segunda-feira, 28 de outubro de 2019

As famílias na Brisa

O PCP e o BE ficaram sem “famílias ricas” para alvejar nos seus discursos — o capitalismo de família mudou radicalmente.

ompare a lista dos mais ricos de 2019 com a de há meia dúzia de anos. Não descubra as diferenças, procure as semelhanças — são poucas. Vendas a estrangeiros, colapsos e mortes mudaram tudo. Agora é o Grupo José de Mello a anunciar a venda da sua joia da coroa, a Brisa. Mais um fim neste destino de declínios? Não: é exatamente o contrário.

Um saudosista ficará entristecido, um revanchista ficará radiante, mas aqui não se propõem estados de alma nem de calma. Os “impérios familiares” não são todos iguais, dividem-se entre os que criam e os que se apropriam, os que inovam e os que se conservam, entre os que investem e concorrem e os que são investidos pelo poder e correm com outros, entre os que redistribuem e tratam os trabalhadores com dignidade e aqueles que lhes pagam a miséria mínima. Nestas diferenças estão também destinos diferentes, quase todos ditados por falta de capital e excesso de dívida.

Champalimaud não deixou um grupo, trocou tudo por dinheiro antes de morrer e deixou de legado a surpresa de uma fundação. Os Espíritos Santos colapsaram em dívidas e em vergonha. Os bancos privados são hoje todos estrangeiros. Nos últimos dois anos morreram quatro grande empresários de impérios familiares: Américo Amorim, Belmiro de Azevedo, Pedro Queiroz Pereira e Alexandre Soares dos Santos. As sucessões geracionais despersonalizaram a gestão profissionalizando-a, mas os filhos mantêm-se e lidam com clássicas diferenças e desavenças entre irmãos — e com a tentação permanente de vender. Paula Amorim administra a Galp com profissionais, Cláudia Azevedo tomou o lugar do irmão Paulo na Sonae, as filhas de Queiroz Pereira têm todos os dias bancos a propor a venda da Semapa/Portucel, os filhos Soares dos Santos mostrarão agora se cumprem os cuidados do pai na sucessão.

Estas sucessões e desmanchos representam uma mudança histórica nos grupos familiares, agora mais assente no profissionalismo de equipas do que no carisma do seu líder. Com mais negócios internacionais. E menos ligados a telefones vermelhos para determinados bancos, porque do outro lado já não estão portugueses com quem jogam golfe ao fim de semana.

A notícia desta sexta do “Jornal de Negócios” de que o Grupo José de Mello vai vender a Brisa, a sua “vaca leiteira” de dividendos, sugere o mesmo tipo de ocaso de uma família histórica. Só que não.

Claro que as autoestradas vão passar a ser (mais) um negócio estrangeiro, mas a velha conversa dos centros de decisão nacional não interessa como nunca interessou. Só é importante sabermos que grupos estrangeiros desinvestem mais depressa de “filiais” quando as coisas correm mal; e que os lucros aqui gerados saem do país.

Mas agora veja o negócio que a José de Mello vai fazer: é uma pipa de massa, feita por quem há meia dúzia de anos estava com a corda dos bancos na garganta e esteve em risco de perder quase tudo. A dívida é ainda alta, a venda acontece após muito pressão de um parceiro estrangeiro (a Arcus), mas veja o antes e o depois.

A família tinha 30% da Brisa antes de uma OPA lançada há sete anos, que já praticamente pagou só em dividendos; depois do negócio agora anunciado, ficará com 20%. Pelo caminho, vai receber por centenas de milhões de euros. Os jornais avaliavam ontem toda a operação em 2,2 mil milhões de euros. Esqueça, há tanto interesse neste sector por investidores financeiros e fundos de pensões que ainda ouviremos falar de mais de três ou mesmo 3,5 mil milhões de euros. A pergunta não é pois se isto é o fim dos Mellos, mas que reinício pode ser.

Sob a gestão de Vasco de Mello, o grupo mostrou duas características: não é agarrado a nenhum sector e sabe vender. Não é um grupo de tradição, mas de transição — e transação. Há 20 anos, controlava a Lisnave e a Soponata, os braços da Quimigal, a seguradora Império e o Banco Mello. Saiu da indústria naval, do sector financeiro e quase do sector químico, tornando-se forte nas infraestruturas e na saúde. Entretanto, vendeu sempre ou caro ou antes de ter de embaratecer, como se viu quando fez a fusão do Banco Mello com o BCP, quando depois saiu do BCP, quando depois saiu da EDP ou quando vendeu negócios no Brasil. Fez sempre grandes negócios. É o que fará agora na Brisa.

Não tenha pois saudosismo nem revanchismo pela venda da Brisa, pergunte antes o que o Grupo Mello vai fazer ao dinheiro, se vai plantar batatas, bananeiras ou novas árvores de negócio. Sorte do PCP e do BE, que não terão apenas fantasmas nos seus discursos que sempre listam “os Espíritos Santos, os Champalimauds, os Queiroz Pereiras e os Mellos”. Se não quer falar só dos Mellos, o melhor é passar a usar nomes estrangeiros.

Pedro Santos Guerreiro

https://leitor.expresso.pt/semanario/semanario2452/html/primeiro-caderno/opiniao/as-familias-na-brisa

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