A pergunta sem resposta: O que é que ‘eles’ ganham com isto?
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Por: Henrique Sousa
Faz-se aqui uma análise simplificada do projecto de produção de hidrogénio verde que envolve diversas empresas do ramo de energia e não só. E como também envolve verbas do Estado, tem de ser mais escrutinado do que está a ser, tanto mais que estão a ser desviadas verbas destinadas a mitigar os efeitos da pandemia na população. O dinheiro da bazuca da União Europeia utilizado com critérios rigorosos e não em apostas sem garantias.
Concluímos que, tal como as centrais eólicas e solares, o hidrogénio verde vai encarecer ainda mais as nossas energias, tanto a eléctrica como a do gás natural.
A análise
É frequente confundir-se, nos meios de comunicação social, kW com kWh, ou seja potência com energia. A maioria das pessoas, não instruídas no domínio da ciência, desconhece a diferença. Mas é simples: a potência é a energia produzida ou consumida numa unidade de tempo. Por exemplo, um gerador com a potência de 1 kW pode produzir 2 kWh em 2 horas de funcionamento, 10 kWh em 10 horas e assim por diante. Se o gerador estiver parado produz zero kWh e, se funcionar abaixo da sua capacidade, irá produzir em 1 hora menos de 1 kWh. Pelo que não se pode confundir potência, que indica a capacidade de produzir (ou consumir), com o produto que é a energia. A energia, pode aparecer com diversas formas: luminosa, eléctrica, térmica, química, mecânica; e umas podem transformar-se noutras. São porém transformações com perdas (geralmente calor), algumas muito significativas. Num carro a combustível fóssil, por exemplo, apenas cerca de 20% da energia química do combustível é transformada em trabalho mecânico útil. Dizemos, então, que a transformação energética tem um rendimento de 20%.
Uma botija de gás de 13 kg equivale a 170 kWh de energia para fins de queima ou aquecimento. A botija de gás custa cerca de 24 € e o equivalente em electricidade custa também, em média, 24 € (0,14€/kWh). Mas a equivalência não é directa porque na queima do gás uma parte do seu conteúdo calorífico escapa-se pela chaminé pelo que sai mais barato usar electricidade em vez de gás de botija: há menos perdas, o rendimento é maior. E mais barato pode ficar se a pessoa souber tirar partido das tarifas bi ou tri-horárias da eletricidade.
A opção por gás natural pode ser ainda melhor que a eletricidade para queima ou aquecimento porque ele é bastante barato ainda. Pode custar apenas 6 cêntimos/kWh o que compensa, apesar das maiores perdas.
Se o preço do gás natural subir para valores próximos dos da eletricidade, compensa mudar tudo para eletricidade, substituir os queimadores de gás por dispositivos elétricos e deixar de consumir gás, com todas as vantagens que a eletricidade representa em comodidade e segurança.
Desta introdução podemos reter que a comparação entre diferentes energias se deve fazer pelo preço do kWh. Ou do MWh (1000 vezes mais), tratando-se de grandes quantidades.
O consumidor está, pois, a pagar a energia elétrica a 140 €/MWh, em média. Este valor resulta, como se sabe, das diversas proveniências da energia elétrica (hídrica, eólica, solar e gás natural), sendo que ela podia ser muito mais barata se se excluíssem as FIT (feed-in tariffs). Ou seja, os valores exagerados que, em Portugal, se pagam pelas energias intermitentes do vento e solar, da ordem de 100 a 200 euros por MWh, com contratos “blindados” até 2032, e prioridade de entrada na rede elétrica.
É, então, neste contexto energético que surge agora mais um combustível do futuro: o hidrogénio verde. Chama-se verde porque a sua produção faz-se por electrólise da água e não contribui para a emissão de dióxido de carbono para a atmosfera.
A produção de hidrogénio verde em horas de vazio (eletricidade mais barata) pode servir para:
- Uso direto como matéria-prima em indústrias várias, incluindo a petrolífera.
- Ser convertido de novo em eletricidade para a rede nas horas de maior consumo.
- Liquefeito para exportação.
- Convertido em metano por reação com CO2 e adicionado à rede de gás natural.
- Adicionado simplesmente à rede de gás natural com aumento do seu poder calorífico.
- Ser utilizado como combustível (liquefeito) em veículos elétricos movidos a pilhas de combustível (fuel cells) que convertem o hidrogénio e oxigénio (do ar) em energia elétrica e cujo resíduo é água apenas.
Aqui chegados, a produção de hidrogénio poderia parecer algo que faz sentido por permitir armazenar energia elétrica excedentária e ser usado de várias formas. Porém, a pergunta pertinente que se deve fazer é: qual será o preço do MWh do hidrogénio verde?
Ora, isso depende de vários fatores que compõem o preço desse hidrogénio e da forma como for reutilizado. Esse preço tem duas componentes, os fixos que dependem dos investimentos e os variáveis no caso da energia utilizada na produção ser paga por unidade consumida.
Matéria-prima
Como matéria-prima na indústria, e desde que possa ser produzido de forma competitiva por eletrólise, nada haverá a opor. É uma questão de preço apenas e as contas são simples de fazer. Se ainda não existe é por não se conseguir oferecer preços que compitam com os dos reformadores a gás.
Reconversão em eletricidade
Para reconversão em eletricidade industrial, e não considerando para já os altos custos de investimento, se a energia elétrica primária usada para produzir hidrogénio valer apenas 40 €/MWh (raramente está abaixo de 50€/MWh) e a transformação tiver um rendimento de 80% da eletrólise e 60% da reconversão de hidrogénio em eletricidade por pilhas de combustível, o MWh reconvertido passa a custar 83 €, sem considerar eventuais interesses.
Vamos agora ao investimento.
Uma instalação de eletrólise e reconversão de hidrogénio em eletricidade custa atualmente mais de 1 milhão de €/MW (valor que se pretende reduzir economia de escala) que equivale a 4000 MWh por ano em regime de utilização de 4000 horas por ano (horas de vazio). Considerando uma vida útil superior a 10 anos para o investimento e uma amortização em 10 anos (sem juros), isto conduz a um acréscimo de 25 € ao MWh que sobe assim para 108 €. Por último, se considerarmos, por hipótese, um lucro de 30% e o MWh do hidrogénio verde sobe para 140 €, antes de impostos.
Nesta breve análise não foram considerados os custos de operação da instalação que fariam aumentar ainda mais o preço do MWh da eletricidade produzida através do hidrogénio verde. Também ignorámos a possibilidade/necessidade de liquefação do hidrogénio para armazenamento. O hidrogénio só se liquefaz a temperaturas próximas de zero absoluto e consome cerca de um terço da sua energia específica.
Estamos a falar, portanto, de valores de 200 € ou mais por MWh para a eletricidade do hidrogénio verde produzido nas horas de vazio a 40 €/MWh.
Imagine-se agora se a eletricidade usada para produzir hidrogénio verde for proveniente de centrais eólicas e solares construídas para o efeito. Se essa eletricidade pode ser vendida à rede por valores entre 100 e 200 €/MWh, que sentido faz armazená-la sob a forma de hidrogénio para depois a vender a preços ainda mais altos?
A diferença de preço do MWh elétrico entre as horas de ponta e vazio, justifica armazenar a eletricidade nas horas de vazio para disponibilizá-la nas horas de ponta, como se faz nas centrais hídricas de bombagem – mas desde que seja economicamente viável.
Hoje em dia, porém, os estudos económicos e financeiros de viabilidade são negligenciados. Se não interessarem à política climática, alteram-se os parâmetros, penaliza-se as energias que não interessam e bonifica-se as que interessam. Tudo à custa do consumidor que vai ter de pagar a energia ao preço que for determinado pela política de transição energética e climática.
Liquefação para exportação
No caso de liquefação para exportação devemos considerar o rendimento de 80% da eletrólise e no máximo 70% da liquefação para chegarmos ao preço de 71 €/MWh a que se somam custos de investimento da ordem de 25 € mais lucros, mais operação, transportes, etc. e lucros. Chega-se facilmente a valores da ordem de 150 €/MWh. Depois, há o problema da distribuição no destino. Os países que importam o hidrogénio têm de criar uma rede de distribuição. E as empresas que instalam e disponibilizam estas redes também arcam com custos de investimento e querem lucrar. E terá que ser competitivo com outras alternativas. Por isso, é natural que o preço ao consumidor ultrapasse os 200 €/MWh também.
Aqui também a política falará mais alto: se houver intenção de forçar a utilização de hidrogénio verde dão-se incentivos e subsídios e ele será imposto aos consumidores. Uma vez conquistados os consumidores com preços políticos simbólicos, eles irão pagar mais tarde ao preço real. Um pouco como aconteceu com os veículos elétricos em que nos primeiros postos de abastecimento se carregava a custo zero para depois se vir pagar a um preço superior ao da eletricidade doméstica.
Conversão em metano e adição à rede de gás natural
Na opção da conversão em metano o preço de entrega do metano, ou do hidrogénio, à rede de gás teria de ser competitivo com o do gás natural, mas não é. A mistura do gás natural com o metano ou com hidrogénio ficaria mais cara ao consumidor mas, como também beneficiaria das FIT e seria pago a mais de 150 €/MWH e, dependendo da quantidade injetada, o preço do gás natural ao consumidor teria de aumentar da mesma forma que o preço da eletricidade subiu em Portugal para fazer face às FIT elétricas das eólicas e solares. Dos atuais 50 €/MWh poderia passar-se para 100 €/MWh, o que faria muita gente optar, com vantagem, pela eletricidade a 140 €/MWhm.
Combustível para veículos elétricos
Por último, vejamos como seria se o hidrogénio verde servisse apenas como combustível para veículos elétricos alimentados por pilhas de combustível, tecnologia bastante imatura ainda.
Partindo dos mesmos 40 €/MWh da eletricidade das horas de vazio, após eletrólise e liquefação, subiria para os mesmos 100 €/MWh, mais distribuição e comercialização e impostos. Não estaremos muito longe do preço final, se dissermos que o hidrogénio chegará ao consumidor por mais de 150 €/MWh, ou seja, 15 cêntimos por kWh.
Em veículos elétricos equipados com pilhas de combustível com rendimento de 50% (um bom valor), com um consumo típico de 15kWh por 100 km, haveria um gasto de 4,5 euros aos 100 km.
Um veículo com baterias de lítio (maior rendimento) poderia gastar cerca de metade deste valor. Na competição hidrogénio/baterias, o hidrogénio sai a perder.
Mas aqui também não considerámos os investimentos e a duração das células de combustível. Um carro elétrico ainda custa mais do dobro de um carro a gasolina ou diesel. Um carro com pilha de combustível não é ainda comum e de certo vai custar mais que um elétrico a baterias, sendo a duração das pilhas de combustível uma incógnita.
Mas esta é, na nossa análise simples (que careceria de cálculos mais detalhados) a única aplicação que pode fazer mais sentido para o hidrogénio verde – desde que obtido a partir de eletricidade barata, das horas de vazio em que ela pode custar 40 €/MWh. Mas nunca abastecida por centrais eólicas ou solares dedicadas à eletrólise porque a eletricidade que produzem pode ser vendida diretamente à rede por 100 a 200€/MWh.
De facto, o preço considerado de 40 €/MWh é um preço de mercado e não significa que a produção de eletricidade verde (eólica e solar) não esteja a ser paga a 100 ou 200 €. A diferença é paga pelo consumidor.
Conclusão
O hidrogénio verde é ainda uma miragem. Para ser viável era preciso que o custo do investimento fosse consideravelmente mais baixo (a bombagem de água custa 10 vezes menos) e o custo da eletricidade verde fosse tão baixo quanto possível. O hidrogénio verde, mesmo numa perspetiva de futuro longínquo, é uma aposta de casino. Como explicámos, o resultado não convém nem ao País, nem aos consumidores. Contudo, os cidadãos são amedrontados com o catastrofismo do aquecimento global e da ameaça do CO2 para deixar passar estes negócios da plutocracia reinante e bem falante.
O resultado certo será passarmos a ter a energia – toda ela! – mais cara. A política energética desastrosa de José Sócrates com as renováveis, é agora repetida por António Costa com esta nova história rosa do hidrogénio verde.
Henrique Sousa
Editor de Energia e Ambiente do Inconveniente
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