Em vez de se flexibilizar o acesso do Sistema Eléctrico português à rede europeia, tivemos muito recentemente em consulta pública uma “Estratégia para o Hidrogénio”.
As empresas produtoras de bens transaccionáveis, que salvaram em 2012 a economia portuguesa da “espiral recessiva “e conseguiram equilibrar as contas externas portuguesas através do aumento das exportações para 45% do PIB, têm no custo da electricidade um factor que muito condiciona a respectiva competitividade.
Agora que enfrentamos de novo uma crise económica gravíssima, e se aguarda a próxima aprovação de vultuosos Fundos Europeus destinados a apoiar a nossa estrutura produtiva, convém recordar estes factos para que se possa salvaguardar a competitividade da base energética da economia e do emprego em Portugal.
A partir de 2005 o Sistema Eléctrico português passou a basear-se em potências intermitentes, a eólica e a solar, tendo o Governo promovido então a respectiva” rentabilização” atribuindo-lhe o benefício das FIT – Feed In Tariffs.
A partir daí as empresas de bens transaccionáveis foram obrigadas a pagar nas TAR – Tarifas de Acesso à Rede e nas CIEG – Custos de Interesse Económico Geral todos os custos necessários para “encaixar” estas intermitências no sistema. E para além disso, pesa ainda sobre os consumidores de electricidade a Dívida Tarifária, que ascende ainda a 3.000 milhões de euros.
Como a intermitência eólica e solar não se elimina por Decreto, foram anunciadas ao longo dos últimos 15 anos várias “soluções milagrosas” para a “armazenagem barata de electricidade”.
Primeiro, recorreu-se às “barragens reversíveis”, que estão longe de ser baratas e têm óbvias limitações derivada dos ciclos de pluviosidade.
Depois anunciaram-se “novas baterias” capazes de armazenar a baixo custo milhares de MWh. Mas os inegáveis avanços tecnológicos ficaram muito longe do eldorado prometido, e as novas minas de lítio, que fazem parte deste processo, ameaçam ficar apenas no papel.
Clemente Pedro Nunes
Professor Catedrático do Instituto Superior Técnico
Em vez de se flexibilizar o acesso do Sistema Eléctrico português à rede europeia com o reforço das interligações da Península Ibérica com França, conforme decidido na Cimeira de Lisboa em Julho de 2018, entre o Presidente Macron de França e os Primeiros Ministros de Espanha e de Portugal, tivemos muito recentemente em consulta pública uma “Estratégia para o Hidrogénio”.
Num país que dispõe já de 7.000 MW de potências intermitentes com FIT para um consumo de apenas 3.900 MW no vazio, o hidrogénio é a nova desculpa para se instalarem mais 2.000 MW de novas potências solares intermitentes com FIT. É o mundo ao contrário!
Em vez de se estancar o problema não atribuindo mais FIT a potências intermitentes, e fazendo com que o mercado se ajuste às disponibilidades de eletricidade aos melhores preços, promovem-se ainda mais potencias intermitentes com FIT para se resolver o problema das FIT através do hidrogénio.
O hidrogénio é a mais leve das moléculas e não existe na natureza, pelo que tem de ser “fabricada“.
Mesmo não estando disponível nenhuma tecnologia competitiva para produzir hidrogénio através da eletrólise da água, o documento que esteve em consulta pública aponta desde já para um investimento de 7.000 milhões de euros (!!!), e numa primeira fase este hidrogénio destinar-se-á exclusivamente ao mercado interno.
Nesse documento, os dados tecnológicos são extremamente vagos, e os dados económicos limitam-se a referir que o projeto não é rentável pelo menos até 2030, e que precisa por isso de subsídios.
Mas “havendo metas obrigatórias de consumo de hidrogénio”, os consumidores irão ser obrigados a pagar o que for preciso por uma tecnologia que se desconhece a fim de todos os promotores envolvidos poderem ter lucro.
Pode espantar o leitor, mas é uma técnica que já deu provas de funcionar.
Em 2008, o Governo Sócrates decretou que os promotores solares que investiram em mais de 500 MW de potências solares tivessem uma FIT de 400 Euros/MWh durante 20 anos.
E nós continuamos hoje a pagar esse preço, embora estejam já disponíveis novas tecnologias que permitem um preço 20 vezes mais baixo!
Já nessa altura se confundiram protótipos de desenvolvimento tecnológico, que não deveriam ter mais de 1 MW, com parques solares megalómanos de mais de 100 MW cada, baseados em tecnologias incipientes à custa dos consumidores.
Como agora se pretende fazer com o hidrogénio.
Ao “embandeirar em arco” com o hidrogénio, e propondo que o país “derreta” 7.000 milhões de euros em projetos megalómanos sem bases tecnológicas, o documento da EN-H2 revela uma completa omissão relativamente à análise estratégica das inovações tecnológicas que visam resolver o problema da intermitência elétrica.
A aposta em 2005 num sistema elétrico baseado em potências intermitentes, fez desde então desperdiçar à economia portuguesa mais de 21.000 milhões de euros pelo que a solução terá obrigatoriamente que passar pela redução dos custos criados aos consumidores pelas FIT concedidas a potencias intermitentes. Nunca por os aumentar!
Até há menos de um ano o Governo punha todas as fichas políticas nas inovações tecnológicas ligadas às baterias, e por isso se viu envolvido em controvérsias ambientais ligadas à exploração de novas minas de lítio e chegou a anunciar novos “projetos de milhares de milhões de euros para que Portugal liderasse o mundo nas novas baterias de lítio”. Só que, agora, a EN-H2 é completamente omissa na vertente das “novas baterias”.
Será que o secretário de Estado João Galamba terá entretanto concluído que se tratava duma quimera?
Ao propor duma forma genérica a utilização deste “Hidrogénio Verde” tanto para queima/produção de eletricidade como também para utilização em células de combustível/veículos rodoviários, o documento está a prejudicar ainda mais uma análise estratégica séria.
Então os veículos elétricos, e o sistema de distribuição de eletricidade para o respetivo carregamento, vão concorrer diretamente com veículos a hidrogénio e com um delirante sistema de distribuição e carregamento de hidrogénio puro espalhado pelo país?
E vai fazer isso em regime de mercado, deixando apenas que os consumidores escolham a alternativa mais barata, confortável e segura, de entre todas as disponíveis?
Ou vai, como já se fez com as FIT das potências intermitentes em 2008, decretar que os consumidores vão ter de pagar em simultâneo duas aventuras economicamente ruinosas que vão competir entre si, quando pesa ainda sobre eles uma Dívida Tarifária de 3.000 milhões de euros?
Todas as empresas que investiram centenas de milhões de euros na mobilidade elétrica, a começar pela Efacec, como ficam neste novo cenário que agora se anuncia, tendo que enfrentar um setor concorrente que beneficia de subsídios de milhares de milhões de euros?
A gravidade da incoerência da análise estratégica das inovações tecnológicas, destinadas a ultrapassar as consequências da intermitência elétrica, que a EN-H2 revela, é de facto confrangedora.
Em termos dos critérios de utilização de milhares de milhões de euros de novos Fundos Europeus, a primeira coisa que se tem que exigir ao governo é uma coerência da análise estratégica das questões tecnológicas em jogo, para que a partir daí se possam equacionar de forma fundamentada as várias opções possíveis, e que estes Fundos sejam utilizados prioritariamente para reforçar a competitividade das empresas de bens transacionáveis.
Só o reforço da competitividade das empresas de bens transacionáveis pode garantir empregos e fazer com que Portugal retome um ritmo de crescimento robusto como não acontece há 20 anos, em que foi sendo sucessivamente ultrapassado no âmbito da União Europeia por quase todos os países do Centro da Europa, que anteriormente pertenceram ao bloco soviético.
https://eco.sapo.pt/opiniao/as-potencias-eletricas-intermitentes-e-a-quimera-do-hidrogenio/
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