sexta-feira, 2 de abril de 2021

Os cobradores de fraque.

Há duas categorias profissionais pelas quais, confesso, tenho um misto de inveja e irritação: os arquitectos e os economistas. Inveja porque, em ambos os casos, era aquilo que gostaria de ter sido e não fui, porque, infelizmente, uma vida só não chega para tudo aquilo que se gostaria de ter sido e ter feito. E irritação porque, regra geral, ambas as profissões defendem as respectivas áreas de saber como fortalezas fora do alcance e do entendimento do comum dos mortais. Como se ambas as “artes” não fossem, talvez, as mais intuitivas e mais necessárias ao comum das pessoas desde que a Humanidade existe: talvez não fosse possível viver num mundo sem música, mas a arquitectura vem antes, como arte imprescindível, pois os homens precisam de uma estrutura para se abrigarem, de uma ponte para atravessarem um rio, de um espaço comum para se encontrarem; e a economia é aquilo que instintivamente todos nós aprendemos a aplicar nas nossas vidas, decidindo o que gastar, o que investir, o que poupar, como fazer os meses chegarem ao fim, entre receitas e despesas. Logo, aquele tipo de discurso sobranceiro, altivo, excludente, de que a arquitectura é para os arquitectos e a economia para os economistas, causa-me uma indomável irritação. Mas, por ora, deixo de lado os arquitectos, pois quero ocupar-me apenas dos economistas, mestres de uma ciência muito mais incerta e muito mais manipulável — e, por isso, costumamos chamar-lhe e estudá-la acertadamente como Economia Política.

Há uma característica que, desde logo, me fascina nos economistas: são normalmente brilhantes (os que o são...) a analisar o que se passou depois de se ter passado; mas raramente acertam no que se vai passar — o que em nada abala a sua autoconfiança e a sua permanente disponibilidade para a próxima profecia (ou previsão, como gostam de lhe chamar). Mas é preciso distinguir entre os dois tipos essen­ciais de economistas: os académicos e os realistas. Estes últimos são aqueles que, em algum tempo das suas vidas, desceram do pedestal ao mundo real, lá onde habita esse sujeito que os outros tratam como abstracção mas à roda do qual gira toda a economia de uma comunidade: o agente económico. Os agentes económicos, sejam indivi­duais ou colectivos, são tipos banais que lêem os sinais da economia, instintivamente ou por experiência, mas normalmente antes de os economistas terem começado a analisá-los e a profetizar sobre eles. Interessam-lhes indicadores certos, por vezes comezinhos: a carga fiscal, a legislação laboral, o mercado e a concorrência, as infra-estruturas disponíveis para facilitar a sua actividade ou o seu negócio e, acima de tudo, antecipar os tempos que aí vêm e perceber se os governos vão ajudar ou atrapalhar. Por sua vez, os economistas que conhecem este mundo sabem que esse conhecimento é fundamental para que a realidade determine as teorias e não o oposto: tentar forçar a realidade a encaixar-se dentro das teorias. Os economistas realistas trabalham com duas variáveis cujo conhecimento deveria ser decisivo para tomar as decisões políticas certas: o ambiente de negócios e as expectativas dos agentes económicos.

Já os economistas académicos são um perigo à solta. Desde logo porque têm um lugar de estimação nos governos, seja como integrantes ou como pitonisas, e um lugar cativo nos media, que resolvem, recorrendo às suas verdades herméticas, a dificuldade e o trabalho que dá ir ao terreno tentar perceber se essas verdades têm correspondência com o que ali acontece. Nada mais fácil para um jornal do que um artigo de fulano ou beltrana, doutor aqui e PhD acolá, por sua vez carregado de citações de pappers ou artigos de outros ilustres colegas do mundo académico que o leitor jamais leu ou lerá, para que o jornal adopte também como verdade instantânea e incontestável o que eles escrevem. E assim se fazem “verdades” económicas, assim se faz doutrina, assim se cometem erros, por vezes trágicos.

Se porventura têm andado atentos ao que andam a escrever os nossos académicos, talvez tenham reparado como eu em várias características comuns aos mais badalados: todos são da esquerda versão estatizante, todos ensinam em universidades públicas e todos são particularmente acarinhados pelos media. E o mais importante: todos defendem mais despesa pública sustentada por mais impostos — obviamente sobre o que chamam os “ricos”, que, entre nós, e medido pela tabela do IRS, são todos aqueles que têm mais de 36 mil euros de rendimento anual, pagando já 45% de imposto.

Esta semana, num artigo do “Público”, significativamente intitulado “A crise renovou o desejo de mudar os impostos (e talvez de os aumentar)”, lá tinham eles nova oportunidade para defenderem as suas ideias de mais carga fiscal ou novos impostos “extraordinários” para financiar o esforço público no combate à crise. Dando de barato que todos sabemos que qualquer novo imposto ou aumento “extraordinário” de impostos para vigorar apenas num curto período ficará para sempre (veja-se o adicional de “solidariedade” ao IRS ou o “imposto Mortágua”), o que não deixa de me espantar, em termos de contraditório jornalístico, é que nunca se oiçam as vozes e as teses de sinal contrário — porque elas existem. O que sabemos, de ciência certa, é que este sistema de mais despesa pública — e mais impostos para a financiar — é aquele em que temos vivido há 47 anos. E os resultados foram: mais dívida, três bancarrotas do Estado, crescimento incipiente e divergência constante com os padrões económicos europeus, apesar dos milhões que Bruxelas sempre nos enviou. Como alguém disse, fazer sempre o mesmo, esperando resultados diferentes, não é propriamente sinal de inteligência...

É uma verdade incontestável que esta situação que vivemos é absolutamente excepcional e que, comparativamente com os outros, Portugal até é dos países que menos dinheiros públicos tem gasto até agora para acorrer ao desastre em que tantos estão mergulhados, sem culpa alguma. Mas é a velha história da cigarra e da formiga: gastámos o que não tínhamos quando não devíamos, sempre confiantes de que os amanhãs só podiam cantar. E, se não fosse o programa de compra de dívida pública do BCE, que nos tem permitido continuar a ir aos mercados e trocar dívida a 0% de juros, este país já tinha estoirado. Isso mesmo: estoirado.

Aumentar impostos para evitar aumentar a dívida é uma hipótese. Ou então acreditar antes no que diz Pascal Saint-Amans, director do Centro para a Política e Administração Fiscal da OCDE: “A sustentabilidade das finanças públicas da generalidade das econo­mias mundiais vai depender mais da capacidade que cada país revelar para gerar crescimento.” É o mesmo que pensa Mario Draghi, que quer aplicar os milhões que o Estado italiano vai injectar na economia não para defender o que estava mas sobretudo para ajudar o que vai ter futuro após a pandemia, relançando mais rapidamente o crescimento e a inovação.

Posta nestes termos, a questão é saber se é mais importante acorrer ao Estado ou à economia. Se a retoma se conseguirá por via do aumento da despesa pública sustentada pelo aumento de impostos sobre a economia ou por via do crescimento, alavancado no consumo interno, no aumento de salários no sector privado, na canalização das poupanças das famílias que as fizeram. Ou se tudo isso vai ser capturado pela insaciável fome de impostos do Estado. Sem querer incomodar o eterno sr. Lafter, chamo a atenção apenas para dois números: 34,8% do PIB — é em quanto está o nível da carga fiscal entre nós, o mais alto desde que há registos; e 31,5% — o valor médio de tributação das empresas em Portugal, dos mais altos da Europa a 27. Há quem ache que ainda é pouco e que há margem para subir a carga sobre as empresas, por exemplo. Mas depois escandalizam-se porque as empresas pagam salários baixos — da mesma forma que se escandalizam porque uma empresa possa ter lucros numa situação de crise, como se as empresas existissem apenas para facturar o suficiente para pagarem salá­rios e impostos e não para reinvestirem lucros e remunerarem os sócios.

Estamos perante uma escolha clara: fazer diferente ou fazer mais do mesmo.

2Se, em pleno século XXI e numa democracia estabelecida, grupos de homens feitos, pais de família e cidadãos influentes se juntam em caves escuras, vestem-se com aventais e fazem cerimónias “ocultas” com espadas, triângulos, chicotes, compassos, trocam juras e votos de obediência e solidariedade uns aos outros, e é tudo secreto e impenetrável, das duas uma: ou não é tão inofensivo como juram ou, se o é, têm de chamar urgentemente o psicanalista.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

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