quinta-feira, 22 de abril de 2021

Qual é o teu género, EMEL?

A idiotice no poder!

“A EMEL, Empresa Municipal de Estacionamento de Lisboa, também com competências em matéria de mobilidade urbana, lançou um inquérito sobre hábitos de mobilidade e motivações para a utilização de diferentes opções de transporte, com especial destaque para a bicicleta. Na primeira pergunta do inquérito - obrigatória - pergunta qual é o género do respondente. As opções? Cinco: homem cisgénero, mulher cisgénero, homem transgénero, mulher transgénero e outro. Desde logo pergunto-me se “outro” não deveria ser “outro/outra” ou “outre” ou “outrx”, para não melindrar ninguém. Mas divago.

Voltando ao essencial: se o estimado leitor não sabe responder à primeira pergunta que lhe fazem sobre a sua própria identidade, não se preocupe. A EMEL, qual agente diligente do Estado Grande Educador, explica: “cisgénero: quando o sexo atribuído à nascença coincide com a identidade de género; trangénero: quando o sexo atribuído à nascença não coíncide com a identidade de género”. Eu, por exemplo, não sabia o que era cisgénero até ter sido acusado no Twitter, a propósito de um artigo que escrevi aqui, de o ser; num tom que me soou a latido então, mas que me parece ter pretendido ser uma ofensa agora.

O problema desta tribo das identidades é que clama que a identidade é autodeterminada. Em nome da liberdade individual e do respeito pelas

diferenças. Mas, depois, impõe uma linguagem, o condicionamento da expressão e um repúdio pela biologia. Em nome da diversidade e da “realidade socialmente construída”.

A questão é que, se estamos no domínio da afirmação individual da identidade, com a subjectividade que tal acarreta, não fosse o caso da pergunta ser uma cedência a uma agenda ideológica evidente, dá-se o caso de, admitindo a cedência, a pergunta estar mal formulada. Primeiro, porque neste universo paralelo a ideia de homem e mulher também é discutível. Segundo, porque a identidade de género - repito: neste universo paralelo - é fluída e, portanto, nem sequer permanente.

O que é que um(a) género-fluido (alguém cujo género muda de tempos em tempos) responde? Acrescentam o dia e a hora do inquérito? Ou um(a) quela/quella (um género associado com “menina”, mas não com “mulher”; ainda que esta associação não esteja relacionada com a idade, mas com arquétipos; quella tem a ver com princesas, ar, água e com a cor azul; pode ser um género feminino, mas não precisa ser; isso vai depender de cada quella) responde? Ou um(a) cervusgénero (um género que contém energia animal neutra)? Ou um(a) saturniane (alguém cujo género está ligado a leve(s) energia(s) celestial(is) feminina e masculina; este género não precisa estar relacionado com ser mulher e/ou homem e nem com ter certo(s) alinhamento(s) de género)? Responde "outro"? Desculpem lá, parece-me pouco inclusivo. (E não, não fui eu que inventei nada do que acabei de escrever sobre identidades; se fosse, não estava aqui, estava em Hollywood.)

Coisas importantes: o Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorder (DSM-V) trata a disforia de género como um distúrbio mental. É um assunto sério, do foro psiquiátrico, que traz muito sofrimento a quem dele padece e que, infelizmente, a tribo das políticas identitárias transformou num carnaval niilista e num combate ideológico; e, à conta disso, a tribo rival reagiu, claro, com sinal contrário. No meio da compita ficaram as pessoas que sofrem com esta condição. Repito: a disforia de género é um assunto sério. E é por isso que os excessos voluntaristas, repito, mais ideológicos que clínicos, mais contraproducentes que inclusivos, têm um efeito nocivo para uma estratégia decente de saúde pública para quem dela precisa. Uma palavra de desagravo: eu sei que a questão, problematizada nos termos do DSM-V, está em acesa discussão científica; mas, precisamente porque está em acesa discussão científica, mais vale que a mesma seja dirimida entre cientistas, que alavancada por ideólogos. E ainda menos se os ideólogos forem pagos para tratar da mobilidade urbana de uma cidade caótica como Lisboa.

Voltemos, portanto, à EMEL. E à metodologia. De que forma é que a utilização da identidade de género é relevante (e aceitável) como variável de caracterização? E qual é a sua relevância para a questão da mobilidade? No plano da saúde, por exemplo, sendo a disforia de género, como vimos, uma questão de saúde, andar de bicicleta não é irrelevante para um diabético. Nem para um cardíaco. Mas nada disto é perguntado.

Já no plano da identidade, a religião também é variável relevante. Mas também nada disso é perguntado. Por exemplo, para muçulmanos, xiitas e sunitas, a questão não é nada pacífica. Nem para algumas comunidades Amish. Quero dizer: não é pacífica para as mulheres destas comunidades. Mas, e mulheres que, nestas comunidades, não se identifiquem como mulheres?

É caso, a propósito deste episódio, para uma recomendação e uma pergunta. A recomendação é que, se estão preocupados com a identidade de género na sua relação com a utilização de bicicletas, não sejam ouygenerofóbicos. Os ouygéneros são um género relacionado com árvores; precisamente como aquelas que a CML abateu para construir uma ciclovia. A pergunta? É a que está no título: qual é o teu género, EMEL?”


Pedro Gomes Sanches (Expresso) – 17-04-2021

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