Caçadores de cabeças e sugadouros de recursos públicos
Para ter prédios de renda acessível no centro da cidade, é necessário a câmara de Lisboa investir como se estivesse a construir imobiliário de luxo?
João Miguel Tavares
30 de Março de 2021
Comecemos por uma boa notícia: hoje em dia dá um bocadinho mais de trabalho assaltar o erário público e manipular o Estado. Há dez ou vinte anos, o dinheiro ia directamente para o bolso de alguém, em troca de favores evidentes. As pessoas mais sofisticadas usavam testas-de-ferro; as medianamente sofisticadas usavam membros da família; as nada sofisticadas recebiam malas com dinheiro. Hoje, felizmente, há um certo cuidado em disfarçar gastos estapafúrdios, embrulhando-os em práticas meritórias. Dois exemplos.
Exemplo 1: Avenida da República, 106, Lisboa. Fixem o endereço: é um prédio amarelinho muito bonito, de quatro andares, mesmo a chegar a Entrecampos. Só dá para quatro famílias – um andar por piso. Um luxo. Está a ser reabilitado pela Câmara de Lisboa, e daqui a uns tempos convinha ficarmos a conhecer os seus inquilinos: se lisboetas anónimos à procura de um T4 com rendas acessíveis – “casas que as pessoas podem pagar”, como está escrito na rede do prédio em obras –; se o primo da tia de um assessor do presidente da câmara, dado estas ocasiões serem muito atreitas a coincidências miraculosas.
Na segunda-feira, o Observador deu conta de que o conjunto de prédios adquiridos pela câmara à Segurança Social ia custar à autarquia entre 200 a 400 mil euros por apartamento, após serem reabilitados e colocados ao serviço do programa de renda acessível. Nessa lista de prédios lá estava o amarelinho de Entrecampos. Foi comprado por 1,1 milhões de euros e levou mais 400 mil para reabilitar. Resultado: cada um dos quatro apartamentos vai custar à câmara a módica quantia de 375 mil euros.
Vamos por um momento fingir que o Tribunal de Contas não disse que a compra daqueles prédios tinha sido péssima para a Segurança Social, que podia ter recebido muito mais em leilão. Vamos também fingir que a própria câmara não andou a alienar património na mesma zona há meia-dúzia de anos, vendendo dois prédios e vários lotes de terreno em hasta pública por não os considerar estratégicos, para agora vir dizer – justificando os preços absurdos que está a pagar – que “a reabilitação é sempre mais cara do que a construção”. Pergunto: para ter prédios de renda acessível no centro da cidade é necessário a Câmara de Lisboa investir como se estivesse a construir imobiliário de luxo?
Exemplo 2: Avenida Marechal Gomes da Costa, 37, Lisboa. É onde fica a sede da RTP. O mandato da administração chegou ao fim. Para assessorar o Conselho Geral Independente na escolha da nova administração, a RTP tomou esta boa iniciativa: contratar a empresa Boyden Portugal, especialista em head hunting, para auxiliar no processo de recrutamento e selecção dos candidatos. Bravo. Óptima ideia. Muito melhor do que ser o gabinete de um ministro a soprar nomes.
Só que o resultado foi este: para presidente do conselho de administração da RTP foi escolhido o presidente da Lusa Nicolau Santos, e para futuro vogal do conselho de administração da RTP foi escolhido o actual vogal do conselho de administração da RTP Hugo Figueiredo, que por acaso foi um dos responsáveis pela contratação da Boyden para assessorar o processo por 70 mil euros (mais IVA). O head hunting é uma boa prática empresarial, sim senhor. Mas, em primeiro lugar, convém prestar atenção aos conflitos de interesse; e, em segundo, se a ideia era caçar as cabeças de Nicolau Santos e de Hugo Figueiredo, eu farejava-as perfeitamente por 70 euros, sem sequer me levantar do sofá.
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