quarta-feira, 28 de abril de 2021

Hidrogénio ‘Verde’: uma aposta ruinosa para Portugal

A pergunta sem resposta: O que é que ‘eles’ ganham com isto?

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Por: Henrique Sousa

Faz-se aqui uma análise simplificada do projecto de produção de hidrogénio verde que envolve diversas empresas do ramo de energia e não só. E como também envolve verbas do Estado, tem de ser mais escrutinado do que está a ser, tanto mais que estão a ser desviadas verbas destinadas a mitigar os efeitos da pandemia na população. O dinheiro da bazuca da União Europeia utilizado com critérios rigorosos e não em apostas sem garantias.

Concluímos que, tal como as centrais eólicas e solares, o hidrogénio verde vai encarecer ainda mais as nossas energias, tanto a eléctrica como a do gás natural.

A análise

É frequente confundir-se, nos meios de comunicação social, kW com kWh, ou seja potência com energia. A maioria das pessoas, não instruídas no domínio da ciência, desconhece a diferença. Mas é simples: a potência é a energia produzida ou consumida numa unidade de tempo. Por exemplo, um gerador com a potência de 1 kW pode produzir 2 kWh em 2 horas de funcionamento, 10 kWh em 10 horas e assim por diante. Se o gerador estiver parado produz zero kWh e, se funcionar abaixo da sua capacidade, irá produzir em 1 hora menos de 1 kWh. Pelo que não se pode confundir potência, que indica a capacidade de produzir (ou consumir), com o produto que é a energia. A energia, pode aparecer com diversas formas: luminosa, eléctrica, térmica, química, mecânica; e umas podem transformar-se noutras. São porém transformações com perdas (geralmente calor), algumas muito significativas. Num carro a combustível fóssil, por exemplo, apenas cerca de 20% da energia química do combustível é transformada em trabalho mecânico útil. Dizemos, então, que a transformação energética tem um rendimento de 20%.

Uma botija de gás de 13 kg equivale a 170 kWh de energia para fins de queima ou aquecimento. A botija de gás custa cerca de 24 € e o equivalente em electricidade custa também, em média, 24 € (0,14€/kWh). Mas a equivalência não é directa porque na queima do gás uma parte do seu conteúdo calorífico escapa-se pela chaminé pelo que sai mais barato usar electricidade em vez de gás de botija: há menos perdas, o rendimento é maior. E mais barato pode ficar se a pessoa souber tirar partido das tarifas bi ou tri-horárias da eletricidade.

A opção por gás natural pode ser ainda melhor que a eletricidade para queima ou aquecimento porque ele é bastante barato ainda. Pode custar apenas 6 cêntimos/kWh o que compensa, apesar das maiores perdas.

Se o preço do gás natural subir para valores próximos dos da eletricidade, compensa mudar tudo para eletricidade, substituir os queimadores de gás por dispositivos elétricos e deixar de consumir gás, com todas as vantagens que a eletricidade representa em comodidade e segurança.

Desta introdução podemos reter que a comparação entre diferentes energias se deve fazer pelo preço do kWh. Ou do MWh (1000 vezes mais), tratando-se de grandes quantidades.

O consumidor está, pois, a pagar a energia elétrica a 140 €/MWh, em média. Este valor resulta, como se sabe, das diversas proveniências da energia elétrica (hídrica, eólica, solar e gás natural), sendo que ela podia ser muito mais barata se se excluíssem as FIT (feed-in tariffs). Ou seja, os valores exagerados que, em Portugal, se pagam pelas energias intermitentes do vento e solar, da ordem de 100 a 200 euros por MWh, com contratos “blindados” até 2032, e prioridade de entrada na rede elétrica.

É, então, neste contexto energético que surge agora mais um combustível do futuro: o hidrogénio verde. Chama-se verde porque a sua produção faz-se por electrólise da água e não contribui para a emissão de dióxido de carbono para a atmosfera.

A produção de hidrogénio verde em horas de vazio (eletricidade mais barata) pode servir para:

  1. Uso direto como matéria-prima em indústrias várias, incluindo a petrolífera.
  2. Ser convertido de novo em eletricidade para a rede nas horas de maior consumo.
  3. Liquefeito para exportação.
  4. Convertido em metano por reação com CO2 e adicionado à rede de gás natural.
  5. Adicionado simplesmente à rede de gás natural com aumento do seu poder calorífico.
  6. Ser utilizado como combustível (liquefeito) em veículos elétricos movidos a pilhas de combustível (fuel cells) que convertem o hidrogénio e oxigénio (do ar) em energia elétrica e cujo resíduo é água apenas.

Aqui chegados, a produção de hidrogénio poderia parecer algo que faz sentido por permitir armazenar energia elétrica excedentária e ser usado de várias formas. Porém, a pergunta pertinente que se deve fazer é: qual será o preço do MWh do hidrogénio verde?

Ora, isso depende de vários fatores que compõem o preço desse hidrogénio e da forma como for reutilizado. Esse preço tem duas componentes, os fixos que dependem dos investimentos e os variáveis no caso da energia utilizada na produção ser paga por unidade consumida.

Matéria-prima

Como matéria-prima na indústria, e desde que possa ser produzido de forma competitiva por eletrólise, nada haverá a opor. É uma questão de preço apenas e as contas são simples de fazer. Se ainda não existe é por não se conseguir oferecer preços que compitam com os dos reformadores a gás.

Reconversão em eletricidade

Para reconversão em eletricidade industrial, e não considerando para já os altos custos de investimento, se a energia elétrica primária usada para produzir hidrogénio valer apenas 40 €/MWh (raramente está abaixo de 50€/MWh) e a transformação tiver um rendimento de 80% da eletrólise e 60% da reconversão de hidrogénio em eletricidade por pilhas de combustível, o MWh reconvertido passa a custar 83 €, sem considerar eventuais interesses.

Vamos agora ao investimento.

Uma instalação de eletrólise e reconversão de hidrogénio em eletricidade custa atualmente mais de 1 milhão de €/MW (valor que se pretende reduzir economia de escala) que equivale a 4000 MWh por ano em regime de utilização de 4000 horas por ano (horas de vazio). Considerando uma vida útil superior a 10 anos para o investimento e uma amortização em 10 anos (sem juros), isto conduz a um acréscimo de 25 € ao MWh que sobe assim para 108 €. Por último, se considerarmos, por hipótese, um lucro de 30% e o MWh do hidrogénio verde sobe para 140 €, antes de impostos.

Nesta breve análise não foram considerados os custos de operação da instalação que fariam aumentar ainda mais o preço do MWh da eletricidade produzida através do hidrogénio verde. Também ignorámos a possibilidade/necessidade de liquefação do hidrogénio para armazenamento. O hidrogénio só se liquefaz a temperaturas próximas de zero absoluto e consome cerca de um terço da sua energia específica.

Estamos a falar, portanto, de valores de 200 € ou mais por MWh para a eletricidade do hidrogénio verde produzido nas horas de vazio a 40 €/MWh.

Imagine-se agora se a eletricidade usada para produzir hidrogénio verde for proveniente de centrais eólicas e solares construídas para o efeito. Se essa eletricidade pode ser vendida à rede por valores entre 100 e 200 €/MWh, que sentido faz armazená-la sob a forma de hidrogénio para depois a vender a preços ainda mais altos?

A diferença de preço do MWh elétrico entre as horas de ponta e vazio, justifica armazenar a eletricidade nas horas de vazio para disponibilizá-la nas horas de ponta, como se faz nas centrais hídricas de bombagem – mas desde que seja economicamente viável.

Hoje em dia, porém, os estudos económicos e financeiros de viabilidade são negligenciados. Se não interessarem à política climática, alteram-se os parâmetros, penaliza-se as energias que não interessam e bonifica-se as que interessam. Tudo à custa do consumidor que vai ter de pagar a energia ao preço que for determinado pela política de transição energética e climática.

Liquefação para exportação

No caso de liquefação para exportação devemos considerar o rendimento de 80% da eletrólise e no máximo 70% da liquefação para chegarmos ao preço de 71 €/MWh a que se somam custos de investimento da ordem de 25 € mais lucros, mais operação, transportes, etc. e lucros. Chega-se facilmente a valores da ordem de 150 €/MWh. Depois, há o problema da distribuição no destino. Os países que importam o hidrogénio têm de criar uma rede de distribuição. E as empresas que instalam e disponibilizam estas redes também arcam com custos de investimento e querem lucrar. E terá que ser competitivo com outras alternativas. Por isso, é natural que o preço ao consumidor ultrapasse os 200 €/MWh também.

Aqui também a política falará mais alto: se houver intenção de forçar a utilização de hidrogénio verde dão-se incentivos e subsídios e ele será imposto aos consumidores. Uma vez conquistados os consumidores com preços políticos simbólicos, eles irão pagar mais tarde ao preço real. Um pouco como aconteceu com os veículos elétricos em que nos primeiros postos de abastecimento se carregava a custo zero para depois se vir pagar a um preço superior ao da eletricidade doméstica.

Conversão em metano e adição à rede de gás natural

Na opção da conversão em metano o preço de entrega do metano, ou do hidrogénio, à rede de gás teria de ser competitivo com o do gás natural, mas não é. A mistura do gás natural com o metano ou com hidrogénio ficaria mais cara ao consumidor mas, como também beneficiaria das FIT e seria pago a mais de 150 €/MWH e, dependendo da quantidade injetada, o preço do gás natural ao consumidor teria de aumentar da mesma forma que o preço da eletricidade subiu em Portugal para fazer face às FIT elétricas das eólicas e solares. Dos atuais 50 €/MWh poderia passar-se para 100 €/MWh, o que faria muita gente optar, com vantagem, pela eletricidade a 140 €/MWhm.

Combustível para veículos elétricos

Por último, vejamos como seria se o hidrogénio verde servisse apenas como combustível para veículos elétricos alimentados por pilhas de combustível, tecnologia bastante imatura ainda.

Partindo dos mesmos 40 €/MWh da eletricidade das horas de vazio, após eletrólise e liquefação, subiria para os mesmos 100 €/MWh, mais distribuição e comercialização e impostos. Não estaremos muito longe do preço final, se dissermos que o hidrogénio chegará ao consumidor por mais de 150 €/MWh, ou seja, 15 cêntimos por kWh.

Em veículos elétricos equipados com pilhas de combustível com rendimento de 50% (um bom valor), com um consumo típico de 15kWh por 100 km, haveria um gasto de 4,5 euros aos 100 km.

Um veículo com baterias de lítio (maior rendimento) poderia gastar cerca de metade deste valor. Na competição hidrogénio/baterias, o hidrogénio sai a perder.

Mas aqui também não considerámos os investimentos e a duração das células de combustível. Um carro elétrico ainda custa mais do dobro de um carro a gasolina ou diesel. Um carro com pilha de combustível não é ainda comum e de certo vai custar mais que um elétrico a baterias, sendo a duração das pilhas de combustível uma incógnita.

Mas esta é, na nossa análise simples (que careceria de cálculos mais detalhados) a única aplicação que pode fazer mais sentido para o hidrogénio verde – desde que obtido a partir de eletricidade barata, das horas de vazio em que ela pode custar 40 €/MWh. Mas nunca abastecida por centrais eólicas ou solares dedicadas à eletrólise porque a eletricidade que produzem pode ser vendida diretamente à rede por 100 a 200€/MWh.

De facto, o preço considerado de 40 €/MWh é um preço de mercado e não significa que a produção de eletricidade verde (eólica e solar) não esteja a ser paga a 100 ou 200 €. A diferença é paga pelo consumidor.

Conclusão

O hidrogénio verde é ainda uma miragem. Para ser viável era preciso que o custo do investimento fosse consideravelmente mais baixo (a bombagem de água custa 10 vezes menos) e o custo da eletricidade verde fosse tão baixo quanto possível. O hidrogénio verde, mesmo numa perspetiva de futuro longínquo, é uma aposta de casino. Como explicámos, o resultado não convém nem ao País, nem aos consumidores. Contudo, os cidadãos são amedrontados com o catastrofismo do aquecimento global e da ameaça do CO2 para deixar passar estes negócios da plutocracia reinante e bem falante.

O resultado certo será passarmos a ter a energia – toda ela! – mais cara. A política energética desastrosa de José Sócrates com as renováveis, é agora repetida por António Costa com esta nova história rosa do hidrogénio verde.

Henrique Sousa
Editor de Energia e Ambiente do Inconveniente

terça-feira, 27 de abril de 2021

A escola que governa a Grã-Bretanha.

Um novo livro de memórias relembra a vida no Eton College - a escola para os mais poderosos e privilegiados do país. John Self analisa como ele conquistou a imaginação dos escritores por décadas.

Alunos Eton

A poucos quilómetros de Heathrow, o aeroporto mais movimentado da Europa, fica a escola mais famosa da Grã-Bretanha. O Eton College, um colégio interno para meninos na cidade de Windsor, no extremo oeste de Londres, tem capturado a imaginação britânica em filmes, livros e TV por décadas. Por que deveria ser assim?

Será porque Eton é o cadinho para gerações de líderes políticos, com 20 dos 55 primeiros-ministros britânicos educados lá, incluindo o primeiro, Robert Walpole, e o último, Boris Johnson? Só isso já lhe dá um nível de fama que se Auto perpetua. Ou é a longa história da escola (ela foi fundada há quase 600 anos), o preço de uma educação lá (£ 42.500 ou $ 58.000 por ano), suas tradições ou mesmo seu uniforme, para o qual cartolas eram usadas ainda na década de 1960 e casacos de cauda ainda são?

Gerações de líderes britânicos - incluindo o atual primeiro-ministro Boris Johnson - frequentaram a prestigiosa escola (Crédito: Getty)
Gerações de líderes britânicos - incluindo o actual primeiro-ministro Boris Johnson - frequentaram a prestigiosa escola (Crédito: Getty)

Esses elementos encorajam a mitificação e um senso da escola como um mundo à parte, uma fantasia fictícia de educação superior transmitida por gerações de famílias cuja riqueza, como o velho escritor Etoniano James Wood disse , "se estendia até agora, a origem de sua prosperidade era invisível." A realidade corresponde às histórias contadas - e aos livros escritos - sobre a escola que governa a Grã-Bretanha?

Bem, nem todo mundo que compareceu a Eton se encaixa nos moldes. Este mês, vemos a publicação de One o Them: Na Eton College Memoir, do escritor, podcaster e músico Musa Okwonga. Quando ele estudou na Eton de 1993 a 1998, Okwonga era um dos poucos meninos negros da escola. O livro é sua contribuição para uma "exploração de raça e classe" na Grã-Bretanha, com o fundamento de que "para entender para onde estamos indo como sociedade, precisamos entender como chegamos aqui".

Um fato notável em One o Them é que Okwonga não foi enviado a Eton por uma família faminta para ajudá-lo: em vez disso, ele pediu à mãe que o enviasse depois de assisti-lo em um documentário de TV e de visitá-lo em uma viagem escolar. "Eu estava ciente", disse ele à BBC Culture, "do que a educação leva para você, aonde quer que você vá, mesmo que você saia de um país." Sua família era formada por refugiados de classe média de Uganda e "pensei, esse é o tipo de educação que leva a qualquer lugar". Além disso: ele compartilha seu aniversário (11 de outubro) com a data de fundação da escola. "Era para ser!" ele diz.

Okwonga trouxe consigo um nível Etoniano de ambição: suas memórias mostram como ele levou a sério sua educação custosa, calculando que estava custando a sua mãe £ 20 ($ 27,50) por dia para ele estar lá. “Basicamente, dirigi ou entrei para todas as sociedades que pude”, diz ele. "E meu dia foi cheio de tópicos, uma lista de coisas que tive de fazer naquele dia para merecê-lo." Uma característica surpreendente dessa ética de trabalho foi que ele só voltou para casa duas vezes em seus cinco anos em Eton, apesar de morar "mais perto de casa do que qualquer outra pessoa na escola".

A autobiografia de Eton de Musa Okwonga, One of Them, relembra sua época como um dos poucos alunos negros da escola na década de 1990 (Crédito: Michel Rosenberg)
A autobiografia de Eton de Musa Okwonga, One of Them, relembra sua época como um dos poucos alunos negros da escola na década de 1990 (Crédito: Michel Rosenberg)

A determinação que Okwonga demonstrou é uma qualidade que vemos nos meninos mais velhos que escalaram o pólo gorduroso da política: "Ninguém aqui nos diz em voz alta que os Etonianos são líderes naturais", escreve ele. "É para isso que serve a arquitetura." Nós associamos Eton com riqueza, então são os ex-alunos ricos e famosos que chamam nossa atenção. Mas as histórias que acrescentam sabor aos fatos são freqüentemente de ficção; embora, dado o ceticismo do mundo literário em relação ao sucesso material (o fracasso é mais interessante), o retrato que um romancista faz dos meninos de Eton pode ser pouco lisonjeiro - ou pior.


'Vilões e tolos'

Considere aquele amável idiota Bertie Wooster, cujo status como um velho Etoniano é clássico PG Wodehouse : afetuoso em vez de cortante. Bertie freqüentou Eton com seus colegas almofadinhas Marmaduke "Chuffy" Chuffnell e G D'Arcy Cheesewright, embora mesmo no mundo de Wodehouse a escola tivesse seus padrões. Questionado em Right Ho, Jeeves se ele estava na escola com Tuppy Glossop, habitante ineficaz do Drones Club, Bertie respondeu: "Meu Deus, não. Não teríamos um sujeito assim em Eton."

Um menino mais diretamente vilão é o arquiinimigo de Peter Pan, Capitão Hook (que, aliás, foi de Eton para o Balliol College, em Oxford, um caminho seguido por Boris Johnson). Sua educação é revelada no final da peça de JM Barrie, quando Hook pula em direção à morte por crocodilo, murmurando " Floreat Etona " ("May Eton floresce"), o lema da escola. Hook era, de acordo com um reitor da escola em 1927, "um grande Etoniano, mas não um bom", e em um discurso proferido em Eton naquele ano, Barrie observou ironicamente que "talvez tenha sido apenas porque em Oxford ele caiu entre os maus companheiros - Harrovianos. "

O Capitão Gancho murmura o lema da escola "Floreat Etona" enquanto pula para a morte (Crédito: Getty)
O Capitão Gancho murmura o lema da escola "Floreat Etona" enquanto pula para a morte (Crédito: Getty)

De volta à vida real de Eton, vilões e tolos nas memórias de Okwonga são raros: Um deles é um retrato matizado de seus anos de escola e, embora "não houvesse mais do que cerca de quatro meninos negros em 1.216 alunos, o tempo todo eu estava lá ", Okwonga experimentou" não muito "racismo aberto. Em um nível, isso parece um avanço em relação a 30 anos antes, quando o autor nigeriano Dillibe Onyeama sofreu insultos racistas como o primeiro aluno negro a concluir os estudos na escola, que ele relatou em suas memórias de 1972. (Escrever sobre esses ataques Onyeama proibiu de retornar a Eton até recentemente.)

O racismo que Okwonga experimentou foi secundário, mas não menos traiçoeiro por isso. Um menino "brincou" sobre seu bisavô, um motorista de escravos, que possuía africanos; outro disse a ele, mais tarde, "você não tem ideia do que se dizia nas suas costas sobre os negros". "Isso foi devastador", diz ele agora, porque "eu era apenas uma exceção à regra para muitas pessoas lá." Piores foram os amigos que o decepcionaram: um "deixou de lado" suas preocupações sobre se sentir exposto e visível em Eton; o pai desse amigo achava que Okwonga era "um trunfo, como um espião, colocado ali pelo governo de Uganda. Era tão bizarro para ele que um menino negro de classe média pudesse ir para Eton".

Depois do livro de Onyeama e antes de Okwonga, a biografia mais proeminente de Eton foi Stand Before Your God (1993), do romancista Paul Watkins, autor de 18 livros, incluindo a série do Inspetor Pekkala escrita sob o nome de Sam Eastland. Suas memórias são um relato engraçado e dramático das experiências de um jovem americano tentando enfrentar uma nova vida em um novo país, depois de ser deixado por seus pais em um colégio interno quando "Juro, pensei que estava indo para uma festa." O fato de o livro ainda estar sendo publicado quase 30 anos após a publicação mostra o apetite contínuo por histórias sobre Eton.

Watkins, cuja cor de pele combinava, mas ainda achava que outros "me colocaram em um arquivo que dizia estrangeiro", havia se inscrito na escola aos seis meses. Ele escreve que "você precisava ter frieza" para evitar ser magoado. Okwonga concorda: em One of Them ele chama de "a máscara". Isso, diz ele à Cultura da BBC, significa que "a realidade de estar em um colégio interno é que você não pode se dar ao luxo de discutir com as pessoas com quem precisa morar por cinco anos." . Você aprende muito rapidamente a não expressar o que está sentindo, e esse atributo permanece com você. "


A national totem

A "máscara" de Okwonga - a "frieza" de Watkins - é uma coisa com a qual muitos antigos Etonianos podem concordar. O ator Damian Lewis disse em 2016: "Você passa por algo que, nessa idade, define você e sua capacidade de lidar com a situação. Há uma repentina falta de intimidade com um dos pais e sua capacidade de superar isso o define emocionalmente pelo resto do sua vida." Sua crença de que Eton permite aos alunos "compartimentar sua vida emocional com tanto sucesso que podem ir direto ao topo" pode explicar essa proporção extraordinária de nossos líderes políticos que lá foram.

Mas, como outros totens de discussão nacional, Eton se encaixa em tudo o que seus preconceitos desejam: uma fantasia de grandeza ou a coceira de ressentimento contra privilégios imerecidos. O que isso realmente nos diz sobre a Grã-Bretanha? "O problema", disse Paul Watkins à BBC Culture, "é que quando você vai para Eton, tudo o que você faz se torna um comentário social. É difícil resumir um lugar como Eton sem ofender alguém. Isso por si só fala do poder que tem sobre nós . " Acima de tudo, para ele, representa "o fascínio da Inglaterra por si mesma".

Para Musa Okwonga, o que Eton nos diz sobre a Grã-Bretanha é "a falta de escrutínio que você obtém se você é um certo tipo de pessoa". Ele se refere aos bustos de antigos primeiros-ministros Etonianos em uma sala da escola e ao risco de "reverenciar o poder sem contexto". Também fala sobre o que ele chama de "efeito funil", em que pessoas que são "interpessoais muito boas, muito amigáveis ​​... podem, no entanto, entrar em um funil específico onde há falta de empatia por pessoas que não tiveram a sua experiência vivida." Isso soa como outro aspecto da distância emocional mencionada acima.

E se a frieza implacável é um parâmetro, que melhor representante fictício Eton poderia ter do que o maior espião do século 20, James Bond? Nosso conhecimento do tempo de Bond na escola é limitado, mas o romance de Ian Fleming You Only Live Twice inclui um obituário escrito pelo espião mestre M quando Bond é dado como morto: "Devemos admitir que sua carreira em Eton foi breve e indistinta e, depois de apenas duas metades [termos], em decorrência [...] de algum suposto problema com uma das empregadas dos meninos, sua tia foi solicitada a retirá-lo ”.

O romancista Ian Fleming deu a James Bond um período "breve e indistinto" na faculdade (Crédito: Getty)
O romancista Ian Fleming deu a James Bond um feitiço "breve e indistinto" na faculdade (Crédito: Getty)

O tempo do criador de Bond em Eton foi mais longo, mas não mais distinto. Ian Fleming seguiu o caminho tradicional para a escola - ele era filho de um velho major do Exército Etoniano - mas não teve um desempenho acadêmico e foi removido da escola por sua mãe antes que pudesse ser reprovado em sua graduação. Ele pelo menos começou sua carreira de escritor em Eton, publicando sua primeira história na revista escolar The Wyvern. Fleming também deu o nome de Blofeld ao vilão de Bond em homenagem a um antigo colega de classe, mas seus sentimentos por Eton são melhor resumidos no Vaso Troféu James Bond All Purpose Grand Challenge que ele apresentou à Old Etonian Golfing Society - que na verdade era um penico.

Fleming não é o único escritor a ter uma relação complicada com a escola. George Orwell, que frequentou uma bolsa de estudos e cuja gravata da velha escola não combinava muito com um homem do povo, mais tarde desdenhou Eton, dizendo que embora ele fosse "relativamente feliz" na escola, ele "não trabalhou lá e aprendeu muito pouco". Em seu ensaio de 1941 O Leão e o Unicórnio, ele escreveu que "provavelmente a Batalha de Waterloo foi ganha nos campos de jogo de Eton, mas as batalhas iniciais de todas as guerras subsequentes foram perdidas lá. Um dos fatos dominantes na vida inglesa durante os últimos três quartos de século foram a decadência da capacidade da classe dominante. " A escola, decidida, mantém o Prêmio Orwell em seu nome, oferecendo vagas totalmente financiadas "para meninos talentosos cujas oportunidades de vida têm sido limitadas".


'Um lugar de extremos'

Mesmo para escritores que não frequentaram a Eton, isso serviu de inspiração. John le Carré lecionou lá por um ano e o descreveu como "um lugar de extremos" onde "a classe alta inglesa pode ser vista no seu melhor e no pior. Os bons alunos costumam ser brilhantes [...] e levam você aos limites do seu conhecimento. Os piores alunos ", acrescentou ele," fornecem uma visão única da mente do criminoso. " Essas eram "riquezas" para um romancista, e le Carré usou Eton como inspiração para a escola fictícia Carne em seu romance A Murder of Quality.

Ou veja o caso de Evelyn Waugh, a invejosa cronista externa da classe alta, que provavelmente gostaria de ter ido para Eton em vez de para o humilde Lancing College. E em um ato típico de um para cima, ele enviou seu personagem Sebastian Flyte lá em seu romance mais nostálgico Brideshead Revisited. “Graças a Deus fui para Eton”, suspira Sebastian durante uma obscura discussão filosófica entre família e amigos. Sebastian, significativamente, começa o livro como o epítome do glamour, mas sofre um declínio à medida que a história avança. (Os sentimentos confusos de Waugh sobre Eton também podem ter sido influenciados pelo fato de que sua primeira esposa, também chamada Evelyn, teve um caso com um velho Etoniano.)

Em seu romance Brideshead Revisited, Evelyn Waugh enviou o personagem Sebastian Flyte para Eton (Crédito: Alamy)

Em seu romance Brideshead Revisited, Evelyn Waugh enviou o personagem Sebastian Flyte para Eton (Crédito: Alamy)

Como sugere esse desfile de escritores, Eton tem sido uma estufa para o desenvolvimento literário. Como Fleming e Orwell, Paul Watkins começou a escrever em Eton e escreve em Stand Before Your God que amarrou um lápis na cabeceira da cama para poder rabiscar ideias na parede ao acordar à noite. Ele escreveu os dois primeiros rascunhos de seu romance de estreia Night Over Day Over Night at Eton, quando tinha 16 anos: "A biblioteca de Eton tem o rascunho original, que escrevi à mão", diz ele.

O que Eton ensinou a ele? "A nobreza na busca de um objetivo", diz ele à BBC Culture, "não apenas o objetivo em si. Quando eu saí para o mundo, ninguém se importava que eu estivesse escrevendo livros até que esses livros fossem publicados." A lição mais valiosa que Eton lhe ensinou "foi ter a coragem de buscar o que eu sentia que fui criado para fazer, e não apenas o que os outros queriam que eu fizesse".

Para Okwonga, foi uma sensação de atender às expectativas da sociedade - mas também às suas - a partir de uma educação tão privilegiada. "Eu sabia que era uma oportunidade que poucos negros têm. E acho que carreguei isso durante toda a minha carreira, esse sentimento de, 'Tenho que conquistar algo, tenho que fazer meu tempo valer a pena.'"

"E, na verdade", continua ele, "alguém me escreveu, uma amiga que mora nos Estados Unidos. Ela disse: 'Você não desperdiçou seu talento'. O que é uma coisa muito poderosa de ser contada, porque você vai a um lugar assim, que é um grande privilégio, e você sente isso intensamente, toda semana você está lá. Você sai pelo mundo, dizendo: 'Eu tenho que fazer alguma coisa com isso'. "

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É difícil desfiliar a IL do desfile

Digamos que é o equivalente ao obstetra insistir em organizar a festa de aniversário do bebé que fez nascer. E a exigir ser ele a apagar as velas.

De 2012 a 2015, a Associação 25 de Abril recusou-se a ir à Assembleia da República nas celebrações do Dia da Liberdade, por discordar da política de Passos Coelho. Foi uma manifestação da solidez da Democracia. É bom indício quando há Capitães de Abril descontentes com o Governo e a única atitude que tomam é a de não comparecerem num evento. Em vez de golpe, birra.

Desta feita, a polemiquinha foi outra e, em lugar de faltarem, quiseram impedir outros de lá estar: a Iniciativa Liberal foi barrada de participar no desfile da Av. da Liberdade pela Comissão Promotora das Comemorações Populares, que agrega os partidos de esquerda, as intersindicais e organizações como a Associação 25 de Abril.

Ora, tal como de 2012 a 2015, isto é prova de que a Democracia portuguesa está bem robusta. Comunistas e amigos proibirem pessoas de celebrarem em conjunto a Liberdade e a Democracia conquistadas em 1974? Isso não é grave. Grave seria comunistas e amigos obrigarem pessoas a celebrarem a “Liberdade” e a “Democracia” que gostavam de ter instituído em 1974. Pior do que comunistas com mau perder, seria termos aqui comunistas com bom ganhar.

Era sinal de que vivíamos numa daquelas democracias avançadas onde os cidadãos são forçados a participar em desfiles de homenagem ao regime. Como as paradas chinesas e soviéticas em que toda a gente tem de estar presente a gritar “vivas!” ao Grande Líder. E a abanar bandeirinhas (previamente aprovadas pelo Partido, claro) em coreografias sincronizadas, que são de facto espectaculares quando assistidas, através da televisão, no conforto do lar convenientemente situado numa democracia ocidental.

Tratam-se de celebrações em que desatam todos a bater palmas e depois ninguém tem coragem de ser o primeiro a parar, não vá um compatriota mais zeloso denunciá-lo por dissidência. São aplausos intermináveis, que fazem um algazarra tal, que os pássaros, desorientados, caem do céu. E as pessoas não se conseguem proteger, porque as mãos estão em chaga de tantas palmas e magoa menos levar com as aves nas fuças do que nas mãos. Portugal podia ser isto: gente nos Restauradores a apanhar com pombos em cima.

Aborrecido era viver num país em que fossemos coagidos a participar em desfiles. Tal como está, é óptimo. Ninguém obriga ninguém a nada, festeja-se como se quer e com quem se quer. Os meninos da Comissão Promotora não deixam a IL entrar no desfile? Não faz mal, a IL faz o seu. É difícil desfiliar a IL do desfile.

Ao contrário do que pode parecer, a Avenida da Liberdade não pertence à Comissão Promotora. Embora, se formos justos, o paralelismo entre as duas é tão evidente que quase se confundem. E não é por causa da “Liberdade” no nome. É porque, como se vê pelas lojas e restaurantes de luxo da Avenida, são ambas muito elitistas.

Ao fim deste tempo todo, continua a haver quem queira ensinar a festejar correctamente o 25 de Abril. Porque isto de comemorar não é à balda. Não confundamos o festejo da liberdade com libertinagem!

Digamos que é o equivalente ao obstetra insistir em organizar a festa de aniversário do bebé que fez nascer. Bebé que, entretanto, tem 47 anos. Sendo que, em rigor, nem se trata bem do obstetra. É um ajudante do obstetra. Aliás, tecnicamente, não se pode considerar ajudante, é um amigo. Quer dizer, passados tantos anos, já é o filho do amigo do obstetra. Ou seja, temos o filho do amigo do obstetra do 25 de Abril a decidir quem é que pode festejar – e de que forma – o aniversário da Revolução. E a exigir ser ele a apagar as velas.

É um bocadinho estranha, esta vontade de mandar nas celebrações do 25 de Abril. E paradoxal: para quem tem tanta comichão com a propriedade, não há dúvida que adoram ser donos de uma data.

José Diogo Quintela – Observador

sábado, 24 de abril de 2021

Aterradora profecia de António Barreto


Redacção em 1 de Outubro de 2020

Uma profecia feita com a lucidez e o realismo de António Barreto.

A LER com atenção, pois é deveras preocupante e já se encontra em desenvolvimento Republicanos, corporativistas, fascistas, comunistas e até democratas mostraram, nos últimos séculos, que se dedicaram com interesse à revisão selectiva da História, assim como à censura e à manipulação.É triste confessar, mas ainda estamos para ver até onde vão os revisores da História. Uma coisa é certa: com a ajuda dos movimentos antirracistas, a colaboração de esquerdistas, a covardia de tanta gente de bem e o metabolismo habitual dos reacionários, o movimento de correcção da História veio para ficar.Serão anos de destruição de símbolos, de substituição de heróis, de censura de livros e de demolição de esculturas. Até de retificação de monumentos. Além da revisão de programas escolares e da reescrita de manuais.Tudo, com a consequente censura de livros considerados impróprios, seguida da substituição por novos livros estimados científicos, objetivos, democráticos e igualitários.


A pujança deste movimento através do mundo é tal que nada conseguirá temperar os ânimos triunfadores dos novos censores, transformados em juízes da moral e árbitros da História.Serão criadas comissões de correção, com a missão de rever os manuais de História (e outras disciplinas sensíveis como o Português, a Literatura, a Geografia, o Meio Ambiente, as Relações Internacionais...), a fim de expurgar a visão bondosa do colonialismo, as interpretações glorificadoras dos descobrimentos e os símbolos de domínio branco, cristão, europeu e capitalista.Comissões purificadoras procederão ao inventário das ruas e locais que devem mudar de nome, porque glorificam o papel dos colonialistas e dos traficantes de escravos. Farão ainda o levantamento das obras de arte públicas que prestam homenagem à política imperialista, assim como aos seus agentes. Já começou, aliás, com a substituição do Museu dos Descobrimentos pelo Memorial da Escravatura.Teremos autoridades que tudo farão para retirar os objetos antes que as hordas cheguem e será o máximo de coragem de que serão capazes. Alguns concordarão com o seu depósito em pavilhões de sucata. Outros ainda deixarão destruir, gesto que incluirão na pasta de problemas resolvidos.Entretanto, os Centros Comerciais Colombo e Vasco da Gama esperam pela hora fatal da mudança de nome.Praças, ruas e avenidas das Descobertas, dos Descobrimentos e dos Navegantes, que abundam em Portugal, serão brevemente mudadas.Preparemo-nos, pois, para remover monumentos com Albuquerque, Gama, Dias, Cão, Cabral, Magalhães e outros, além de, evidentemente, o Infante D. Henrique, o primeiro a passar no cadafalso. Luís de Camões e Fernando Pessoa terão o devido óbito. Os que cantaram os feitos dos exploradores e dos negreiros são tão perniciosos quanto os próprios. Talvez até mais, pois forjaram a identidade e deram sentido aos mitos da nação valente e imortal.

Esperemos para liquidar a toponímia que aluda a Serpa Pinto, Ivens, Capelo e Mouzinho, heróis entre os mais recentes facínoras. Sem esquecer, seguramente, uns notáveis heróis do colonialismo, Kaúlza de Arriaga, Costa Gomes, António de Spínola, Rosa Coutinho, Otelo Saraiva de Carvalho, Mário Tomé e Vasco Lourenço.Não serão esquecidos os cineastas, compositores, pintores, escultores, escritores e arquitetos que, nas suas obras, elogiaram os colonialistas, cúmplices da escravatura, do genocídio e do racismo. Filmes e livros serão retirados do mercado.Pinturas murais, azulejos, esculturas, baixos-relevos, frescos e painéis de todas as espécies serão destruídos ou cobertos de cal e ácido. Outras comissões terão o encargo de proceder ao levantamento das obras de arte e do património com origem na África, na Ásia e na América Latina e que se encontram em Portugal, em mãos privadas ou em instituições públicas, a fim de as remeter prontamente aos países donde são provenientes.Os principais monumentos eretos em homenagem à expansão, a começar pelos Jerónimos e pela Torre de Belém, serão restaurados com o cuidado de lhes retirar os elementos de identidade colonialista. Os memoriais de homenagem aos mortos em guerras do Ultramar serão reconstruídos afim de serem transformados em edifícios de denúncia do racismo. Não há liberdade nem igualdade enquanto estes símbolos sobreviverem.Muitos pensam que a História é feita de progresso e desenvolvimento. De crescimento e melhoramento. Esperam que se caminhedo preconceito para o rigor. Do mito para o facto. Da submissão para a liberdade.Infelizmente, tal não é verdade. Não é sempre verdade. Republicanos, corporativistas, fascistas, comunistas e até democratas mostraram, nos últimos séculos, que se dedicaramcom interesse à revisão seletiva da História, assim como à censura e à manipulação.

E, se quisermos ir mais longe no tempo, não faltam exemplos. Quando os revolucionários franceses rebatizaram a Catedral de Estrasburgo, passando a designá-la por Templo daRazão, não estavam a aumentar o grau de racionalidade das sociedades. Quando o altar-mor de Notre Dame foi chamado de Altar da Liberdade caminharam alegremente da superstição para o preconceito.E quando os bolchevistas ocuparam a Catedral de Kazab, em São Petersburgo e apelidaram o edifício de Museu das Religiões e do Ateísmo, não procuravam certamente a liberdade e o pluralismo. E também podemos convocar os Iconoclastas de Istambul, os Daesh de Palmira ou os Taliban de Bamiyan que destruíram símbolos, combateram a religião e tentaram apropriar-se tanto do presente como do passado.Os senhores do seu tempo, monarcas, generais, bispos, políticos, capitalistas, deputados e sindicalistas gostam de marcar a sociedade, romper com o passado e afastar fantasmas. Deuses e comendadores, santos e revolucionários, habitam os seus pesadelos. Quem quer exercer o poder sobre o presente tem de destruir o passado.Muitos de nós pensávamos, há cinquenta anos, que era necessário rever os manuais, repensar os mitos, submeter as crenças à prova do estudo, lutar contra a proclamação autoritária e defender com todas as forças o debate livre.É possível que, a muitos, tenha ocorrido que faltava substituir uma ortodoxia dogmática por outra. Mas, para outros, o espírito era o de confronto de ideias, de debate permanente e de submissão à crítica pública.O que hoje se receia é a nova dogmática feita de novos preconceitos. Não tenhamos ilusões.Se as democracias não souberem resistir a esta espécie de vaga que se denomina libertadora e igualitária, mergulharão rapidamente em novas eras obscurantistas.

António Barreto

sexta-feira, 23 de abril de 2021

Eu lembro-me

Helena Matos

O PS serviu-se de Sócrates. Agora quer desembaraçar-se dele. O problema não é Sócrates mas sim a forma como o PS governa: tomando conta disto tudo.

18 abr 2021

Eu lembro-me desses dias em que a mentira passou a inverdade.

Eu lembro-me de em 2007, algumas semanas após a publicação pela imprensa das notícias sobre as irregularidades da licenciatura de José Sócrates, o actual ministro dos Negócios Estrangeiros e então ministro dos Assuntos Parlamentares, Santos Silva, denunciar o que classificava como “jornalismo de sarjeta”. Foi José Sócrates quem o obrigou?

Eu lembro-me de quando aqueles que questionavam os procedimentos do primeiro-ministro José Sócrates eram automaticamente  tratados pelo PS como reaccionários, antipatriotas, bota-abaixistas e tremendistas. Em 2021 o PS continua a praticar esses exercício.

Eu lembro-me de em 2007 o então ministro da Administração Interna, António Costa, e o secretário de Estado, José Magalhães, terem iniciado um blogue na própria página do ministério da Administração Interna para responderem aos comentadores que estavam a quebrar o unanimismo sobre a infalibilidade governamental. Foi José Sócrates quem os forçou a isso?

Eu lembro-me de o PS não se ter indignado com a suspensão de um funcionário da Direcção Regional de Educação do Norte por este ter feito um comentário jocoso sobre a licenciatura do primeiro-ministro. Estaria o PS com medo de Sócrates para não reagir?

Eu lembro-me de em 2007 terem passado quase dois meses para que os jornais quebrassem a cerca sanitária dessa época: aquela que mantinha restrita à blogosfera a informação sobre o processo académico de Sócrates. O PS ainda se lembra do que os seus históricos disseram sobre essas notícias?

Eu lembro-me de António Costa, enquanto ministro da Administração Interna do governo de Sócrates, defender a criação de um Conselho Superior de Investigação Criminal a ser presidido pelo primeiro-ministro,José Sócrates. O modo de funcionamento desse conselho colocaria numa posição subalterna o Procurador-Geral da República. O PS esqueceu-se deste episódio?

Eu lembro-me dos argumentos criados pelos socialistas para justificarem aqueles telefonemas de assessores do governo furibundos a quem assinava artigos críticos para com o Governo. Vão agora dizer que Sócrates os hipnotizava  para produzirem esses argumentários?

Eu lembro-me de em 2007, após as notícias sobre a licenciatura de José Sócrates, Arons de Carvalho, no semanário Expresso, concluir que “a violação das regras deontológicas não pode continuar impune” e Vital Moreira falar em “décadas de impunidade deontológica”. O PS já esqueceu?

Eu lembro-me de o PS não mostrar o mínimo interesse pelas denúncias de corrupção que surgiam desde 1997 sobre o licenciamento da Estação de Resíduos Sólidos Urbanos da Cova da Beira assinado por José Sócrates, então secretário de Estado do Ambiente. Já era José Sócrates quem os impedia de perguntar?

Eu lembro-me de o director da PJ, Santos Cabral, ter sido afastado e enxovalhado em 2006 pelo ministro da Justiça, Alberto Costa, e pelo primeiro-ministro, José Sócrates.  O PS não teve um pequeno sobressalto ao conhecer os contornos desse afastamento  e as referências de Santos Cabral à intervenção do executivo na PJ? (Ah já me esquecia esse era o tempo em que o PS vivia indignado com o classificava como abuso das escutas telefónicas por parte da PJ!)

Eu lembro-me do mutismo com que o PS reagiu em 2009 quando se soube que tinha sido ilegalmente destruído o processo da adjudicação e concessão da Estação de Resíduos Sólidos Urbanos da Cova da Beira. Vai o PS dizer que foi enganado?

Eu lembro-me de o ex-inspector da PJ que denunciou o caso Freeport ser condenado a oito meses de prisão e ao pagamento de uma multa. O PS estou certa que também se lembra.

Eu lembro-me de a Procuradoria Geral da República arquivar o inquérito à licenciatura de José Sócrates, embora não conseguisse explicar como um certificado com data de 1996 podia estar redigido num impresso só possível de existir depois de 1998. O PS já esqueceu o que disseram várias das suas mais destacadas figuras na altura? Foi Sócrates quem lhes pôs as palavras na boca?

Eu lembro-me de, no último dia de Junho de 2008, Dias Loureiro e António Vitorino terem apresentado a biografia de Sócrates, escrita pela jornalista Eduarda Maio. “O menino de ouro do PS”, título do livro, reproduz a expressão por que Sócrates era tratado por muitos socialistas, indiferentes a tudo o que já se sabia sobre José Sócrates desde o final dos anos 90. O PS continua a querer que acreditemos que havia um governo que nada sabia daquilo que José Sócrates fazia?

Eu lembro-me  de o PS, na campanha eleitoral  de 2009, apresentar  como uma mentira nascida de motivações ocultas tudo o que questionasse José Sócrates. O PS ainda se lembra disto ou sofre de amnésia?

Eu lembro-me de a PT ser usada para entrar no capital da TVI de modo a alterar-se a linha editorial daquela estação e torná-la mais amigável para o Governo. E lembro-me de o PS achar isso normal.

Eu lembro-me de a administração da TVI dar ordens para ser cancelado o Jornal Nacional de Sexta, apresentado por Manuela Moura Guedes. E lembro-me muito bem de ouvir e ler socialistas e compagnons a declararem o seu apoio a este afastamento.

Eu lembro-me de em 2010 apenas o Correio da Manhã ter avisado os seus leitores de que o primeiro-ministro impusera como condição não ser confrontado com o caso Freeport no âmbito das entrevistas que ia dar a propósito da iniciativa “Governo Presente”. O PS sempre solidário com José Sócrates passou a usar depreciativamente a expressão “jornalismo à Correio da Manhã“.

Eu lembro-me de ouvir os socialistas classificarem como aleivosias as notícias sobre as casas cujos projectos Sócrates terá assinado, embora os donos das mesmas casas não o confirmassem. O PS pretenderá agora que foi José Sócrates quem os convenceu a fazer tal figura?

Eu lembro-me de José Sócrates, na qualidade de primeiro-ministro (demissionário) ter contactado formalmente a troika, composta pelo FMI, BCE e Comissão Europeia, a 6 de Abril de 2011, a solicitar um empréstimo no valor de 78 mil milhões de euros. E lembro-me como pouco depois o PS começou a criticar não só a troika como o programa que negociara com ela e que o governo seguinte teve de aplicar.

Eu lembro-me de ver os socialistas acotovelando-se em torno de Sócrates em cada sessão de anúncio de mais um plano revolucionário para o país: o MIT, os PIN, TGV, os Magalhães, as Novas Oportunidades, o choque tecnológico… O PS também não esqueceu porque continua a apostar no anúncio do anúncio e na inauguração do inaugurado, sem perguntar sobre o como nem o porquê.

… Há coisas que não se esquecem. E uma delas é a forma como o PS toma conta do Estado. José Sócrates  é um produto dessa forma de exercício do poder.

PS. Por sinal também em lembro dos incêndios de 2017 e da discussão sobre as fragilidades do  SIRESP (Sistema Integrado das Redes de Emergência e Segurança de Portugal) . Daí que tenha dificuldade em acreditar que em Abril estejamos com uma crise no SIRESP:  o general que o liderava demitiu-se;  o Governo pré-anuncia um novo modelo para a rede de comunicações de emergência. O BE pede a nacionalização do SIRESP.  O CEO da Altice, empresa que assegura o funcionamento do SIRESP, alertou que o funcionamento do SIRESP pode estar em causa a partir de Julho, notando que, a pouco mais de dois meses do fim do contrato, ainda não houve qualquer contacto por parte do Governo…. Já esqueceram Pedrogão?

quinta-feira, 22 de abril de 2021

Já foi o “Dono de Lisboa Toda”. Agora complica vida a Medina (e embaraça Costa)

Não esquecer que António Costa e Fernando Medina andavam com Manuel Salgado “ao colo”.

Fernando Medina inventou um departamento (SRU) para Manuel Salgado!

Talvez não fosse má ideia ir ver o que se faz, naqueles gabinetes técnicos da CML, com dezenas de arquitectos e engenheiros efectivos.

A “Operação Olissipus” tem o arquitecto Manuel Salgado, Ex-vereador da Câmara de Lisboa e primo de Ricardo Salgado, no centro de uma teia de suspeitas. Na antecipação das autárquicas deste ano, o processo complica a vida a Fernando Medina, mas também embaraça Costa que levou Salgado para a autarquia.

Manuel Salgado é, “há 14 anos”, o “Dono de Lisboa Toda”. A certeza é avançada pelo Diário de Notícias (DN) que faz um paralelismo com o primo do arquitecto, Ricardo Salgado, Ex-presidente do BES e que um dia já foi o “Dono Disto Tudo”, como se diz.

O percurso dos dois primos direitos parece, de facto, ter algumas semelhanças, especialmente na forma como subiram na vida e como tropeçaram, em queda livre, devido a processos judiciais.

“Quem traçava rumo da cidade era o arquitecto Salgado”

As buscas realizadas, nesta terça-feira, em edifícios da Câmara de Lisboa e em espaços profissionais e pessoais de Manuel Salgado e do filho, também arquitecto, levaram Fernando Medina, presidente da autarquia, a confirmar o envolvimento do seu Ex-vereador.

Contudo, apesar de Manuel Salgado ter deixado o pelouro do Urbanismo em 2019, altura em que surgiram as primeiras notícias sobre as investigações em torno de projectos aprovados durante a sua vereação, Medina não se livra da sombra das suspeitas.

Até porque o arquitecto mantém-se como consultor não remunerado de Medina, conforme o próprio autarca confirmou.

Além disso, Manuel Salgado manteve a presidência da Sociedade de Reabilitação Urbana (SRU) até Fevereiro deste ano, quando saiu depois de ter sido constituído arguido devido ao processo relacionado com os impactos na paisagem do Hospital CUF do Tejo, projecto aprovado quando era vereador.

A oposição em Lisboa refere-se à SRU como uma “câmara dentro da câmara” e o Correio da Manhã aponta que “quem traçava o rumo da cidade era o arquitecto Salgado”.

Carlos Moedas, o candidato do PSD à Câmara de Lisboa para as próximas autárquicas, já tratou de realçar que “não são apenas os comportamentos de José Sócrates que corroem o funcionamento da democracia”, notando que “a suspeita em volta da actuação política na CML também corrói“.

Mas o processo acaba também por ser um embaraço para o próprio António Costa, uma vez que foi ele quem levou Manuel Salgado para a Câmara.

O DN não duvida de que o arquitecto foi “o mais influente decisor de Lisboa na área do urbanismo” nos últimos “14 anos”.

Suspeitas de abuso de poder e corrupção

A “Operação Olissipus” envolve suspeitas de “abuso de poder, participação económica em negócio, corrupção, prevaricação, violação de regras urbanísticas e tráfico de influências”, conforme anunciou a Polícia Judiciária.

Um dos projectos investigados respeita ao quartel do Regimento de Sapadores Bombeiros que foi comprado em hasta pública pelo grupo Luz Saúde que era, na altura, detido pelo Grupo Espírito Santo (GES) de Ricardo Salgado.

Sob suspeita estão ainda os projectos urbanísticos da Torre da Avenida Fontes Pereira de Melo, da Petrogal, do Plano de Pormenor da Matinha, da Praça das Flores, da Operação Integrada de Entrecampos, do Edifício Continente, das Twin Towers e do Convento do Beato.

Além disso, as obras da Segunda Circular, do Miradouro de São Pedro de Alcântara e das piscinas da Penha de França estão também a ser investigadas.

Como arquitecto, para lá do trabalho como vereador na autarquia lisboeta, Manuel Salgado assinou obras como o Teatro Camões, no Parque das Nações, o Centro Cultural de Belém ou ainda o Estádio do Dragão no Porto.

https://zap.aeiou.pt/dono-de-lisboa-toda-medina-costa-396817

Inspectores do SEF criaram fundo para apoiar acusados da morte de Ihor Homeniuk


Inspetores do SEF criaram fundo para apoiar acusados da morte de Ihor Homeniuk

Nuno Tiago Pinto

Iniciativa que já angariou dezenas de milhares de euros não está a ser pacífica dentro do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. Sindicato diz ter dado indicações às estruturas locais para se manterem afastadas.

Um grupo de inspectores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) do aeroporto criaram um fundo para ajudar os colegas acusados da morte do cidadão ucraniano Ihor Homeniuk a pagar as despesas judiciais. A iniciativa foi tomada pouco tempo depois da detenção e acusação de Duarte Laja, Bruno Sousa e Luís Silva e, ao que a SÁBADO apurou, conseguiu angariar dezenas de milhares de euros.

Contudo, apesar da adesão, a iniciativa não escapou à polémica no SEF. Uma boa parte dos inspectores de vários departamentos contactados pela SÁBADO garantiu não ter feito qualquer contribuição e o próprio Sindicato da Carreira de Investigação e Fiscalização do SEF (SCIF-SEF) não quis ter qualquer ligação à iniciativa.
"O sindicato tem várias estruturas locais. A Direcção Nacional deu indicações para não nos metermos nessas coisas", explica à SÁBADO Acácio Pereira, presidente do SCIF-SEF. "Todas as pessoas que participaram fizeram-no a título individual. O sindicato não o pode fazer. Há quem esteja de acordo e quem não esteja", diz. "Mesmo juridicamente não podíamos estar envolvidos. Recebia o dinheiro e depois? Nas nossas contas só entra dinheiro do sindicato. O que fizemos foi dar assistência jurídica na altura do processo disciplinar e quando foram detidos. Mas depois, por opção deles, o nosso advogado foi dispensado", conclui Acácio Pereira.


Advogados surpreendidos
A ideia de criar o fundo de apoio partiu de três inspectores colocados no aeroporto de Lisboa. Os inspectores do SEF foram contactados – a base de dados interna está disponível para todos – e foi aberta uma conta bancária em que um deles ficou como fiel depositário. Duarte Laja, Bruno Sousa e Luís Silva foram informados da iniciativa e de que poderiam requerer esse apoio.
A SÁBADO não conseguiu confirmar quantos inspectores contribuíram nem o montante exacto recolhido até ao momento, mas apurou que ultrapassou os 30 mil euros. "É uma quantia fácil de alcançar. Na altura havia cerca de 1.000 inspectores, se cada um der 50 euros chega-se aos 50 mil", diz um inspector que pediu para não ser identificado.
Os advogados dos três acusados mostraram-se surpreendidos. Maria Manuel Candal, defensora de Luís Silva, disse à SÁBADO "não ter a mínima ideia" de que esse fundo existia. "O meu cliente disse-me que usou as poupanças e teve ajuda familiar. Ele tem cumprido comigo, mas cobro preços de província, não de Lisboa", diz. "Vi que os colegas estiveram sempre a dar-lhes apoio, mas não sabia que era mais do que apoio moral."
Por sua vez, Ricardo Serrano Vieira, advogado de Duarte Laja, diz "desconhecer" a existência do fundo de apoio. "Isso nunca foi falado comigo." Já Ricardo Sá Fernandes, defensor de Bruno Sousa não se quis pronunciar sobre o assunto.

Qual é o teu género, EMEL?

A idiotice no poder!

“A EMEL, Empresa Municipal de Estacionamento de Lisboa, também com competências em matéria de mobilidade urbana, lançou um inquérito sobre hábitos de mobilidade e motivações para a utilização de diferentes opções de transporte, com especial destaque para a bicicleta. Na primeira pergunta do inquérito - obrigatória - pergunta qual é o género do respondente. As opções? Cinco: homem cisgénero, mulher cisgénero, homem transgénero, mulher transgénero e outro. Desde logo pergunto-me se “outro” não deveria ser “outro/outra” ou “outre” ou “outrx”, para não melindrar ninguém. Mas divago.

Voltando ao essencial: se o estimado leitor não sabe responder à primeira pergunta que lhe fazem sobre a sua própria identidade, não se preocupe. A EMEL, qual agente diligente do Estado Grande Educador, explica: “cisgénero: quando o sexo atribuído à nascença coincide com a identidade de género; trangénero: quando o sexo atribuído à nascença não coíncide com a identidade de género”. Eu, por exemplo, não sabia o que era cisgénero até ter sido acusado no Twitter, a propósito de um artigo que escrevi aqui, de o ser; num tom que me soou a latido então, mas que me parece ter pretendido ser uma ofensa agora.

O problema desta tribo das identidades é que clama que a identidade é autodeterminada. Em nome da liberdade individual e do respeito pelas

diferenças. Mas, depois, impõe uma linguagem, o condicionamento da expressão e um repúdio pela biologia. Em nome da diversidade e da “realidade socialmente construída”.

A questão é que, se estamos no domínio da afirmação individual da identidade, com a subjectividade que tal acarreta, não fosse o caso da pergunta ser uma cedência a uma agenda ideológica evidente, dá-se o caso de, admitindo a cedência, a pergunta estar mal formulada. Primeiro, porque neste universo paralelo a ideia de homem e mulher também é discutível. Segundo, porque a identidade de género - repito: neste universo paralelo - é fluída e, portanto, nem sequer permanente.

O que é que um(a) género-fluido (alguém cujo género muda de tempos em tempos) responde? Acrescentam o dia e a hora do inquérito? Ou um(a) quela/quella (um género associado com “menina”, mas não com “mulher”; ainda que esta associação não esteja relacionada com a idade, mas com arquétipos; quella tem a ver com princesas, ar, água e com a cor azul; pode ser um género feminino, mas não precisa ser; isso vai depender de cada quella) responde? Ou um(a) cervusgénero (um género que contém energia animal neutra)? Ou um(a) saturniane (alguém cujo género está ligado a leve(s) energia(s) celestial(is) feminina e masculina; este género não precisa estar relacionado com ser mulher e/ou homem e nem com ter certo(s) alinhamento(s) de género)? Responde "outro"? Desculpem lá, parece-me pouco inclusivo. (E não, não fui eu que inventei nada do que acabei de escrever sobre identidades; se fosse, não estava aqui, estava em Hollywood.)

Coisas importantes: o Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorder (DSM-V) trata a disforia de género como um distúrbio mental. É um assunto sério, do foro psiquiátrico, que traz muito sofrimento a quem dele padece e que, infelizmente, a tribo das políticas identitárias transformou num carnaval niilista e num combate ideológico; e, à conta disso, a tribo rival reagiu, claro, com sinal contrário. No meio da compita ficaram as pessoas que sofrem com esta condição. Repito: a disforia de género é um assunto sério. E é por isso que os excessos voluntaristas, repito, mais ideológicos que clínicos, mais contraproducentes que inclusivos, têm um efeito nocivo para uma estratégia decente de saúde pública para quem dela precisa. Uma palavra de desagravo: eu sei que a questão, problematizada nos termos do DSM-V, está em acesa discussão científica; mas, precisamente porque está em acesa discussão científica, mais vale que a mesma seja dirimida entre cientistas, que alavancada por ideólogos. E ainda menos se os ideólogos forem pagos para tratar da mobilidade urbana de uma cidade caótica como Lisboa.

Voltemos, portanto, à EMEL. E à metodologia. De que forma é que a utilização da identidade de género é relevante (e aceitável) como variável de caracterização? E qual é a sua relevância para a questão da mobilidade? No plano da saúde, por exemplo, sendo a disforia de género, como vimos, uma questão de saúde, andar de bicicleta não é irrelevante para um diabético. Nem para um cardíaco. Mas nada disto é perguntado.

Já no plano da identidade, a religião também é variável relevante. Mas também nada disso é perguntado. Por exemplo, para muçulmanos, xiitas e sunitas, a questão não é nada pacífica. Nem para algumas comunidades Amish. Quero dizer: não é pacífica para as mulheres destas comunidades. Mas, e mulheres que, nestas comunidades, não se identifiquem como mulheres?

É caso, a propósito deste episódio, para uma recomendação e uma pergunta. A recomendação é que, se estão preocupados com a identidade de género na sua relação com a utilização de bicicletas, não sejam ouygenerofóbicos. Os ouygéneros são um género relacionado com árvores; precisamente como aquelas que a CML abateu para construir uma ciclovia. A pergunta? É a que está no título: qual é o teu género, EMEL?”


Pedro Gomes Sanches (Expresso) – 17-04-2021

segunda-feira, 19 de abril de 2021

A POPULAÇÃO DA TERRA

É muito interessante e educacional e senti-me feliz por fazer parte dos "privilegiados" vivos. PARA QUEM GOSTA DE NÚMEROS, AQUI VÃO ALGUNS QUE DÃO QUE PENSAR.

A população actual da Terra é aproximadamente de 8 biliões

Para a maioria das pessoas, é um número grande.

No entanto, em termos percentuais, podemos apreciá-lo numa dimensão mais humanamente gerenciável.

A análise resultante é relativamente mais fácil de entender.

Desse total de 100%:

11% estão na Europa

5% estão na América do Norte

9% estão na América do Sul

15% estão na África

60% estão na Ásia

49% vivem no campo

51% vivem em cidades

12% falam chinês

5% falam espanhol

5% falam inglês

3% falam árabe

3% falam hindi

3% falam bengali

3% falam portugues

2% falam russo

2% falam japonês

62% falam sua própria língua nativa.

77% possuem casa própria.

23% não têm onde morar.

21% são cobrados a mais.

63% podem comer refeições completas.

15% estão desnutridos, comeram a última refeição, mas não passaram para a próxima.

O custo de vida diário de 48% é inferior a US $ 2.

87% têm água potável limpa.

13% carecem de água potável ou têm acesso a uma fonte de água contaminada.

75% têm telemóveis

25% não.

30% têm acesso à internet.

70% não têm condições de se conectar.

26% vivem menos de 14 anos

66% morreram entre as idades de 15 e 64

8% têm mais de 65 anos.

83% sabem ler.

17% são analfabetos.

7% receberam educação universitária.

93% não cursaram faculdade.

33% são cristãos.

22% são muçulmanos.

14% são hindus.

7% são budistas

12% são de outras religiões.

12% não têm crenças religiosas.

Se tem a sua própria casa, faz refeições completas, bebe água limpa, tem um telemóvel, pode navegar na Internet e fez a faculdade, você está no pequeno lote privilegiado (menos de 7%).

Nas condições actuais, de cada 100 pessoas no planeta, apenas 8 podem viver ou ultrapassar os 65 anos.

Se você tem mais de 65 anos, seja feliz e grato. Aprecie a vida, aproveite o momento.

Se não deixou este mundo antes dos 64 anos, como as 92 pessoas que partiram antes de você, é já um abençoado entre a humanidade.

Cuide bem da sua saúde porque ninguém se importa com ela mais do que você!

Aprecie cada momento restante!

Cumprimentos

ESCOMBROS.

Este não é tempo de heróis. É obra de vilões. Foi uma sequência meticulosamente encenada. Coreografada ao mais ínfimo pormenor. A pandemia e a distância social imprimiam drama ao espectáculo. A timidez calculada do protagonista trouxe a personagem à beira da inocência. Vultos de togas negras davam o tom da morbidez necessária a uma espécie de Juízo Final. As máscaras disfarçavam os embuçados que pareciam membros de um coro clássico. No final desta estranha liturgia, sobraram os escombros — de que não nos livraremos antes de muitos anos. Que pensar daquela encenação inédita? Como se explica que o longo solilóquio tivesse deixado o país suspenso? Será possível que um monocórdico despacho instrutório tenha provocado uma crise no país, na sociedade e no sistema democrático? É possível, sim, porque aconteceu. E foi possível, porque se tratou de uma das mais sérias crises da nossa vida colectiva desde 1975. Nunca imaginei que fosse possível assistir, em directo, ao quase suicídio de uma instituição. O que se passou nesta última semana andou muito perto disso, de um gesto sacrificial ou de uma descida aos infernos. A Justiça portuguesa nunca conseguirá, antes de muitos anos, recuperar uma parcela do prestígio perdido, que já era pouco, mas parecia recuperar gradualmente. Este espectáculo indecoroso foi na verdade o último acto de um folhetim. Não há memória, em Portugal ou na Europa, de uma cena deste género. É difícil imaginar o que pensam os procuradores, os magistrados, os juízes, os oficiais de justiça, os conselheiros e os desembargadores… Todos foram afectados por estes episódios. De muitos se esperava uma reacção. Até agora, tem sido diminuta. A confiança no Ministério Público e na Procuradoria-Geral da República, assim como no Tribunal de Instrução, está hoje evidentemente no mais baixo de sempre. Desprestígio contagiante: outras instituições judiciárias, incluindo tribunais de primeira instância, Relações e supremos, sem esquecer os conselhos superiores, o Ministério da Justiça, o Tribunal Constitucional …

Ninguém escapa, podem crer! Não é raro que haja instituições em guerra. Ou grupos em choque, dentro das mesmas instituições. Com certeza que há opiniões diferentes entre magistrados e entre instituições. Mas na Justiça não deve haver controvérsia e rivalidade. A actividade judiciária não é a actividade parlamentar. O confronto adversário entre deputados e a controvérsia partidária não são aqui a regra. Nem sequer deveriam ter significado. O que se está a passar é isso mesmo: a transformação da actividade judiciária num confronto de que os cidadãos só têm a sofrer… É natural que haja diferenças entre magistrados, mas não é natural que sejam os cidadãos a pagar. Nem que a Justiça passe a reger-se pelas normas da actividade parlamentar. A justiça partidária é tão má quanto a justiça popular, a justiça da rua e a justiça do governo. Nunca, como hoje, a desconfiança na Justiça foi tão grande e tão pública. Toda a gente ficou com a certeza da fragilidade da acusação, de um relativo intento persecutório da instrução e da relativa incompetência do inquérito. Ficou nítido o desequilibrado, moroso e mal fundamentado processo do Ministério Público. Toda a gente ficou com enorme desconfiança do enviesamento do despacho instrutório, cujas debilidades e incongruências estão pelo menos ao mesmo nível que as do Ministério Público. É aterradora a hipótese, até agora não convincentemente desmentida, de manipulação dos sorteios de juízes, pelos vistos com tradição na Relação de Lisboa. Ficou-se mais uma vez com uma péssima impressão da justiça exibicionista e do despotismo de função. Seria bom que todos saibam: Rosário Teixeira, Carlos Alexandre e Ivo Rosa não ficam na fotografia melhor do que José Sócrates, Ricardo Salgado, Carlos Santos Silva e outros suspeitos. Chocante, no caso presente, é o silêncio dos responsáveis, dos dirigentes políticos, dos protagonistas judiciais e de todos quanto desempenham funções de direcção, de orientação ou de associação. O silêncio do Governo é o mais confrangedor. Nem sequer consegue exteriorizar uma preocupação, muito menos uma intenção. Não se aceita o silêncio do Governo. Nem o dos socialistas, motivado pelo incómodo cúmplice de quem se envolveu nestes negócios e nestes processos. Os socialistas sabem que é muito fácil ser incluído nas culpas e na desconfiança. Eles sabem que é muito difícil afirmar que não estavam lá e que nada sabiam. Sócrates não estava sozinho. Nunca esteve. Nestas questões de crises e de reformas políticas e institucionais, uma questão essencial é a da sua responsabilidade principal. Quem pode orientar, dirigir e cuidar de tais reformas? Que partido, que instituição, que poderes ou que grupos sociais podem definir objectivos e estratégias e são capazes de executar tais reformas? Em poucas palavras, quem lidera e quem é responsável? O cepticismo, no caso da Justiça, vê-se confirmado todos os dias. Discute-se, há anos, há décadas, a crise e a reforma da Justiça. Os resultados têm sido magros, muito magros. Agora, estamos à beira de apenas ficar com escombros. E infelizmente não se vislumbra quem possa assegurar a liderança das reformas necessárias. Em todo este episódio, o silêncio tem sido medonho. Do Presidente da República, do Governo, do primeiro-ministro, dos ministros, dos deputados, do Parlamento, dos partidos políticos, dos conselhos superiores das magistraturas, dos supremos tribunais, das associações profissionais e da academia… Curioso é que os argumentos dos responsáveis pelo silêncio são o da não interferência nas questões da Justiça e o da separação de poderes. Conhecem-se as expressões mais frequentes. “Não se deve interferir na Justiça.” “A Justiça deve seguir o seu curso.” “A Justiça tem as suas regras que a população não percebe bem.” “Os políticos não se devem meter com a Justiça.” “À política o que é da política, à Justiça o que é da Justiça.” É o que se diz. É o que fica bem dizer. É aquilo com que muitos se defendem. Mas é errado! É o argumento que utilizam os covardes. A Justiça é o que há de mais importante. Como alguém disse, a minha liberdade depende da urna de voto e do tribunal. Sobre a Justiça todos devemos falar e pensar. Em casos concretos e em casos gerais. Se a política não se ocupa disto, ocupa-se de quê? Não há nada mais importante. 

(António Barreto - Público 17 Abril de 2021)

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Comentário Pessoal ao texto:

Discordo do autor relativamente à sua frase:

Rosário Teixeira, Carlos Alexandre e Ivo Rosa não ficam na fotografia melhor do que José Sócrates, Ricardo Salgado, Carlos Santos Silva e outros suspeitos

A incompetência é uma coisa.

A CORRUPÇÃO é outra, com uma gravidade muito maior!

(Embora ambas estejam abundantemente espalhadas pelo país).

COMO PLANTAR UM BONSAI – EM 10 PASSOS.

    Em comemoração ao dia da Árvore que tal plantar uma em sua casa? Mas é muito grande? Que tal um Bonsai então? Eles são arvores cultivadas em pequenos vasos, com isso eles não crescem muito, podendo cultiva-las dentro da sua casa!

    Confira esse passo a passo que fizemos para vocês, iniciantes!


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    Passo 1

    Primeira coisa a se fazer é escolher o vaso! Existem vários modelos de vasos para Bonsais, mas preste atenção pois as árvores  novas, que estão sendo estilizadas devem ser colocadas em recipientes maiores, para dar às raízes espaço suficiente para que se desenvolvam. Já as mais velhas, que passam apenas pela poda de manutenção,  podem ser plantadas em vasos menores.


    Passo 2

    Agora vamos drenar o vaso! Como os vasos são baixos, o sistema de plantio é muito simples. É somente  utilizar um pedaço pequeno de Bidim ou sombrite, para tampar os buracos do vaso. Com isso você deve passar um arame de cobre pelos buracos do vaso, passando pela tela e prender no sistema radicular da planta para firma-la.

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    Passo 3

    Prepare o solo do seu Bonsai. Para melhores resultados misture 85% de xisto de 8 mm e 15% de terra de Algarrobo, mas caso não encontre pode ser qualquer outra mistura standard.

    soil 04 - Como plantar um Bonsai - em 10 passos

    Passo 4

    Hora de escolher a planta que será usada!

    Recomendamos você iniciante começar com uma muda de planta, pois comprar sementes o processo é mais difícil e demorado.

    As plantas mais usadas para Bonsais são os pinheiros, juníperos e ciprestes. Você pode escolher a que preferir, floríferas, frutíferas ou folhagens, todas são possíveis! O ideal é que possuam lignina (tecido  grosso, iguais as árvores que vemos por aí) no caule. Escolha plantas velhas com musgos com caules grossos e galhos tortos para facilitar na hora da poda.

    bonsai oriental spruce 04 - Como plantar um Bonsai - em 10 passos

    Passo 5

    Mãos a obra!

    • Pegue a muda de planta, esfarele o torrão para deixar as raízes nuas.

    • Lave as raízes delicadamente, tomando muito cuidado com elas.

    • Antes de realizar a poda nas raízes, esterilize a tesoura com fogo.  

    • Com isso retire as raízes mais grossas, deixando apenas as mais finas, aplique canela em pó (a mesma que você utiliza na cozinha) para cicatrizar rapidamente o corte. Já as raízes mais finas devem ser cortadas somente o comprimento de 10 cm da base da planta escolhida.

    • Amarre o arame no sistema radicular da planta, após isso coloque o restante do substrato para o solo e pressione com as mãos para firma-lo.

      poda de raiz - Como plantar um Bonsai - em 10 passos

      Passo 6

      Como cultiva-la?

      Como qualquer outra planta, ela necessita de luz, água e protecção dos ventos para sobreviver. Evite que o Bonsai tome sol nos horários mais quentes do dia (+- das 10hrs até as 14hrs). Caso não tenha como controlar isso, utilize um sombrite com 50% de luminosidade para amenizar a luz solar sobre o seu Bonsai. Para rega-la, não esqueça que toda planta que for regada em excesso acaba morrendo, então recomendamos rega-la 1 vez a cada 2 dias, ou quando você perceber que o solo está seco. Lembre sempre de verificar se a água está escorrendo pelo vaso ( se estiver a sua drenagem está funcionando!).

      watering bonsai  - Como plantar um Bonsai - em 10 passos

      Passo 7

      Como você vai estiliza-lo? Já decidiu? Confira alguns estilos de Bonsais que você pode seguir na hora da poda e estilização.

      Chokkan (forma vertical), Sokan (tronco duplo na mesma base),  Kabudachi (multi tronco na mesma base), Yose-eu (floresta, várias árvores crescendo em harmonia), Hokidachi (vassoura), Han-kengai (Semi cascata), Kengai (cascata), Bunjingi (verde no topo), Fukinagashi (varrido pelo vento), Ishisuki (raízes nas rochas), Sharimiki (tronco morto), entre outros.

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      Passo 8

      Para o cultivo ser um sucesso você precisa realizar 3 tipos de poda:

      1. Poda de manutenção (para manter o formato que você escolher do bonsai),

      2. Poda de estilização (para dar um estilo ao bonsai)

      3. Poda de raiz (para transplantio no vaso e engrossamento).

        1. A poda de manutenção é muito simples, só retirar as folhas e galhos mais finos que estão crescendo.

          A poda de estilização é já é mais complicada, pois cada estilo requer uma poda e modos diferentes de realização, por isso quando escolher o estilo do seu Bonsai, pesquise a fundo ou pergunte para quem tem conhecimento.

          A poda de raiz também é perigosa, pois traz um alto risco da sua planta não sobreviver ao acto. Porém, quanto mais você praticar, melhor e mais conhecimento você terá, por isso não fique triste se não der certo na primeira vez! 

          maxresdefault - Como plantar um Bonsai - em 10 passos

          Passo 9

          Armação do Bonsai!

          É um processo muito importante,  pois através do arame você conduz o galho no estilo que você quiser. Porém tenha cuidado para não sufocar os galhos com os arames, os proteja com plásticos/borrachas.

          Confira aqui algumas técnicas e jeitos de armação de Bonsai!

          img55e5efbcb1c36 - Como plantar um Bonsai - em 10 passos

          Passo 10

          Adubação!

          Não esqueça que sua plantinha precisa de nutrientes para crescer forte e saudável. Utilize adubos foliares completos! Confira aqui alguns os cuidados que se deve ter com a adubação!

          fertilizing 02 biogold - Como plantar um Bonsai - em 10 passos

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        Banco de Portugal não foi o único a falhar no BES. Relatório secreto atira à CMVM, auditoras e Angola.

        Relatório Costa Pinto não poupou críticas ao supervisor português. Mas outras entidades esconderam dados, atrasaram respostas ou falharam nos seus deveres. O regulador CMVM é especialmente visado.

        João Costa Pinto

        O Banco de Portugal é o principal alvo das críticas, mas há alvos secundários na auditoria independente conduzida pela equipa liderada por João Costa Pinto à actuação no caso Banco Espírito Santo. O relatório, concluído em Abril de 2015, que tinha sido encomendado pelo então governador Carlos Costa (e que ficou secreto até o Observador o divulgar esta semana), aponta falhas a outro supervisor importante, a CMVM, bem como a empresas de auditoria e, ainda, ao congénere do Banco de Portugal em Angola, o BNA.

        O actual ministro Pedro Nuno Santos foi o deputado do PS que coordenou os trabalhos da comissão de inquérito ao BES

        Essas são outras entidades que tinham responsabilidades no controlo e fiscalização do Banco e do Grupo Espírito Santo – e que também tiveram falhas, aponta o relatório. O documento considera que estas prejudicaram algumas das medidas adoptadas pelo supervisor bancário e há críticas fortes à actuação da Comissão de Mercado de Valores Mobiliários, na altura liderada por Carlos Tavares (hoje chairman do Banco Montepio).

        No interacção com a CMVM são duas as matérias analisadas: o aumento de capital realizado em Maio de 2014 pelo Banco Espírito Santo e a comercialização pelo banco – junto de clientes de retalho – de produtos financeiros que serviram para financiar as empresas não financeiras do Grupo Espírito Santo, e que numa fase final foram concebidos e vendidos de forma a contornar as ordens de travão dadas a estas práticas de financiamento do grupo. É neste ponto que o relatório concluiu que houve uma “supervisão ineficaz”por parte do regulador da bolsa.

        “Um dos piores negócios da história”

        “Um dos piores negócios da história” dos mercados financeiros. A expressão foi usada pelo Financial Times dias depois da resolução para descrever o último aumento de capital do BES, em Junho de 2014, e é reveladora do dano reputacional que Portugal sofreu com o colapso do GES/BES. A operação, fechada entre Maio e Junho, permitiu captar mais de mil milhões de euros, sob a direcção de Ricardo Salgado, e foi considerada um sucesso na medida em que a procura excedeu a oferta.

        As novas acções foram liquidadas em meados de Junho, ou seja, foi nessa altura que os accionistas que as compraram debitaram das suas contas de investimento os euros necessários para concluir a transacção. Um mês depois, perante as notícias sobre a falência iminente do Grupo Espírito Santo, tinham perdido quase todo o seu valor e acabaram a valer praticamente zero quando o banco foi alvo de resolução nos primeiros dias de Agosto.

        Na página 390 do relatório lê-se que “a informação ao dispor dos reguladores, nomeadamente do Banco de Portugal e da CMVM, no momento da emissão do prospecto do aumento de capital, perspectivava que o incumprimento da ESI não era um mero risco potencial, como indicado no prospecto. Nesta questão específica, não está em causa a actuação do Banco de Portugal, que cumpriu os deveres de cooperação com a CMVM“.

        Não sendo uma crítica expressa, a frase pode ser lida como uma crítica ao supervisor do mercado que deu o selo de aprovação ao prospecto da operação no dia 20 de Maio, no mesmo dia em que teve conhecimento da  auditoria final à Espírito Santo Internacional (ESI), que  confirmava o que o Banco de Portugal já sabia desde Novembro do ano anterior.

        A dívida da ESI, então a principal holding do GES, era mais do dobro do que estava nas contas e a KPMG aponta para uma subavaliação da ordem dos 1.300 milhões de euros que tinha por base “erros contabilísticos” efectuados intencionalmente desde 2008 pelo responsável da contabilidade” (Machado da Cruz). A auditoria não apontava para a existência de “apropriação indevida de activos”. Poucos dias depois surgiria outra revelação que implicava Ricardo Salgado na falsificação das contas.

        A análise liderada por Costa Pinto nota que, “não obstante as conclusões do relatório, a CMVM decidiu aprovar, ainda no dia 20 de Maio, o prospecto da emissão accionista do BES no montante de 1.045 milhões, embora com uma referência explícita aos riscos incorridos pelos investidores devido à situação da ESI”.

        Este é o primeiro alerta público e oficial de que algo de muito errado se passa nas contas da principal holding do GES. O prospecto refere: “A Espírito Santo Internacional foi objecto de uma revisão limitada de finalidade especial, relativamente às demonstrações financeiras consolidadas pro-forma referentes a Setembro e Dezembro de 2013, efectuada por um auditor externo, que apurou irregularidades nas suas contas e concluiu que a sociedade apresenta uma situação financeira muito grave“.

        O prospecto alertava para o risco que esta situação teria na reputação do BES e na cotação das acções, dado o facto de haver administradores comuns à ESI, ESGF e BES, mas também referia que tinham sido tomadas medidas pela ESFG (a holding financeira do GES que era accionista do BES) para salvaguardar eventuais situações de incumprimento pela ESI que pudessem ter impacto no banco. Era uma referência à provisão de 700 milhões de euros criada para reembolsar os clientes do banco que tinham comprado dívida da ESI. O alerta era mais de natureza reputacional do que centrado num risco para a solidez financeira do BES.

        Ora, o relatório Costa Pinto nota que desde o segundo semestre de 2013 que o Banco de Portugal conhecia a fraude contabilística da ESI (o primeiro alerta da KPMG surgiu em Novembro) “que implicaria a falência desta holding quando fosse revelada publicamente. Ficou absolutamente patente a criticidade da enorme exposição directa e reputacional do grupo financeiro às artes relacionadas e o problema tornou-se prioritário para a supervisão. Nessa altura, o risco representado pela exposição à vertente não financeira do grupo deixou de ser remoto e passou a ter uma probabilidade de materialização muito elevada“.

        O Banco de Portugal hesitou no afastamento de Ricardo Salgado - MANUEL DE ALMEIDA/LUSA

        Foi por isso que foi constituída a estratégia de protecção do banco face ao grupo, o chamado ring fencing, e que passava por:

        1. A constituição de uma provisão de 700 milhões, que implicava um aumento de capital na ESFG para cumprir os rácios, iria mitigar o risco reputacional.
        2. Ordem para reduzir a exposição do banco ao grupo, interrompendo as linhas de financiamento.

        Estas medidas de controlo de danos e a situação financeira do GES (e os impactos no BES, como as preocupações prudenciais resultantes da exposição do banco ao grupo) tinham sido tratados numa reunião a 4 de Abril entre o Banco de Portugal e CMVM, quando foi também comunicado o aumento de capital do banco.

        Como o Observador já noticiou, o relatório Costa Pinto constata que a estratégia do ring fencing foi insuficiente e aponta defeitos no seu desenho que potenciaram o seu fracasso, nomeadamente o facto de a limitação inicial ter sido apenas para o financiamento à ESI, o que transferiu a emissão de dívida para a Rioforte com a respectiva colocação junto de clientes.

        Outra falha foi não ter sido assegurado um controlo independente da conta escrow, para o qual seriam canalizados os recursos libertos pelas entidades não financeiras) e cuja gestão nunca deveria ter sido entregue ao próprio BES.

        A guerra nos bastidores para afastar Ricardo Salgado

        Para compreender porque foi para a frente o aumento de capital do BES é preciso contar a história que se passava nos bastidores sobre as tentativas do Banco de Portugal para afastar, voluntariamente, Ricardo Salgado. Uma das razões para a manutenção do presidente do BES, mesmo depois de provas do seu envolvimento na fraude das contas da ESI, foi a necessidade de realizar esta operação de aumento de capital, que já tinha sido anunciada ao mercado, e o receio das consequências para o banco e para o sistema financeiro de uma “chicotada psicológica” num dos maiores bancos portugueses.

        O aumento de capital ficou concluído a 9 de Junho, com a procura a exceder a oferta, a liquidação aconteceu a 16 de Junho. O período de subscrição tinha decorrido entre 27 de Maio e 9 de Junho. E foi no primeiro dia deste prazo, 27 de Maio, que José Maria Ricciardi, o presidente do BESI – que estava em rota de colisão com Ricardo Salgado há meses –, entregou ao Banco de Portugal um relatório da sociedade de advogados luxemburguesa Arendt & Medernach com a transcrição da audição ao contabilista da ESI, Francisco Machado da Cruz, em que este afirmava que a ocultação do passivo era feita desde 2008, intencionalmente e com o conhecimento de alguns dos seus dirigentes, entre os quais Ricardo Salgado.

        O ainda presidente do BES estava à frente da captação de investidores e invocou esta sua capacidade como argumento para dissuadir o Banco de Portugal de o afastar logo do cargo. Desde Novembro de 2013 que o supervisor manifestava intenção de rever a idoneidade de Salgado e outros gestores, na sequência de notícias como a “liberalidade” dada por José Guilherme a Ricardo Salgado, e depois de saber que o passivo da ESI atingia os 6,2 mil milhões de euros, contra os 3,2 mil milhões reportados.

        Numa reunião a 17 de Janeiro com Carlos Costa, Ricardo Salgado avisou que, se estivesse em causa a substituição da família, as implicações “seriam muito significativas, penalizando fortemente o Grupo BES”, que deixaria de ter capacidade para captar capitais no mercado. A 31 de Março, alertou para impactos sistémicos significativos de uma saída imediata dos órgãos sociais, com a fuga de depósitos e clientes.

        Na fase final do programa da troika, o Banco de Portugal terá sido sensível a estes argumentos e, perante o “dilema” de tomar uma decisão que teria grande impacto na reputação do banco, e que poderia levar a uma crise de confiança com eventuais implicações sistémicas, acordou a saída de Salgado depois do aumento de capital, que veio a acontecer a 20 de Junho.

        Olhando para trás, a comissão independente “entende que a manutenção de Salgado em funções não foi a opção adequada” e sustenta que “teria sido preferível uma actuação mais decisiva logo que ficaram disponíveis elementos que confirmavam a insolvência da vertente não financeira do GES, em particular dos primeiros resultado do exercício Etricc (exercício transversal de solidez financeira) em Novembro de 2013.

        “Por um lado, reconhece-se que a substituição dos órgãos sociais mais cedo, com os riscos identificados, teria ocorrido na fase final do PAEF, com potenciais implicações na forma como foi concluído. Por outro lado, o aumento de capital de Junho de 2014 não se teria verificado, o que evitaria danos que a operação acabou por causar, quer na confiança dos investidores no mercado de capitais português, quer na reputação nacional e internacional dos supervisores. A estas consequências sobre a imagem do Banco de Portugal e da CMVM, que podem limitar a sua eficácia futura, acrescem riscos de litigância que pode suscitar uma operação com as características desta”.

        Venda de produtos a clientes do BES. Banco de Portuga autolimitou-se, mas a CMVM falhou

        O “Relatório Costa Pinto” faz uma extensa análise das responsabilidades dos dois reguladores financeiros, concluindo que o Banco de Portugal se autolimitou nas suas competências, na sequência de um acordo de cooperação assinado com a CMVM em 2009. Tendo deixado a supervisão comportamental de todos os produtos vendidos pelos bancos, com a excepção dos depósitos, à CMVM.

        Apesar de existir uma sobreposição legal de competências, Costa Pinto alega que isso não dispensaria o Banco de Portugal de apreciar o modo como a CMVM executa a sua actividade de supervisão e até de intervir directamente. Isso acabou por acontecer só em Novembro de 2013, no caso das obrigações, e em Fevereiro de 2014, no contexto do ring fencing.

        Para os autores do documento, havia sinais claros desde 2012 “de que a CMVM não estava a disciplinar adequadamente a comercialização de produtos financeiros aos balcões do BES, com destaque a para a venda de obrigações próprias do banco, de unidades de participação de fundos de investimento e de papel comercial de entidades não financeiras do GES”. Neste último caso, o relatório vai buscar as declarações de Carlos Tavares numa audição parlamentar a 24 de Julho para ilustrar as “falhas” que atribui à actuação da CMVM.

        “O presidente da CMVM declarou-se convicto de que os clientes de retalho do BES que compraram papel comercial da holdings ESI e Rioforte estavam convencidos de que tinham constituído depósitos tradicionais junto do banco, e que esperava que os honrasse”. Essas declarações, conclui o documento, “traduzem o reconhecimento da supervisão ineficaz da CMVM, entidade que, de acordo com o Código dos Valores Mobiliários, tem responsabilidades na supervisão das condições de emissão e comercialização do papel comercial. Sem prejuízo de uma eventual co-responsabilidade do BdP, a falha da CMVM não é ultrapassada pela repetida exigência a posteriori, isto é depois das consequências se manifestarem, de reembolso dos investidores prejudicados”.

        É uma referência à divergência entre os dois reguladores sobre a obrigação de reembolsar o papel comercial aplicado pelos clientes de retalho, que Carlos Tavares defendia mas o Banco de Portugal acabou por atirar para o banco mau, dando origem ao movimento dos chamados “lesados do BES”.

        O relatório indica ainda uma deficiente articulação entre os dois supervisores. No final de 2012, já o Banco de Portuga tinha conhecimento da concentração de dívida das empresas do GES na carteira dos fundos de investimento, mas essa preocupação não terá sido partilhada com a CMVM. O Banco de Portuga também sabia desde Outubro de 2013 que a venda de papel comercial da ESI aos clientes de retalho do BES foi o mecanismo encontrado para refinanciar a dívida do GES quando esta teve de ser retirada dos fundos de investimento. Mas só há registo de o ter reportado na reunião de 4 de Abril de 2014.

        O movimento dos chamados "lesados do BES", investidores em títulos do grupo GES que reclamaram as suas poupanças. JOÃO PORFÍRIO/LUSA


        A CMVM tinha responsabilidades específicas de supervisão nos dois casos que “não desempenhou satisfatoriamente”, conclui o relatório. Mas “o Banco de Portugal, para além da autolimitação a que se remeteu desde 2009, em termos de supervisão comportamental na comercialização de produtos financeiros aos balcões do banco, não tomou a iniciativa de passar à CMVM informações relevantes”.

        No caso do papel comercial, e com o recurso a ofertas privadas com valor nominal até 50 mil euros, os emissores ficam dispensados da autorização final da CMVM à informação a transmitir aos subscritores e de apresentar o último balanço de contas da entidade emitente. No entanto, competia à CMVM fiscalizar o mercado onde o papel fosse negociado, “pelo que tendo conhecimento de que as contas da emitente constantes da nota informativa não estavam correctas”, ou que o limite legal que impede uma emissão de arrecadar valores superiores ao triplo dos capitais próprios do emitente estava a ser violado “deveria proibir essa negociações”.

        O relatório defende ainda que o recurso “sistemático a emissões de valor nominal de 50 mil euros deveria ter suscitado reservas por parte da CMVM. Mais: “A circunstância de tais títulos estarem a ser vendidos sistematicamente na rede de retalho do BES, a investidores pouco qualificados, deveria ter levado a CMVM à conclusão de que a utilização do valor nominal elevado visava pura e simplesmente iludir o regime de ofertas pública, que obrigaria à aprovação de uma nota informativa”.

        A KPMG (Portugal) usou como justificação para as dificuldades na troca de informação com o Banco de Portugal o facto de ser a KPMG Angola que auditava o BESA. WALLACE WOON/EPA

        KPMG. A auditora que foi “claramente negligente” no dever de informação ao supervisor

        O “Relatório Costa Pinto” tem 496 páginas e tem 518 referências à auditora KPMG, que acompanhou o BES entre 2002 e o colapso, em 2014. Vários anos depois da conclusão dos trabalhos desta comissão, o Banco de Portugal viria a condenar a auditora KPMG a pagar uma coima de três milhões por causa do BES Angola – isto no culminar de um processo de contra-ordenação contra a auditora, que considerou terem havido “infracções especialmente graves”.

        No final de 2020, o Tribunal da Concorrência absolveu a auditora KPMG e cinco dos seus sócios de todas as contra-ordenações pelas quais foram condenados em Junho de 2019 pelo Banco de Portugal, no âmbito do caso BES. O Banco de Portugal recorreu dessa decisão e é nesse ponto que está o confronto entre o supervisor e a auditora.

        O relatório feito pela comissão independente recupera, porém, os detalhes sobre como a auditora fez o seu trabalho de acompanhamento das contas do grupo liderado por Ricardo Salgado. E a apreciação de Costa Pinto, a partir da análise da interacção entre a KPMG e o Banco de Portugal, é que a auditora foi “claramente negligente” no dever de informação ao supervisor.

        Um dos principais problemas relacionados com a KPMG diz respeito a Angola, mas está longe de ser apenas isso que está em causa. Um exemplo: logo em 2012 o Banco de Portugal pediu “que fosse efectuado um trabalho, pelo auditor externo, com a intenção de avaliar o grau de transferência efectiva de riscos para fora do Grupo BES, com a colocação nos seus clientes das UP dos fundos mobiliários geridos pela ESAF”, conta o relatório.

        Quatro meses depois, o trabalho estava feito. Mas não correspondia às expectativas. Por um lado, “não foi feita uma circularização de clientes e, por outro, porque o foco da análise incidiu nos clientes de gestão discricionária (para clientes de retalho, que representavam mais de 95% do valor das UP, a KPMG limitou‐se a avaliar a minuta do respectivo contracto de subscrição)”.

        Aqui, o Banco de Portugal insistiu, mas acabou por, “surpreendentemente, permitir uma actuação dilatória da KPMG, a qual nunca chegou a fornecer as informações solicitadas”.

        No que diz respeito ao BESA, que era seguida pela KPMG Angola (e não pela KPMG Portugal, como a empresa várias vezes usou como argumento), o “Relatório Costa Pinto” advoga que “os indícios de que o Banco de Portugal dispunha, a partir do final de 2013, sobre a qualidade da carteira de crédito do BESA eram suficientes para que tivesse sido desencadeada uma inquirição formal da KPMG Portugal”.

        Essa inquirição formal serviria para “garantir que esta obtinha da KPMG Angola, em tempo útil, os esclarecimentos necessários para um cabal conhecimento e avaliação dos riscos que o BESA representava para o Grupo e, em particular, para o BES”, diz Costa Pinto.

        Mas “esta solicitação só veio a verificar‐se em 30 de Maio de 2014, na fase final do processo que levaria à resolução do BES”, aponta o “Relatório Costa Pinto”, criticando a passividade com que o supervisor agiu nessa ocasião. Essa passividade, porém, “não reduz a responsabilidade da actuação dilatória da KPMG”, defende a comissão Costa Pinto.

        Nos problemas em Angola, terá sido no final de Dezembro de 2013, de acordo com informação prestada ao Banco de Portugal pela KPMG Portugal em Junho (de 2014), que a KPMG Angola teria tomado conhecimento de um conjunto de dossiers de crédito considerado incobrável, com valor relevante. Foi nesse final de 2013 que foi emitida a controversa garantia do Estado angolano aos créditos do BESA.

        Depois disso, no final de Maio de 2014, o Banco de Portugal questionou, então, a KPMG Portugal sobre os resultados da auditoria da KPMG Angola à carteira de crédito do BESA, “perguntando se tinham sido encontrados activos cuja valorização ou colateral não fossem adequados, bem como sobre qual o entendimento da KPMG Portugal relativamente aos potenciais riscos existentes no BESA e às consequências para o BES de uma eventual materialização desses riscos”.

        A resposta da KPMG Portugal? Ponto um: Não tinha “conhecimento de quaisquer questões relevantes no BESA”. Ponto dois: alegava que “a eventual existência de perdas estaria coberta pela garantia do Estado angolano”.

        Aí, o Banco de Portugal perguntou qual era o montante de perdas que o BESA teria de suportar caso não existisse a garantia, “ao que a KPMG Portugal respondeu ainda não ter informação para responder”, lê-se no relatório.

        Foi só em 6 de Junho de 2014 que a KPMG Portugal indicou ao Banco de Portugal os valores em causa. No dia seguinte, 7 de Junho de 2014, foi publicado pelo jornal Expresso um artigo onde se dizia que o BES Angola tinha perdido “o rasto a 5,7 mil milhões”.

        Foi esta sequência de acontecimentos que contribuiu para que, nas conclusões, a comissão diga ter “uma opinião muito crítica sobre a actuação do auditor externo KPMG em várias fases do processo que levou ao colapso do BES, a qual se reporta a aspectos de falta de qualidade técnica do trabalho desenvolvido, a problemas no cumprimento de deveres de informação face à materialidade das situações em causa a cada momento e ainda a questões graves do ponto de vista ético”.

        PwC e o “desrespeito” e “violação” das regras quando omitiu ao BdP porque rompeu com o BES

        O “Relatório Costa Pinto” recua no tempo e prestou alguma atenção à anterior auditora do BES e, em particular, à decisão tomada pela PwC em 2002 de deixar de auditar as contas do grupo financeiro do BES, ao fim de dez anos.

        Na altura, o Banco de Portugal questionou a auditora sobre as razões para esta decisão e se essas razões deveriam ser do conhecimento do supervisor, ao que a auditora respondeu que a cessação de funções não tinha por base factos relevantes que fossem do interesse do supervisor, garantindo ter notificado ao Banco de Portugal o que considerou importante relativo às contas de 2001.

        Treze anos depois, a audição do sócio responsável pela PwC em Portugal na comissão de inquérito ao BES terá gerado perplexidade no Banco de Portugal. José Pereira Alves revelou que uma das razões para interromper o contracto com o grupo tinha sido, afinal, o incumprimento básico de regras básicas de governação na holding ESGF e no BES e com o facto de Ricardo Salgado acumular a presidência de vários órgãos sociais do grupo, concentrando muita informação e dificultando o seu acesso por parte do auditor externo.

        Apesar de o episódio ter mais de uma década, o “Relatório Costa Pinto” é duro no ataque à conduta da auditora, considerando omitir os problemas de governance que justificaram a sua saída, revela “um comportamento de desrespeito por padrões éticos que deveriam pautar a actuação das empresas de consultoria e auditoria”.

        E mais, ao “ocultar deliberadamente ao BdP no momento de saída, em 2002, o incumprimento de regras básicas de governação na holding ESFG e no BES, e a acumulação de funções de Ricardo Salgado — esta realidade seria conhecida do BdP, mas não a circunstância de a acumulação de cargos dificultar o acesso a informação — a PwC “incorreu na violação das normas do regime geral das instituições de crédito” que obrigam a comunicar essas situações ao supervisor bancário.

        Conclui, ainda, a avaliação independente que a “negação categórica da existência de problemas potencialmente relevantes para a supervisão, assumem de particular gravidade as declarações do um seu responsável à CPI”.

        Um dos autores do relatório Costa Pinto é Norberto Rosa, que era director-adjunto de supervisão do Banco de Portugal nos últimos anos em que a PwC foi auditora. É, portanto, alguém que terá um conhecimento pormenorizado de todas as interacções do Banco de Portugal com a PwC até ao momento em que a auditora decidiu prescindir de um cliente como o BES.

        Não há informação sobre se, possivelmente, terá sido alguma vez transmitida pela PwC ao Banco de Portugal (e a Norberto Rosa) alguma preocupação particular com o BES ou com a complexidade do grupo, nas reuniões regulares que o supervisor teve com a auditora. Mas o que fica para a história é que, de facto, a PwC não transmitiu formalmente qualquer problema ao Banco de Portugal na carta que enviou ao supervisor a informar que teria colocado um ponto final na relação com aquele cliente de longa data.

        Norberto Rosa é um dos autores do Relatório Costa Pinto e era director-adjunto de supervisão do BdP em 2002. DAVID MARTINS

        Como um BNA pouco cooperante contribuiu para condicionar a acção do Banco de Portugal

        O relatório considera “que o comportamento do BNA (Banco Nacional de Angola), conjuntamente com o dos auditores externos, contribuiu de modo essencial para explicar a actuação do Banco de Portugal, na medida em que este não tinha condições para aferir tempestivamente que as diversas comunicações prestadas pelo BNA não reflectiam a situação efectiva do BESA”.

        O “desconforto” marca a relação entre o Banco de Portugal e o Banco Nacional de Angola, com muitas trocas de mensagens, pedidos e recusas, como já foi contado pelo Observador no trabalho focado no tema da garantia soberana de Angola.

        O Banco de Portugal e o BNA assinaram um protocolo em 2012 que dava corpo à equivalência de supervisão entre os dois países. No entanto, isso não resultou num compromisso firme de partilha de informação sobre as entidades supervisionadas. E ao contrário do protocolo feito com o Banco do Brasil, deixava uma margem de interpretação maior que limitou a capacidade de iniciativa do Banco de Portugal junto das filiais angolanas dos bancos portugueses que não podiam ser inspeccionadas.

        Até 2013, a informação prestada pelo BNA sobre o BESA foi sempre positiva e atestando a robustez do banco, com uma carteira de crédito muito relevante, mas de baixo risco, porque os grandes clientes eram o Estado e empresas angolanas. Por outro lado, e durante um período longo de tempo, o Banco de Portugal não pediu informação ao BNA para confirmar a informação que o BES dava sobre os grandes riscos da sua participada.

        Terá sido apenas em 2014, e quando foi convidado a participar no exercício transversal de robustez dos bancos europeus promovidos pelo BCE e nos quais se incluía o BESA e o BFA (controlado pelo BPI), que surgiram resistências. Em Março, o BNA afirmou-se indisponível para participar neste exercício enquanto não concluísse outras inspecções. O governador Carlos Costa remeteu uma carta em Março onde manifesta a “surpresa” pela recusa, alertando que tal poderia afectar a forma como o BCE olhava para a regulação europeia. E pede autorização para supervisores portugueses irem a Angola para colaborar com o BNA.

        O problema foi desbloqueado por telefone em Abril e porque Carlos Costas cedeu e aceitou que o trabalho fosse feito sem auditores portugueses e garantiu que não haveria informação individualizada sobre créditos no reporte ao BCE. Mas a 7 de Maio, e por e-mail, um técnico do Banco de Portugal transmite à contraparte angolana o “forte desconforto do BCE” porque a avaliação aos créditos das filiais de Angola ainda não tinha começado. A resposta do BNA é recusar, também, por e-mail a deslocação a Luanda dos técnicos portugueses para avaliarem a qualidade do trabalho. Só em Junho foi possível chegar a um compromisso.

        Para a auditoria independente, esta postura marca uma “manifesta falta de cooperação do BNA”, escudada no enquadramento legal relativo ao segredo bancário, sobretudo na partilha de créditos individualizados.

        Os autores do “Relatório Costa Pinto” consideram que a lei angolana não impede que o BNA possa partilhar informação sobre a qualidade do crédito. “Não se compreende assim, nem tem qualquer justificação admissível, a resposta do BNA invocando a lei angolana de sigilo bancário” quando recusou o pedido de colaboração do BdP. “Também não se compreendem posteriores exigências de que o trabalho fosse realizado apenas por auditores locais e de que as informações não fossem transmitidas para fora de Angola.

        Com a notícia do Expresso de que não há rasto a créditos de 5,7 mil milhões de dólares do BESA, o Banco de Portugal manda uma carta ao BNA que não terá sido respondida. A 14 de Julho, o BNA envia uma avaliação ao perfil de risco do BESA que contraria o que tinha garantido até 2013: há “deficiências materiais — nomeadamente nos mecanismos de controlo da carteira de crédito — que requerem intervenção imediata do supervisor”. E aponta para graves problemas de solvabilidade e liquidez

        O governador Carlos Costa remeteu ao BNA uma carta, em Março, onde manifestava a "surpresa" pela recusa em colaboração. ANTÓNIO COTRIM/LUSA

        O “Relatório Costa Pinto” assinala que esta resposta “altera radicalmente, e sem qualquer reporte intercalar”, o sentido das avaliações anteriores sobre o BESA, mas o BNA apontava como medida de saneamento para a existência da garantia soberana emitida pelo Governo angolano que cobria cerca de 70% da carteira de crédito. E a 23 de Julho garantiu ao Banco de Portugal que o reembolso da linha de crédito do BES ao BESA (coberta pela garantia) estava assegurado”, admitindo contudo a sua reestruturação.

        Novamente questionado pelo Banco de Portugal, que estava sob pressão do BCE, o governador do supervisor angolano disse a 27 de Julho que estavam a aprofundar as graves situações detectadas na gestão da carteira de créditos, informando que a linha de crédito seria reestruturada e que estava a reavaliar a elegibilidade de alguns dos créditos incluídos na garantia. A 1 de Agosto, o BNA determinou medidas de saneamento ao BESA e a 4 de Agosto, logo após a resolução do BES, o supervisor angolano revogou a garantia soberana.

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