enuncia: "Anda comigo/ Uma palavra que não digo,/ Porque é só pensamento".

E Paulo desabafa, como só alguém de família pode desabafar: "Como neto direi que sintetiza a personalidade e sentimento do meu avô ao terminar a carreira e fechar a porta do laboratório ou do que deste ainda restava. Foi o primeiro a entrar e o último a sair." Para concluir: "O rigor científico do meu avô impôs-se à política. Sofreu com as invejas dos colegas no declínio do Estado Novo; dependia das verbas públicas, mas nunca calaram-lhe a voz", revela. Hoje, a família sente "necessidade de fazer justiça" ao trabalho do cientista, que chegou a pedir ao Governo que o ajudasse a registar as patentes dos equipamentos que criava e viu os seus pedidos recusados.

Numa foto enviada por Paulo Lacerda, o empresário então uma criança com não mais de oito anos, aparece por trás das pernas do avô. Armando de Lacerda morreu em 1984, com 82 anos. Muito do seu trabalho se perdeu, outro tanto está por estudar. Há cerca de um ano, Quintino Lopes, com a colaboração dos Serviços de Informática/Audiovisual da Universidade de Évora, avançou com a produção de um documentário sobre o cientista e o seu Laboratório de Fonética Experimental de Coimbra. Pode ser que finalmente Portugal se reveja nos falares regionais fixados por um cientista, que, como deixa escapar o neto, aprendeu que "pior do que morrer, é ser esquecido".


Texto Christiana Martins

https://multimedia.expresso.pt/o-cientista-que-portugal-esqueceu/#home

A lavandaria do Panamá

Todos sabemos que nunca houve no mundo tanto dinheiro e que esse dinheiro não está a ser distribuído ou taxado.

Trinta e nove corpos clandestinos num camião búlgaro. Ao mesmo tempo, o patrão de uma empresa denominada WeWork, e que encontrou sérias dificuldades na oferta pública sendo obrigada a retirá-la, receberia 200 milhões de dólares para se retirar e deixar um investidor, o Softbank, resgatá-la com a injeção de biliões. Como tantas outras, a startup e o ‘disruptor’ foram sobrevalorizados. Temos aqui um dos variados espelhos da desigualdade que o capitalismo sem freio nem escrutínio, sem regulação de políticos medrosos e desautorizados, promove e ambiciona. Um mundo unipolar desde a falência do modelo coletivista soviético, que se recusa a taxar o grande capital e que faz basear os regimes fiscais numa classe média e assalariada à qual foram pedidos, exigidos, os resgates dos bancos e do sistema financeiro. Todos sabemos que o dinheiro se multiplica sozinho, como sabemos que o dinheiro nunca se multiplica a partir de um salário, a não ser que esse salário seja de um administrador ou quadro superior que receba cerca de cem a duzentas vezes mais do que os trabalhadores da empresa. Todos sabemos que nunca houve no mundo tanto dinheiro e que esse dinheiro não está a ser distribuído ou taxado. Sabemos que muito dinheiro é sujo. Em que se distingue um oligarca russo que se apoderou dos recursos naturais do seu país dos corruptos ditador africano ou alto burocrata chinês, e todos de um chefão de um cartel mexicano ou colombiano da droga? No ramo de negócio.

Uma vila do Reino Unido descobriu que os habitantes pagavam mais imposto de renda do que o Facebook de Zuckerberg, e acionou os mecanismos de protesto e rebelião. Inutilmente, porque a opinião publica vê com maus olhos a taxação intensiva das tecnológicas às quais oferece os dados pessoais enriquecendo-as até ao infinito, e prefere culpar os rendimentos dos políticos ou os bancos malfeitores. As tecnológicas escapam com impunidade. Na Europa, o único continente onde a regulação e taxação têm merecido a atenção de Bruxelas e da formidável Margrethe Vestager, as tecnológicas têm offshores em países inteiros, como a Irlanda. Ou a Holanda. Ou o Luxemburgo. Ou Chipre, oásis dos multimilionários russos com obscuros proventos. De vez em quando, um escândalo rebenta e durante dias os media dão-lhe uma atenção exclusiva para logo o deixarem cair. Os media, também por ignorância dos mecanismos de esconderijo do dinheiro, preferem temas que entronquem no escândalo passional ou político, no sumo cor de rosa ou no triunfo desportivo que alimenta os espíritos dos pobres que não ganharão o reino dos céus.

Os pobres não ganharão coisa nenhuma. Os corpos búlgaros não têm importância para o oligarca que lucrou com o desmantelamento do império soviético. E os media tradicionais estão eles mesmos na falência, engrossando as suas legiões um bloco que podemos designar genericamente por remediados. Poderá o “Washington Post” escrever sobre a Amazon e Jeff Bezos? Não.

O escritor e jornalista francês Emmanuel Carrère tem no livro “Il est avantageux d'avoir où aller” uma reportagem brutal sobre o Fórum de Davos e a hipocrisia dos salvadores do mundo, embrulhando o capitalismo universal num manto de bondade e boas intenções, das que está o inferno cheio. É um texto cómico, porque a abordagem deste mundo autocontido terá de ser cómica por não poder ser trágica. A tragédia, exceto a tragédia pontual dos corpos achados num camião como notícia sentimental do dia em que a Inglaterra tenta livrar-se de búlgaros e afins, que os brexiters não desejam acolher, a tragédia, repete-se, não convence e afasta a audiência. A abordagem trágica tem o mesmo efeito prático que o novo tomo de Thomas Piketty a desenhar os gráficos da desigualdade. O mesmo que as consequências reais do escândalo dos ‘Panama Papers’. Ou seja, nenhum. Durante uns dias a coisa é discutida apaixonadamente, e logo esquecida e enterrada.

As offshores, que sugam o dinheiro dos impostos que os Estados deveriam cobrar, continuam desreguladas. Os paraísos fiscais? Ninguém ousa pôr-lhes cobro. A começar pelas esquerdas, que não só continuam a insistir em alargar o Estado e premiar os funcionários públicos como nunca se movimentaram para cobrar às tecnológicas e multinacionais ou censurar os paraísos fiscais de uma forma compenetrada e exclusiva. A esquerda clássica quer retirar à classe média assalariada para dar à classe média assalariada, retirar às empresas privadas que pagam impostos para dar aos cidadãos pobres que pagam impostos. As esquerdas que temos, e isto é visível no Partido Trabalhista de Corbyn e McDonnell, não percebem que o mundo mudou. E não percebem de encriptação e segredo industrial. Não compreendem a civilização digital e a supremacia do algoritmo. Não percebem matemática e sofisticados sistemas de taxação, que Piketty percebe. Querem coletivizar e nacionalizar o que é possível, não perseguir o que é impossível. Com exceção de Elizabeth Warren, que nunca será Presidente da América.

Como Carrère, o novo filme da Netflix sobre a Mossack Fonseca, a dupla dos ‘Panama Papers’, escolheu a abordagem cómica (também usada em “The Big Short”, sobre a crise do subprime) que Steven Soderbergh trata com o talento dele. Um grupo de grandes atores, de Meryl Streep a Gary Oldman, de Sharon Stone a Antonio Banderas, serve um argumento bem escrito que desnuda os reis da lavagem do dinheiro. “The Laundromat” (“a lavandaria”) foi mal recebido nos Estados Unidos, paraíso do capitalismo liberal. Eu não vi os defeitos que os enfastiados críticos viram. Dada a obscuridade do tema, e as complexas ramificações, a abordagem cómica serve uma intriga que a abordagem dramática nunca conseguiria explicar com sucesso. Os senhores Mossack e Fonseca consideraram-se ofendidos, e só a reação dos cavalheiros vale o filme. Tencionam processar a Netflix. Good luck with that. Por uma vez, um gigante dos media é maior do que a honra do capital. Os depauperados jornais e cidadãos nada puderam contra a narrativa do Panamá e a criminosa ação dos paraísos fiscais. A Netflix faz o que não podemos fazer. Porque tem poder e tem dinheiro para isso. E o dinheiro é a única coisa que (im)pressiona o dinheiro.

CLARA
FERREIRA
ALVES

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As famílias na Brisa

O PCP e o BE ficaram sem “famílias ricas” para alvejar nos seus discursos — o capitalismo de família mudou radicalmente.

ompare a lista dos mais ricos de 2019 com a de há meia dúzia de anos. Não descubra as diferenças, procure as semelhanças — são poucas. Vendas a estrangeiros, colapsos e mortes mudaram tudo. Agora é o Grupo José de Mello a anunciar a venda da sua joia da coroa, a Brisa. Mais um fim neste destino de declínios? Não: é exatamente o contrário.

Um saudosista ficará entristecido, um revanchista ficará radiante, mas aqui não se propõem estados de alma nem de calma. Os “impérios familiares” não são todos iguais, dividem-se entre os que criam e os que se apropriam, os que inovam e os que se conservam, entre os que investem e concorrem e os que são investidos pelo poder e correm com outros, entre os que redistribuem e tratam os trabalhadores com dignidade e aqueles que lhes pagam a miséria mínima. Nestas diferenças estão também destinos diferentes, quase todos ditados por falta de capital e excesso de dívida.

Champalimaud não deixou um grupo, trocou tudo por dinheiro antes de morrer e deixou de legado a surpresa de uma fundação. Os Espíritos Santos colapsaram em dívidas e em vergonha. Os bancos privados são hoje todos estrangeiros. Nos últimos dois anos morreram quatro grande empresários de impérios familiares: Américo Amorim, Belmiro de Azevedo, Pedro Queiroz Pereira e Alexandre Soares dos Santos. As sucessões geracionais despersonalizaram a gestão profissionalizando-a, mas os filhos mantêm-se e lidam com clássicas diferenças e desavenças entre irmãos — e com a tentação permanente de vender. Paula Amorim administra a Galp com profissionais, Cláudia Azevedo tomou o lugar do irmão Paulo na Sonae, as filhas de Queiroz Pereira têm todos os dias bancos a propor a venda da Semapa/Portucel, os filhos Soares dos Santos mostrarão agora se cumprem os cuidados do pai na sucessão.

Estas sucessões e desmanchos representam uma mudança histórica nos grupos familiares, agora mais assente no profissionalismo de equipas do que no carisma do seu líder. Com mais negócios internacionais. E menos ligados a telefones vermelhos para determinados bancos, porque do outro lado já não estão portugueses com quem jogam golfe ao fim de semana.

A notícia desta sexta do “Jornal de Negócios” de que o Grupo José de Mello vai vender a Brisa, a sua “vaca leiteira” de dividendos, sugere o mesmo tipo de ocaso de uma família histórica. Só que não.

Claro que as autoestradas vão passar a ser (mais) um negócio estrangeiro, mas a velha conversa dos centros de decisão nacional não interessa como nunca interessou. Só é importante sabermos que grupos estrangeiros desinvestem mais depressa de “filiais” quando as coisas correm mal; e que os lucros aqui gerados saem do país.

Mas agora veja o negócio que a José de Mello vai fazer: é uma pipa de massa, feita por quem há meia dúzia de anos estava com a corda dos bancos na garganta e esteve em risco de perder quase tudo. A dívida é ainda alta, a venda acontece após muito pressão de um parceiro estrangeiro (a Arcus), mas veja o antes e o depois.

A família tinha 30% da Brisa antes de uma OPA lançada há sete anos, que já praticamente pagou só em dividendos; depois do negócio agora anunciado, ficará com 20%. Pelo caminho, vai receber por centenas de milhões de euros. Os jornais avaliavam ontem toda a operação em 2,2 mil milhões de euros. Esqueça, há tanto interesse neste sector por investidores financeiros e fundos de pensões que ainda ouviremos falar de mais de três ou mesmo 3,5 mil milhões de euros. A pergunta não é pois se isto é o fim dos Mellos, mas que reinício pode ser.

Sob a gestão de Vasco de Mello, o grupo mostrou duas características: não é agarrado a nenhum sector e sabe vender. Não é um grupo de tradição, mas de transição — e transação. Há 20 anos, controlava a Lisnave e a Soponata, os braços da Quimigal, a seguradora Império e o Banco Mello. Saiu da indústria naval, do sector financeiro e quase do sector químico, tornando-se forte nas infraestruturas e na saúde. Entretanto, vendeu sempre ou caro ou antes de ter de embaratecer, como se viu quando fez a fusão do Banco Mello com o BCP, quando depois saiu do BCP, quando depois saiu da EDP ou quando vendeu negócios no Brasil. Fez sempre grandes negócios. É o que fará agora na Brisa.

Não tenha pois saudosismo nem revanchismo pela venda da Brisa, pergunte antes o que o Grupo Mello vai fazer ao dinheiro, se vai plantar batatas, bananeiras ou novas árvores de negócio. Sorte do PCP e do BE, que não terão apenas fantasmas nos seus discursos que sempre listam “os Espíritos Santos, os Champalimauds, os Queiroz Pereiras e os Mellos”. Se não quer falar só dos Mellos, o melhor é passar a usar nomes estrangeiros.

Pedro Santos Guerreiro

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Só um idoso podia enervar António Costa

É esta a nossa estagnação que tem de ser derrubada por alguém remotamente jovem: Costa e Rio representam uma classe política apavorada e sem poder perante o segmento mais velho do eleitorado.

PS é um partido de idosos. O que explica a enorme estagnação que nos sufoca: o PS vence a eleição, porque os idosos votam bastante (ao contrário de outros segmentos), mas o PS não consegue ir além dos círculos envelhecidos.

O PS não cresce como devia num sentido de uma maioria transversal e reformista, não consegue arregimentar novas energias. Costa tem menos votos do que qualquer versão de Passos (2015 e 2011). Os socialistas estão tão concentrados em agradar a uma certa camada da população (reformados, funcionalismo público) que não conseguem deslocar para uma votação esplendorosa mesmo depois de quatro anos fáceis.

É por isso que digo e repito que uma coligação alargada de direita pode vencer até confortavelmente o PS. De resto, só a direita pode congregar as energias reformadoras do país. É por isso que, na táctica de poder e na estratégia moral para país, a visão de Rui Rio é tão imbecil. Rio quer colocar o PSD na estagnação envelhecida do PS, não compreendendo que o PSD tem uma capacidade superior para ir buscar o voto não envelhecido (20, 30, 40 e mesmo 50 anos).

É esta a nossa estagnação que tem de ser derrubada por alguém remotamente jovem: Costa e Rio representam uma classe política apavorada e sem poder perante o segmento mais velho do eleitorado, a parte da população reformada e que recusa qualquer reforma do país. É só isto. É isto que o PSD tem de ser capaz de vencer no sentido de protegermos o nosso futuro próximo. Este país socialista e velho não aguenta uma mudança de política do BCE ou um novo pico nos preços do petróleo. Somos uma casca de noz que se julga um oásis firme.

Henrique Raposo

https://leitor.expresso.pt/diario/sexta-55/html/caderno1/opiniao/so-um-idoso-podia-enervar-antonio-costa

Os intocáveis

Indo direito ao assunto: eu sou contra a independência e mesmo contra a autonomia funcional do Ministério Público. Assim mesmo, sem cerimónias nem paninhos quentes. Tenho alguns bons amigos que são magistrados do MP e que, além de amigos que estimo pessoalmente, são profissionais que admiro pela forma como desempenham a sua função e como vêem a sua justa importância — com espírito de serviço público e não com delírios de grandeza corporativa ou de casta moralmente superior. Mas acontece que também já conheci o inverso: justamente por defender isto que defendo, já fui tratado em julgamentos onde me sentei apenas como réu de crimes de liberdade de imprensa (e, com excepção de uma vergonhosa sentença, sempre absolvido) como se fosse um perigoso criminoso, pelos magistrados do MP de serviço ao tribunal. E tive de engolir em silêncio revoltado a sua arrogante vingança sobre as minhas ideias, exactamente porque são autónomos e independentes e não há ninguém a quem me possa queixar deles, excepto um órgão chamado Conselho Superior do Ministério Público (CSMP), em cuja composição estão em maioria, administrando portanto uma justiça interpares. Ou seja, um simulacro de justiça.

Mas os meus irrelevantes exemplos pessoais não são o que pesa na minha posição de princípio. Ela é fruto de longa e ponderada reflexão — desde logo, olhando para o exemplo contrário do que acontece em países como a Alemanha, a França, os Estados Unidos, cuja natureza democrática do regime não consta que alguém ponha em causa pelo facto de o MP local não gozar da autonomia e independência de aqui goza. Mas é, sobretudo, fruto de uma reflexão resultante de uma longa observação da forma como tantas vezes um só magistrado do MP, actuando em roda livre, sem ter de prestar satisfações a ninguém durante ou depois, conseguiu roubar a liberdade a alguém, destruir a sua reputação na praça pública, liquidar a sua vida profissional e familiar, para no fim se concluir que tinha estado assanhado em cima de um inocente ou de alguém cuja culpabilidade não conseguiu provar. Dir-me-ão: “Bem, quando se persegue o crime, é aceitável poder-se enganar”. E eu respondo: “Não, não é aceitável. Quando se tem o poder de privar alguém da liberdade, de destruir a sua vida profissional e pessoal, de liquidar o seu bom nome, não se pode falhar. E, quando se falha, tem de se pagar.” Mas eles não pagam. Nunca. São irresponsáveis, inamovíveis, impunes, inatingíveis. São a única classe profissional em Portugal que não pode ser julgada disciplinarmente por ninguém que não eles próprios (nem sequer os juízes beneficiam de tal estatuto!), que não respondem perante um poder externo nem perante um poder interno hierárquico. São intocáveis. A Ex-procuradora-geral Joana Marques Vidal dizia há dias que se se alterasse este estatuto os procuradores-gerais passariam a ser uma espécie de rainhas de Inglaterra. Mas é curioso que o diga quando o seu antecessor Pinto Monteiro dizia o contrário: que, com este estatuto, era a rainha de Inglaterra que ele se sentia, sem sequer poder dar ordens aos procuradores de que é superior hierárquico. Quanto ao ministro da Justiça, esse, é apenas uma figura decorativa, que não tem poderes para definir e executar qualquer politica de justiça, cabendo-lhe apenas inaugurar instalações, ouvir reclamações e discursar na abertura do ano judicial.

Quem controla o risco da total independência do Ministério Público?

Esta semana, os magistrados do MP estiveram três dias em greve. Contra os projectos de lei do PS e do PSD de alterações aos Estatuto do MP — mudando apenas a composição do CSMP, que deixaria de ser maioritária e obrigatoriamente formada por magistrados do MP. Já tinham feito greve pelos mesmo motivo em Fevereiro e agora voltaram à carga, mesmo sabendo que as suas principais objecções estavam chumbadas à partida, pelo próprio e amedrontado Governo. Se em Fevereiro fora uma greve preventiva, agora foi uma greve punitiva, só pela intenção: para se ver quem manda na matéria. Uma greve contra um projecto de lei de deputados, ainda por cima condenado à partida, não é nada mau para quem acusava os deputados de se intrometer no princípio da separação de poderes… Mas a greve manteve-se, explicou o sindicato, porque, veja-se lá o desplante, das dezanove alterações que o sindicato queria ver na lei, só estavam asseguradas doze! Lá ficaram, como o sindicato queria, a manutenção da composição maioritária dos seus pares no CSMP; lá ficou, como pretendiam, a equiparação salarial dos magistrados do MP aos juízes, com a correspondente possibilidade de ultrapassarem no topo o vencimento do primeiro-ministro (uma situação que deve ser única no planeta); lá ficou a autonomia financeira, mais isto e mais aquilo. E ficou o princípio de que qualquer entidade, pública ou privada, tem de colaborar com o MP, “facultando documentos e prestando os esclarecimentos e informações solicitadas” — mas, para grande indignação do sindicato, com a ressalva de os senhores magistrados terem de justificar esse pedido de devassa absoluto. Ah, não tenham mão neles não!

Na véspera, o sindicato tinha, aliás, promovido uma espécie de roadshow sobre as iminentes ameaças à democracia que resultavam da simples ideia de alterar a composição do CSMP. Para tornar a coisa abrangente, convidaram dois eméritos representantes da sociedade civil, ou que imaginaram como tal: o primeiro era o agora nomeado justiceiro-mor e pregador moral do reino, João Miguel Tavares, o qual logo retribuiu a distinção escrevendo no “Público” que tudo se resumia a uma tentativa do PS e PSD para proteger os corruptos contra a nobre luta dos intrépidos magistrados do MP — o argumento popular ad terrorem que nunca falha; o segundo era esse modelo de jornalista, Ex-“Correio de Manhã” e agora “Sábado”, Eduardo Dâmaso. E, perante o campeão da violação do segredo de justiça, em estreita e íntima colaboração com magistrados do MP, Joana Marques Vidal afirmou que os responsáveis habituais por essas violações eram os polícias e os advogados dos arguidos. Não sei se a sala se riu ou corou de vergonha, mas sei por que razão os “rigorosos inquéritos” às violações do segredo de justiça ficaram sempre no armário do arquivo permanente. Também é por esta razão que eu sou contra a autonomia e independência do MP.

Porém, são mais importantes as outras razões. É certo que um MP sob a alçada do poder político é um risco sempre presente. Mas, apesar de tudo, é um risco controlado: pelos outros poderes, pela imprensa, pela própria dignidade dos magistrados do MP e da sua hierarquia, de que só eles parecem duvidar à partida. Mas quem controla o risco da sua total independência, que, com o actual estatuto, equivale a total impunidade? Quem nos garante que quando investigam um político ou um empresário não é por razões políticas ou pessoais? Quem nos garante que quando não investigam não é por razões obscuras? Quem nos garante que estão dispostos a investigar um colega com o mesmo empenho que investigam um político? Quem nos pode garantir que não abrem investigações ou as fecham em benefício de interesses escondidos? Que não promovem fugas de informação para disfarçar a sua incompetência ou para ajustes de contas? E, sobretudo, quem nos pode garantir que os mais sérios e mais competentes ficam com os processos mais importantes? Quem, finalmente, responde pela seriedade de quem não aceita responder a não ser perante um círculo fechado de pares? A que órgão independente nos podemos queixar dos abusos da independência do Ministério Público?

Não nos deixemos enganar: é disto que se trata quando o Ministério Público grita aos quatro ventos que está ameaçada a sua autonomia e independência. Outros pensarão diferente, com toda a legitimidade, mas, como vivemos em democracia, é isto que eu penso. E não estou na política, não exerço cargos públicos, não concorro a dinheiros do Estado, não tenho negócios e, tanto quanto sei, não sou suspeito de qualquer crime.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

https://leitor.expresso.pt/semanario/semanario2435/html/primeiro-caderno/opiniao/os-intocaveis?imp_reader_token=99a22ed6-cc4b-4266-9956-105362598870

Estagnação salarial + asfixia fiscal = empobrecimento

Que país quer António Costa construir com uma classe média asfixiada pelo garrote do Fisco e um salário médio cada vez mais próximo do salário mínimo? O país mais pobre da Europa?

Índice de Kaitz. Conhece? Com a exceção dos leitores economistas, é pouco provável. De forma simples, é um índice que mede o rácio entre o salário mínimo e o salário mediano e permite perceber a diferença entre a remuneração mínima garantida e os salários intermédios. Em 2006, Portugal estava a meio da tabela deste ranking da União Europeia mas em 12 anos subiu para o segundo lugar com o salário mínimo a representar 61,4% do salário mediano. Mais: com mais um aumento do salário mínimo nacional (SMN), anunciado por António Costa no discurso de tomada de posse do seu segundo Governo, é muito provável que Portugal passe a liderar esse ranking.

Isso é fantástico, não é? Finalmente, Portugal lidera um ranking da União Europeia! Certo? Não. Infelizmente, é péssimo liderarmos ou estarmos próximo do topo neste índice. Porque este indicador reforça a estagnação económica em que o nosso país está mergulhado há mais de 25 anos. E que o PS, um dos maiores responsáveis por essa mesma estagnação por ter governado 17 desses 25 anos, tenta esconder como uma avestruz que enterra a cabeça de forma militante, convicta e irresponsável  na areia.

A subida dos valores do Índice de Kaitz têm uma explicação lógica: enquanto os valores do salário mínimo nacional subiram 18,3% em valores reais entre 2009 e 2019, já o salário médio caiu 2,4% no mesmo período, segundo dados revelados este fim-de-semana pelo caderno de Economia do Expresso.

2 O que significa isto? Significa que existe uma estagnação salarial brutal no nosso país — que o Governo chama burocraticamente de “ausência de um dinamismo salarial generalizado no mercado de trabalho nacional” (ver aqui pág. 64 deste relatório).

Ou seja, por mais que o Governo aumente o salário mínimo nacional — como, uma vez mais, pretende fazê-lo dos atuais 600 para 750 euros em 2023, uma subida de 8% — isso não significará que os restantes salários, nomeadamente o médio, aumentem. Por exemplo, o salário mínimo nacional nominal subiu cerca de 20% entre 2014 e 2019, enquanto que no mesmo período a subida do salário médio não chegou a 1% em termos nominais.

Ou seja, ao contrário do que o Governo de António Costa e alguns comentadores políticos desejam, a subida do salário mínimo não influencia a subida do salário médio. Essa influência restringe-se única e exclusivamente a salários com valores muito próximos do SMN. Por exemplo, a faixa salarial entre 600 e os 749,99 euros passou de 25,1% para 29,7% do total dos trabalhadores por conta de outrem entre 2011 e 2016, segundo o relatório de acompanhamento do rendimento mínimo nacional garantido de novembro de 2018.

E porque razão isto acontece? Se a subida do salário mínimo é aprovada por decreto do Governo, já o salário médio só sobe se existir racional económico que sustente tal incremento. Entre outros possíveis fatores, ou a produtividade aumenta ou a concorrência por melhores quadros a isso obriga. É o mercado que determina essa subida — e não o Governo, seja ele qual for.

3 Veja-se os dados da produtividade dos trabalhadores portugueses por hora de trabalho. Os resultados não são bons, basta ver aqui. Ocupamos o 22.º lugar entre os 27 países da União Europeia e só estamos à frente da Grécia, Polónia, Roménia, Letónia e Bulgária. Ou seja, fomos ultrapassados por países como a Hungria, Estónia, Eslovénia, República Checa, Lituânia, etc. Pior: conseguimos a proeza de termos hoje uma produtividade mais reduzida do que tínhamos em 1995, enquanto que uma parte significativa dos países do leste que nos ultrapassaram duplicaram os valores dos anos 90.

Esta não é culpa exclusiva dos trabalhadores, como é óbvio. A ausência de know how e de capacidade de gestão que caracteriza o empresariado português (construído à base de pequenas e médias empresas familiares e com um nível de escolaridade não qualificado) também tem uma quota parte importante de culpa nesta matéria.

Seja como for, o meu ponto é o seguinte: o Governo tem algum plano consistente para combater aquele que é um dos mais graves problemas da economia nacional? Tem ideias e ambição para enfrentar o problema? Portugal precisa de ter urgentemente um Plano Nacional para aumentar a produtividade com medidas concretas para trabalhadores mas também para gestores. Eis um bom tema para levar à mesa da Concertação Social.

4 Obviamente que não estou com isto a defender que o salário mínimo nacional deva continuar estagnado com o salário médio, sendo que quase dois terços dos trabalhadores por conta de outrem recebem menos de 1.000 euros mensais. O estou a criticar é a ausência de ação económica a médio e longo prazo do PS de António Costa para construir políticas públicas que ajudem a construir um contexto económico que promova um incremento do salário médio. A sua narrativa no campo do trabalho é essencialmente ocupado com o salário mínimo nacional, além da necessidade de termos mão-de-obra mais qualificada. Mas, neste último ponto, sem propostas concretas para alcançar esse objetivo.

E como é que isso pode ser feito? Em primeiro lugar, definindo um política de médio longo prazo que permita atrair investimento direto estrangeiro para setores com necessitem dessa mão-de-obra qualificada e que sejam mais valias para as nossas exportações. Tal só será possível com uma política fiscal competitiva e estável, custos de contexto económico igualmente vantajosos e uma justiça eficiente que resolva conflitos em tempo útil.

É verdade, como o primeiro-ministro diz, que o investimento tem crescido de forma significativa: 11,9% em 2017 e 6,2% em 2018. Mas a grande fatia vai para setores como a construção e o turismo, onde a mão de obra pouco qualificada e os salários baixos imperam — e onde o aumento do salário mínimo tem, de facto, impacto.

Por isso pergunta-se: onde estão os planos de António Costa para atrair um investimento estruturante como a Auto Europa foi e continua a ser? Onde está a vontade política para conseguir para Portugal investimentos que permitam reter os jovens portugueses altamente qualificados que saem das nossas universidades e que permitam reforçar o perfil exportador da nossa economia? Não existem porque o PS de António Costa pouco ou nada se preocupa com o investimento privado a médio longo prazo. O seu objetivo é apenas gerir o dia-a-dia.

5 Se juntarmos uma estagnação do salário médio com uma asfixia fiscal promovida há mais de 30 anos pelo PS mas também pelo PSD e CDS, então temos um cocktail explosivo que causa cada vez mais danos à classe média.

Recentemente, saiu mais um relatório de uma organização internacional que confirma o óbvio: Portugal é dos países da União Europeia com os impostos mais elevados. A maior carga fiscal de sempre faz com que o nosso país tenha o quarto valor mais elevado de taxa marginal de impostos dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE). Ou seja, Portugal tem à sua frente países como a Suécia e a Bélgica por valores ligeiramente mais altos mas, por outro lado, tem impostos mais elevados do que os países mais ricos da Europa como a Alemanha, a França, o Reino Unido, a Dinamarca, etc.

Repito: Portugal tem um contexto fiscal com custos para as empresas e as famílias muito superiores aos países mais ricos da União Europeia mas não tem, de todo em todo, serviços públicos que correspondam minimamente aos impostos cobrados, não tem um Serviço Nacional de Saúde que tenha uma relação custo/benefício decente, não tem uma rede de escolas públicas que sejam uma referência e, entre muitas outras coisas, não tem uma Segurança Social equilibrada e sustentável que assegure uma justiça social entre as diferentes gerações.

Mas também não tem um Governo que enfrente todos estes problemas de frente e proponha soluções exequíveis. Afinal, que país quer António Costa construir com uma classe média asfixiada pelo garrote do Fisco e um salário médio cada vez mais próximo salário mínimo? Provavelmente, um país a caminhar a passos largos para o fundo da tabela da riqueza da União Europeia para ocupar o trono de lata do país mais pobre e o mais envelhecido da Europa.

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Luís Rosa

https://observador.pt/opiniao/estagnacao-salarial-asfixia-fiscal-empobrecimento/

Devem os pais ser “amigos” ou “seguidores” dos filhos?

A dependência de internet entre os nossos filhos é tão inquietante que faz com que as velhas “cruzadas” contra os desenhos animados “violentos” tenham, hoje, um estatuto semelhante ao de um paraíso.

1 Devia ser proibido — sim! — que os pais sejam amigos do Facebook dos filhos. Tão proibido como eles vigiarem todos os seus recreios ou colocarem um programa-espião a esmiuçar todo o seu correio electrónico.

2 Devia ser, igualmente, proibido que as crianças de 13 anos tenham dados no seu telemóvel sem que os pais — sempre que entendam que é recomendável, e em presença dos filhos — não acedam aos lugares pelos quais eles “navegam” de modo próprio. Até porque é frequente que, mal coloquem mais de 100 likes num conjunto de conteúdos a que acedam, haja quem lhes envie convites para sites com conteúdos muito próximos da pornografia e haja quem, fazendo-se passar por pessoas pouco mais velhas, as convidam para castings de moda e sessões (mais ou menos ousadas) de fotografia que, depois, acabam mal.

3 Se já é grave que muitas crianças com menos de 13 anos tenham um perfil no Facebook, mais grave se torna quando ele é criado pelos pais, muitos antes dessa idade. E mais grave, ainda, quando pais e professores são amigos de Facebook das crianças e partilham fotografias e comentários “a pisar o risco” que faz com que, a seguir, não fique muito claro, para os mais pequenos, se o bom senso é uma característica dos mais crescidos ou, se pelo contrário, ela parece ficar ameaçada mal se põe o pé nas redes sociais.

4 É claro que todos compreendemos a preocupação dos pais em relação aquilo que se passa no Facebook dos filhos. Justamente por isso, é compreensível que eles queiram criar o perfil dos filhos, para prevenirem quaisquer “excessos de adolescente” que ele possa ter. E aceita-se, ainda, que, na ânsia de nada se passar nele à margem do seu conhecimento, que queiram ser seus amigos de Facebook. “Pedido de amizade”, aliás, que os filhos adiam aceitar até não poderem mais. Porque, não podendo rejeitar esse pedido (para não magoarem os pais) entendem — e bem! — que os pais se tornam um bocadinho intrusos junto de todos os seus amigos, o que faz com que um adolescente seja motivo de chacota, sobretudo quando os pais colocam “likes” a preceito. E quando fazem um ou outro comentário que transformam a sua presença “indetectável” no Facebook como a daqueles agentes secretos que vestem gabardina e põem um chapéu e óculos escuros e ficam mais ou menos sem jeito quando todos os desmascaram sem que eles percebam porquê.

5 Talvez porque essa “amizade de Facebook” entre pais e filhos seja muito constrangedora para os filhos, percebe-se (mas não se aplaude) que os filhos criem um segundo perfil, mais reservado, um bocadinho à margem de um certo “estou numa relação difícil” que a presença dos pais no seu “perfil oficial” devia merecer.

6 A internet, as redes sociais e os dados a que os nossos filhos acedem, livremente, são um admirável mundo novo; sim! Mas considerarem o telemóvel como “uma parte do corpo” dos seus filhos e demitirem-se, em absoluto, de se assumirem como “entidade reguladora” quando se trata de os proibirem (!!) de usar o telemóvel ou o tablet depois do jantar, enquanto estudam, ou quando vão ao restaurante já não se entende. Como não se entende que as escolas permitam que eles os usem dentro do espaço escolar. E não se pode senão reprovar que os pais lhes passem um iPad ou um telemóvel para a mão, nos restaurantes, para que eles estejam quietos e calados. Porque, na verdade, passamos a vida a permitir-lhes doses tóxicas de consumo de écrans e, depois, achamo-nos vítimas, sempre que eles ficam “agarrados” a eles.

7 A dependência de internet entre os nossos filhos é tão inquietante que faz com que as “cruzadas”, de antigamente, contra os desenhos animados “violentos” tenham, hoje, um estatuto semelhante ao de um paraíso E isso é — mesmo! — muito mau!! É claro que ter, em 15 dias, 150 novos amigos sabe bem. Pode-se não ser o mais popular da turma. Mas ninguém pára a sensação de se ter um perfil de sucesso. Enquanto isso, 25% dos nossos filhos passa mais de 6 horas na internet, de segunda a quinta-feira. Passam 25 horas por mês em frente do YouTube. Mais de 60% consideram-se “dependentes” da internet. E mais de metade dormem menos do que o recomendado, por causa disso.

8 Os pais preocupam-se quando os filhos são influenciáveis; mas regozijam-se quando são “influenciadores”. Preocupam-se com as “más companhias” mas vivem com indiferença o facto deles serem, simplesmente, “seguidores”.

9 Os pais passam a vida a querer saber os lugares que os filhos frequentam e quem são os seus amigos (e os pais dos amigos). Mas não sabem o nome dos “amigos” de Facebook, os “amigos” do Instagram, do YouTube ou do TicTok. Sobretudo quando, por exemplo, em relação ao YouTube, eles têm “carta branca” para andarem nos sites para bebés, para verem desenhos animados, para se instruirem com programas de ciência sem que, no entretanto, os pais se preocupem com inúmeros youtubers que, em condições normais, nunca seriam amigos deles. Por mais que os filhos os “consumam” horas a fio, todos os dias.

10 Desculpem: eu acho muito importante que uma adolescente pergunte aos políticos do mundo: “Como se atrevem?…”, quando se trata de todos destruirmos o planeta. Já fico sem jeito quando vejo o ar quase embevecido de alguns, como se estivessem mais satisfeitos por parecerem “cabeças abertas” do que propriamente a escutassem. Mas definir uma regra com bom senso e, sempre que os nossos filhos “pisam o “risco, haver quem lhes diga “Como te atreves?!…”, é que parece que deixa os pais com calafrios. Seja como for, a propósito da dependência em relação aos écrans ou às redes sociais, acho que os pais confundem ser-se “fixe” com serem bons pais. E é diferente! Quanto mais “fixes” temos a ilusão de ser mais os nossos filhoses tornam atrevidos. E isso não é mau; é, mesmo, um perigo, sobretudo para eles.

11 Por tudo isto, ser “fundamentalista” em relação ao “purismo” com que entenda interditar o acesso do seus filhos às redes sociais não é razoável. Mas demitir-se de definir regras de utilização em relação a elas também não é melhor. Nem em relação às redes sociais queira ser só “amigo” deles. Também aí, os pais definem regras. Fazem-nas cumprir. Repensam-nas. Aprendem com os seus erros. Mas não podem viver debaixo de ânsia de serem só “fixes”. Até nas redes sociais os pais são pais! E os pais têm de assumir uma ideia do que entendem correcto e protector. Não podem ser como aqueles pais que — seguramente, bem intencionados — dizem “Yah!” ou “Bué”, muitas vezes, e, depois, nem sequer conhecem os filhos, não sabem o nome do director de turma ou sabem quem são os melhores amigos dos seus filhos.

Eduardo Sá

https://observador.pt/opiniao/devem-os-pais-ser-amigos-ou-seguidores-dos-filhos/

Por que razão Ivo Rosa perde tantos recursos na Relação?

Decisões que não respeitam a lei ou a jurisprudência e que impedem o Ministério Público de investigar. É assim que a Relação tem visto o magistrado que tem o destino de José Sócrates nas mãos.

O número de decisões do juiz Ivo Rosa que são revogadas pelo Tribunal da Relação de Lisboa — algumas das quais com uma adjetivação forte — tem surpreendido. Até pelo padrão na censura à ação do magistrado do Tribunal Centra de Instrução Criminal.

Por um lado, o juiz de instrução costuma ser criticado por aquele tribunal superior de exorbitar as suas funções, invadindo o campo de competências exclusivas do Ministério Público (MP). Por outro lado, é censurado por avaliar a prova indireta de forma particularmente conservadora e não fundamentada — o que já levou um juiz desembargador a escrever, num acórdão que anulou uma sentença de absolvição decidida por um coletivo de juízes liderado por Ivo Rosa, que se trata de uma “incompreensível forma de julgar”.

Além de ter um elevado grau de exigência sobre os indícios que fundamentam os pedidos de buscas ou escutas telefónicas por parte do MP, Rosa é particularmente sensível aos direitos constitucionais que protegem a “intimidade da vida privada”. Foi com esse argumento que indeferiu buscas à casa de Manuel Pinho antes de o Observador revelar a avença mensal de cerca de 15 mil euros que recebeu do Grupo Espírito Santo enquanto foi ministro da Economia de José Sócrates, que proibiu escutas aos suspeitos do assalto a Tancos cerca de 20 dias antes do assalto propriamente dito e também impediu o acesso aos dados telefónicos que veio a permitir recolher prova da conspiração da Polícia Judiciária Militar para recuperar as armas roubadas de Tancos.

Por estar a liderar a fase de instrução da Operação Marquês — que envolve o ex-primeiro-ministro José Sócrates, que será ouvido em tribunal esta segunda-feira — é importante perceber o que está em causa. É normal um juiz de primeira instância ter tantas decisões revogadas? Será que Ivo Rosa tenta mesmo impedir o Ministério Público de investigar durante a fase de inquérito? A forma como o magistrado olha para a prova indireta faz sentido, particularmente em crimes económico-financeiros, como a corrupção?

A tentativa (falhada) de restringir a pesquisa nos emails de Mexia e de Manso Neto

Se há processo em que as derrotas de Ivo Rosa são mais visíveis é no chamado caso EDP, no qual o MP investiga suspeitas de corrupção e outros crimes nos alegados benefícios concedidos pelo ex-ministro Manuel Pinho à principal elétrica nacional. Desde que o juiz Ivo Rosa chegou ao Tribunal Central de Investigação Criminal que passou a existir uma guerra aberta com os procuradores que investigam o caso — com o Tribunal da Relação de Lisboa a servir de árbitro e a dar vantagem aos procuradores Carlos Casimiro e Hugo Neto.

Olhando para os números, vemos que o MP ganhou quatro recursos que interpôs contra decisões de Ivo Rosa e perdeu três, o que dá uma taxa de vitória de 57%. Não é habitual que um juiz de primeira instância seja derrotado tantas vezes no mesmo processo. Mas também é relevante que as interpretações jurídicas de Rosa tenham sido rejeitadas consecutivamente por desembargadores diferentes. Mais: as matérias em questão nos recursos do MP são pacíficas na comunidade jurídica há largos anos, logo a jurisprudência aponta no sentido contrário das decisões do juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal.

Luís Rosa

https://observador.pt/especiais/por-que-razao-ivo-rosa-perde-tanto/

domingo, 27 de outubro de 2019

O partido-Estado (PS)

O PS não é um partido de esquerda nem de direita; é simplesmente um partido para estar no Estado e para usá-lo em seu benefício. No PS já não há ideologia nem doutrinas. Há spin doctors e boys e girls.

O que dizer de um partido que acaba de formar um governo com 19 ministros e 50 secretários de Estado? Juntem agora os assessores e os adjuntos e teremos um governo com cerca de 500 membros. Isto não é um governo para melhorar o país. É um governo para se apropriar dos recursos do Estado e para controlar o país e os portugueses. Um partido com menos de dois milhões de votos tem poder para controlar, no essencial, a vida dos dez milhões de portugueses. Pode surpreender muita gente, mas António Costa recebeu menos votos dos portugueses do que Passos Coelho em 2015. Este é o retracto da degradação da nossa democracia, da apatia dos portugueses e do fim do ‘sonho’ de um ‘Portugal europeu’: um país próspero, uma sociedade civil forte e um Estado limitado (ainda se lembram das ambições nos anos de 1980 quando entrámos para a Comunidade Europeia?)

O PS não é um partido de esquerda, nem de direita; é simplesmente um partido para estar no Estado e para usá-lo em seu benefício. No PS já não há ideologia nem doutrinas. Há spin doctors e boys (e girls) a lutar por jobs. Quando falo da conquista do Estado pelos socialistas não estou a pensar nos funcionários públicos que servem o Estado por escolha profissional. Já conheci muitos funcionários públicos portugueses altamente competentes e dedicados ao país que servem. Tenho uma grande admiração por esses profissionais. O que me custa muito é ver a partidarização do Estado e, através disso, o controlo de grande parte dos recursos do país. O resultado dessa partidarização é a estagnação do país e o empobrecimento dos portugueses. Em termos europeus, Portugal é hoje mais pobre do que era no final do século passado. Ou seja, aumentou o número de países europeus mais ricos do que Portugal, e diminuiu o número de país europeus mais pobres do que Portugal. O socialismo levou-nos para a cauda da Europa.

A União Europeia ajuda de certo modo a estratégia do PS. Infelizmente, Bruxelas ajuda mais o reforço do poder do Estado do que a emancipação e a liberdade da sociedade civil. Por isso, a discussão das perspectivas financeiras para o período de 2021 a 2028 é a questão europeia mais importante para o governo. Os recursos financeiros dos orçamentos europeus são fundamentais para quem controla o Estado. Se esses recursos diminuírem, o poder do PS enfraquece. Por isso, nenhum governo socialista entrará em guerra aberta com a UE. Foi isso que o BE e o PCP aprenderam durante os anos da geringonça.

Se o PS é neste momento o partido-Estado, a ambição do PSD de Rui Rio é tornar-se também um partido-Estado. Idealmente, chegando ao governo, quando uma crise afastar os socialistas. Ou, segunda escolha, usar a regionalização para aproveitar os recursos de algumas das futuras regiões. A discussão de Rio entre direita e centro (de uma pobreza arrepiante de resto) não tem nada de ideológico. O centro para Rio significa manter o PSD na reserva para ser também um partido-Estado.

Há ainda muitos portugueses que seguramente querem levar uma vida profissional inteira sem contar com ajudas do Estado para nada (ou a isso são obrigados). Estou a pensar nas profissões liberais, nos pequenos comerciantes, nas milhares de pequenas e medias empresas. Ou seja, os milhões de portugueses que contam com o seu trabalho, com o seu esforço, com as suas competências para progredir e melhorar o seu nível de vida. Quem os representa? Quem os defende? Quem procura adoptar as políticas certas para os ajudar a prosperar? O PS não é. E o PSD de Rio, ao contrário da tradição do partido, também não é. Neste momento, a sociedade civil e a iniciativa privada portuguesas estão politicamente órfãs. Quem diria mais de 45 anos depois do 25 de Abril e mais de três décadas depois da adesão europeia? Eis o maior fracasso da democracia portuguesa.

João Marques de Almeida

https://observador.pt/opiniao/o-partido-estado/

Tapando a bandeira com a saia.

Onde estão as notícias sobre a manifestação em que a bandeira portuguesa foi apresentada como um símbolo do esclavagismo e do racismo? Não estão. O folclore do homem de saias cobre a realidade.

Infelizmente nem todas as bandeiras são internacionalistas, como nós sabemos. A bandeira portuguesa, permitam-me a sinceridade, ela tem pouco ou nada de internacionalista.  A bandeira portuguesa, na verdade, ela é do final do século XIX mas reparem uma coisa: ela, na verdade, ela exclui determinados grupos, ela tem uma vertente religiosa bastante vincada, ela ao mesmo tempo exalta uma forma de encarar o mundo que é uma forma racista e imperialista. E na verdade é uma questão de olhar os símbolos da bandeira. Falamos das quinas que representam as chagas de uma determinada identidade…

O vídeo continua por mais alguns minutos. Foi efectuado durante uma manifestação em frente à Assembleia da República na passada semana. Qual manifestação? Provavelmente, e sublinho o provavelmente porque a falta de notícias sobre o assunto é grande, durante a manifestação de apoio à deputada Joacine Katar Moreira. Lendo o que se escreveu sobre a dita manifestação sabemos que esta foi levada a cabo para contrariar os “ataques e perseguições racistas remetidos à recém-eleita deputada” que “Numa organização espontânea” do Coletivo Resistimos, na iniciativa ouviram-se ‘slogans’ como “somos todos filhos de imigrantes. Primeira, segunda, terceira geração” ou “racismo, fascismo, não passarão”, numa concentração “antifascista, antirracista contra a homofobia e contra o sexismo e ainda que “Além de defender Joacine Katar-Moreira e combater o racismo, o objectivo do Colectivo Resistimos, organizador do evento, foi também alertar para a entrada do Chega no Parlamento.” Sobre os considerandos proferidos pelos manifestantes acerca da bandeira portuguesa nem uma palavra. “Na verdade” como repetia o orador, aquele discurso revelava uma ignorância de antologia e um fanatismo que nos faz regredir àqueles momentos primordiais em que o simbólico ainda não fazia parte da nossa capacidade de entender o mundo e a nós mesmos. Mas nem isso nem o facto de o vídeo ter ultrapassado as 150 mil visualizações chegaram para que fosse notícia ou suscitasse o interesse dos autores de polígrafos e fact check que por uma vez na vida podiam abandonar aquela linha editorial de pegar na hipótese mais absurda para provar que todos aqueles que se opõem à agenda esquerdista são, além de mentirosos compulsivos, uns descerebrados.

Podia repetir o que já escrevi muitas vezes: o enviesamento esquerdista das redacções leva a que não se noticie não apenas o que parece mal à esquerda mas sobretudo o que deixa a esquerda mal na fotografia. Mas o caso é muito mais grave porque este mecanismo de auto-censura é em grande parte responsável pela destruição da convivência, da paz e da tolerância nas sociedades democráticas. Afinal quando estes colectivos, movimentos, blocos, comités… são apresentados como agrupamentos de vítimas e de pessoas que lutam contra crimes transversalmente condenados – como é o racismo – e depois se apaga o que estes activismos realmente defendem e dizem, está a permitir-se-lhes uma duplicidade que tem minado a sociedade livre e tolerante que já fomos: só esta semana, nas universidades francesas estes “combatentes da liberdade supervisionada por eles mesmos” forçaram a suspensão de uma conferência da filósofa Sylviane Agacinski e de uma formação sobre a prevenção e a detecção da radicalização. Esta última foi vista por algumas associações de estudantes como discriminatória para os muçulmanos. Já Sylviane Agacinski que se destacou na defesa dos direitos dos homossexuais, viu a sua integridade física ameaçada porque entende que as barrigas de aluguer são uma mercantilização do corpo das mulheres. Talvez por ser difícil culpar Bolsonaro ou Trump por estes acontecimentos aguarda-se por melhores dias para lhes dar destaque!

Por cá e por agora as declarações sobre a bandeira proferidas na manifestação em frente ao parlamento são omitidas até que um dia se considere que a “sociedade já está suficientemente amadurecida” (ou seja anestesiada) para que lhe seja imposta essa alteração. Só que nesse momento, e ao  contrário do que acontece agora, já ninguém estranhará nada porque entretanto se terá normalizado mais este absurdo. E não, menos importante, aqueles que se lhe opuserem serão apresentados como reaccionários, portadores de um discurso de ódio ou da maleita que na época servir para declarar os novos pestíferos.

O que faz o homem de saias no meio disto? Distrai. Distrai da agenda totalitária. Distrai daquilo que esses activistas estão dispostos a fazer para ser poder. Distrai da falta de preparação de boa parte deles.  Até nos distrai dessa espantosa circunstância de um deputado ter um assessor. Para quê, senhores? Para quê? Para mais um assessor que entre outras coisas tem um péssimo gosto para saias: acredite o senhor assessor que isto de escolher uma saia não é como enfiar o primeiro par de calças a que se deita a mão. Uma saia pode ser mini, midi ou maxi,  pregueada, com machos, traçada, folhos, lápis ou evasée. Para já sugiro que adopte o senhor assessor o visual de pauliteiro de Miranda, homens que há séculos usam umas belas saias, cujos  folhos valorizam os movimentos e pormenor não despiciendo são complementadas com umas meias e umas botas que o poupavam a si a esse look monástico de cabide andante. E a nós, perante a passagem de uma esquerda que aspirava a instaurar uma ditadura  enchendo a Assembleia de operários de capacete e fato de macaco para os presentes esquerdismos da deputada negra, da deputada gaga e do assessor de saias, só nos resta constatar que em política as espécies nem sempre evoluem.

PS. Dada a presente fixação no esclavagismo  praticado é de estranhar que o julgamento em França de Gabriel Mpozagara  e da sua mulher não tenham merecido pelo menos uma referência. Antigo ministro do Burundi, Gabriel Mpozagara, que até conta no seu curriculum com cargos na ONU, tem sido acusado de escravizar compatriotas seus que alicia para virem trabalhar em França. A complacência dos activistas europeus e norte-americanos com  a corrupção, nepotismo e crueldade de muitos políticos e dirigentes africanos vão do escandaloso ao criminoso.

Helena Matos

https://observador.pt/opiniao/tapando-a-bandeira-com-a-saia/

quinta-feira, 24 de outubro de 2019

As Ordens profissionais

A importância das ordens profissionais tem vindo a ser posta em causa na sociedade portuguesa devido a uma singular convergência de factores de onde sobressaem a ignorância de uns, o oportunismo de outros e a leviandade de muitos. Em época de liberalismo triunfante (ou de triunfalismo liberal) a existência de ordens profissionais não é bem vista pelos novos arautos do laissez-faire, laissez passer. Esses novos fisiocratas querem que sejam as leis do mercado a regular a actividade de profissionais em domínios tão importantes como as engenharias, a medicina, as farmácias, a advocacia, a arquitectura, entre outras, bem sabendo que tal acarretaria perigos enormes para a sociedade, já que as ditas leis do mercado não são mais do que as leis dos mais fortes, ou seja, a lei da selva. Façamos então uma espécie de croqui para esses epígonos.
Em qualquer sociedade há bens que são absolutamente essenciais à vida colectiva e, por isso, são bens de grande interesse público. Consoante a densidade ou relevância pública desse interesse, o Estado chama a si ou delega em terceiros a produção ou garantia de acesso a tais bens. Alguns deles são garantidos (ou deviam sê-lo) exclusivamente pelo Estado, tais como a defesa nacional, a segurança de pessoas e bens, a justiça, a construção de estradas, saneamento básico, etc.; noutros o Estado partilha com privados a prestação desses bens, como é o caso, nomeadamente, da educação e ensino, da saúde e dos transportes colectivos.

As actividades com interesse público podem, nuns casos, ser exercidas por funcionários públicos e noutros por pessoas a quem o estado exige determinadas aptidões académicas e/ou profissionais. As universidades fornecem um conjunto de saberes necessários mas não suficientes para o exercício de certas funções ou actividades. As pessoas não saem das universidades preparadas para exercer uma profissão. É necessário também uma formação adicional que garanta uma qualidade profissional compatível com o interesse público subjacente à respectiva actividade. E mais, é necessário que o acesso e o exercício efectivo da profissão sejam fiscalizados (regulados), justamente, para que os profissionais não fiquem em roda livre, ou seja, abandonados às leis do mercado. O mercado não tem ética e degrada o interesse público.
Umas vezes o Estado efectua essa regulação directamente, sobretudo, quando o profissional é funcionário público, mas noutras delega em associações públicas (ordens) a respectiva regulação profissional. Há casos até em que o Estado regula directamente o acesso a certas actividades exclusivamente privadas. O Estado não deixa ser taxista quem quer porque a massificação dessa profissão causaria graves danos ao interesse público subjacente a esse meio de transporte privado.
As ordens são, pois, organismos de regulação profissional criados pelo estado (através de leis da Assembleia da República) que exercem poderes públicos delegados pelo próprio Estado. Compete-lhes, nomeadamente, dizer quem está em condições de aceder a certas profissões, bem como punir ou afastar os maus profissionais, pois entende-se - e bem - que ninguém melhor do que os bons profissionais está interessado na dignidade da profissão e na defesa do seu interesse público.
A importância das ordens reside, precisamente, aí. Se não existissem ordens profissionais o mercado acabaria por fazer a sua regulação segundo as suas próprias leis e acabaria por premiar os bons profissionais e castigar os maus. Mas fá-lo-ia sempre tarde e a más horas. Com efeito, o mercado acabaria por afastar os maus engenheiros civis, mas só depois de algumas pontes ruírem ou de alguns prédios desabarem. Também afastaria os maus médicos, mas só depois de eles matarem algumas pessoas. Acabaria igualmente por afastar os maus farmacêuticos, mas depois de eles envenenarem outras. Os maus advogados também seriam afastados, mas antes causariam danos vultuosos à justiça, ao património e aos direitos de muitos cidadãos.
As ordens profissionais são, assim, um instrumento de defesa dos cidadãos e da sociedade em geral. Ponto é que elas cumpram os respectivos estatutos e não se deixem imbuir pelo espírito do sindicalismo.

Marinho e Pinto 05 de Setembro de 2011

https://www.jn.pt/opiniao/antonio-marinho-pinto/as-ordens-profissionais-1975628.html