Os Estados Unidos encontram-se, de facto, mergulhados numa profunda crise. Sabemos que a coisa está mesmo feia quando cabe a um indivíduo com o currículo de Donald Trump ser a reserva moral da nação.
O título original da película de 1963 protagonizada pelo estiloso James Bond era, na verdade, From Russia with Love e não From China with Love. Mas se o nome original em inglês não é o mais apropriado para este caso, já a versão portuguesa é arrepiantemente sugestiva: Ordem para Matar. Pois é, além de toda a sorte de bugigangas a tuta-e-meia, por estes dias o que vem mais da China são sinais claros do tipo de afecto com que o estado chinês pretende acarinhar o resto do mundo. De início parece um abraço mesmo muito fraterno; depois o aperto começa a ficar ligeiramente desconfortável; quando dermos por isso, estamos a acordar de um mata-leão já como funcionários da linha de montagem de uma fábrica da Huawei em Pegões, com uma carga horária de 170 horas semanais e direito a um feriado por ano, a 22 de Dezembro, para festejar o dia em que, nos saudosos idos de 2011, o estado português ofereceu ao seu congénere chinês a EDP.
Vem esta muito gira distopia a propósito da polémica em curso na liga norte-americana de basquetebol, a NBA, depois de um dirigente dos Houston Rockets ter tido o desplante de enviar — imaginem só — um tweet pró-democracia de apoio à luta pela liberdade em Hong Kong. “Fight For Freedom, Stand With Hong Kong” foi o dislate tweetado e prontamente apagado. Ainda assim tarde de mais, pois a ira do governo chinês e das empresas chinesas (passe a redundância) já se tinha feito sentir, sob a forma de corte imediato de vários patrocínios à NBA.
Perante isto, como reagiram jogadores, treinadores e dirigentes da NBA? Dou-vos três hipóteses. Hipótese A: disseram “Levem daqui o vosso dinheiro sujo, comunas d’um raio! Não precisamos de vocês para nada, pá!” Hipótese B: mandaram o governo chinês dar uma volta, enquanto afirmavam orgulhosamente que a América é a terra da liberdade. Hipótese C: reagiram de forma tão mariquinhas que mais pareciam umas autênticas meninas. E a reposta certa é: nenhuma das hipóteses acima. As duas primeiras não podiam ser, porque a NBA jamais correria o risco de ferir a susceptibilidade de um governo totalitário que lhe põe bom dinheirinho nos bolsos. A terceira podia perfeitamente ser, mas a NBA jamais o admitira para não correr o risco de ferir as susceptibilidades da turba do politicamente correcto.
A reacção da NBA chegou pela voz de, entre outros, um dos seus jogadores mais famosos, LeBron James. LeBron garantiu não só que o dirigente dos Houston Rockets está mal informado sobre este tema, como também que muitas coisas negativas podem advir da liberdade de expressão. Confirma-se, portanto, não ser à toa que se costuma dizer “Na América, tudo é possível”. Pelos vistos, até é possível latagões com mais de dois metros de altura terem, afinal, o porte moral de um vulgar roedor doméstico. Aliás, em honra deste fã indefectível, a República Popular da China já alterou o seu calendário e tudo. A 25 de Janeiro de 2020, em vez de se celebrar o início do Ano do Rato, comemorar-se-á a entrada no Ano do LeBron James.
A propósito desta controvérsia, Donald Trump veio acusar — e bem — vários elementos da NBA de se terem acobardado e de serem coniventes com a China relativamente a Hong Kong. E assim se percebe que os Estados Unidos se encontram, de facto, mergulhados numa profunda crise. Sabemos que a coisa está mesmo feia quando cabe a um indivíduo com o currículo de Donald Trump ser a reserva moral da nação.
Tiago Dores – Observador
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