António Luís Teixeira Guerra Nunes Mexia. Foi demitido no arranque da carreira, mas chegou a gestor mais bem pago do país.
Antes da EDP Mexia já dava nas vistas. Fez a ponte para o projecto da Autoeuropa, mas acabou demitido. Na Galp, estava em vias de perder o cargo, quando Santana o chamou. Parte 1 de um perfil essencial
O nome de António Mexia é praticamente sinónimo de EDP depois de 14 anos de liderança, divididos por cinco mandatos, que atravessaram cinco governos, um resgate financeiro a Portugal, uma mudança de accionista de referência, uma comissão parlamentar de inquérito e uma OPA (Oferta Pública de Aquisição) falhada. A suspensão de funções de presidente executivo na maior empresa portuguesa, determinada por ordem judicial no quadro do inquérito-crime ao caso EDP, veio pôr um travão a uma carreira única na administração de empresas portuguesas. O presidente da EDP e o presidente da EDP Renováveis, João Manso Neto, enfrentam suspeitas de corrupção activa e participação económica em negócio.
Mas até chegar a ser o gestor mais bem pago de Portugal — em 2019 recebeu uma remuneração bruta de 1 milhão de euros, mais 325 mil euros de bónus pelos resultados de 2018 e mais 826,4 mil euros de prémios atribuídos pelo ano de 2016 e só agora pagos — há um António Mexia com uma carreira de sucessos e também desaires. Ao longo desses anos, ganhou fãs e conquistou aliados — e fez inimigos.
A carreira de António Mexia no mundo dos negócios arrancou no final da década de 198o, a protagonizar os contactos iniciais, e decisivos, para captar o maior investimento industrial que Portugal viria a ter no ciclo de pós-adesão à então Comunidade Económica Europeia. Foi ele quem enviou a carta ao responsável do construtor americano Ford em que afirmava a intenção do Governo português de conceder um pacote elevado de incentivos financeiros para trazer a fábrica de automóveis que a Ford/Volkswagen queria instalar na Europa — e que hoje todos conhecem como Autoeuropa. Havia vários países na corrida e o número que Mexia pôs em cima da mesa era suficientemente elevado para chamar a atenção dos construtores e colocar Portugal em bom lugar nesta corrida.
Entre 1988 e 1990, António Mexia começou a chamar a atenção no mundo dos negócios. Quem trabalhou com ele — ou perto dele — descreve uma pessoa brilhante, com iniciativa e capacidade de afirmação, com ideias inovadoras e capacidade de as executar, sem medo de decidir. Sabia escolher muito bem equipas e mostrou logo capacidade de liderança. Tudo isso fez com que fosse convidado para cargos de responsabilidade e direcção logo no início da carreira. Talvez essa reduzida experiência como subordinado ajude a explicar porque também despertou cedo os primeiros ressentimentos e inimizades, algumas das quais o iriam acompanhar ao longo de muitos anos.
A conquista da Autoeuropa e o despedimento público
Nos anos 80, conquistar aquela que viria a ser a futura Autoeuropa era uma missão prioritária para o Governo do PSD, liderado por Cavaco Silva. Mas desde logo foram visíveis as tensões internas entre os decisores políticos e as suas equipas — cada um deles lutava para aparecer associado aquele grande projecto.
Quem parecia estar a ganhar esta corrida era o lado do ministro do Comércio, Joaquim Ferreira do Amaral, que tinha como assessor João Líbano Monteiro (que viria a fundar uma das mais importantes agências de comunicação do país) e António Mexia no ICEP (Instituto do Comércio Externo de Portugal, hoje AICEP). Do outro lado estava o Ministério da Indústria, liderado por Luís Mira Amaral, cujo papel na atracção do projecto também era importante, mas que não conseguia o mesmo protagonismo na opinião pública que resultava das declarações de António Mexia aos jornais. Anos mais tarde, quando se voltaram a reencontrar no sector da energia, Mira Amaral, esteve quase sempre no lado oposto às estratégias defendidas por Mexia.
Mexia tinha chegado ao gabinete do secretário de Estado do Comércio, Miguel Horta e Costa, em 1986, aos 29 anos, por sugestão de António Borges, que o conhecia do meio académico. A carreira de Mexia como professor de Economia começara na Suíça, onde se licenciou na Universidade de Genebra, e prosseguiu em Portugal, na Nova e na Católica.
Após dois anos de trabalho no seu gabinete, Miguel Horta e Costa achou que António Mexia era uma boa aposta para o ICEP, a agência que tinha a missão de captar investimento estrangeiro, e juntou-o a um quadro do Estado de reconhecida competência, António Alfaiate, que tinha sido director-geral do Comércio.
Mas o que no papel pareciam dois perfis complementares veio a revelar-se um desastre. Não havia química entre os dois, tinham formas de pensar diferentes, a relação profissional e pessoal era péssima. O mal-estar era profundo dentro do ICEP, onde o presidente António Alfaiate se sentia permanentemente desautorizado. António Mexia não lhe respondia em termos hierárquicos, mas sim ao secretário de Estado e ao ministro — e deixava o presidente às escuras sobre o estado das negociações com os americanos da Ford.
Quando Joaquim Ferreira do Amaral deixou a pasta do Comércio para assumir as Obras Públicas, o novo ministro, Fernando Faria de Oliveira, foi confrontado com uma situação insustentável na relação entre os principais executivos do ICEP. Com o maior projecto internacional em jogo, sentiu que precisava de resolver o impasse. O secretário de Estado que ficou com a tutela do Comércio, Neto da Silva, ainda fez uma tentativa para clarificar as competências dos gestores desavindos. Mas a única coisa em que os dois concordavam era que nenhum deles queria trabalhar com o outro e isso selou o seu destino. A solução foi despedir toda a administração do ICEP, uma demissão que até foi pré-anunciada nos jornais.
Resolvido o problema, foram nomeados para a agência Pedro Almeida e Athaide Marques, que mais tarde viria a assumir a presidência. Será esta equipa, com a tutela de Neto da Silva e do ministro Faria de Oliveira, que irá fazer aterrar com sucesso a fábrica de Palmela, um investimento inicial de 430 milhões de contos (qualquer coisa como 2150 milhões de euros).
O contracto foi assinado meses depois da mudança de protagonistas, em Junho de 1991. António Mexia já não apareceu na fotografia, mas o seu nome ficou ligado à história de sucesso que trouxe a fábrica da Autoeuropa para Portugal, como aliás recorda Luís Palma Féria na sua história do sector automóvel em Portugal. Mexia teve a visão chamar a atenção dos investidores com a promessa de grandes apoios financeiros — ainda que depois tenha sido necessário renegociar em baixa os valores referenciados.
A demissão pública não afectou a carreira de António Mexia, que logo no mesmo ano, em 1990, entrou para a administração do Banco Espírito Santo de Investimento, na altura ESSI. A família Espírito Santo estava já na pole position para recuperar a jóia do grupo, o BESCL (Banco Espírito Santo) numa privatização feita à sua medida. Ricardo Salgado ainda não era o presidente todo-poderoso, mas já tinha grande influência.
É no ESSI que António Mexia se cruza com outro jovem promissor gestor, António Carrapatoso (hoje presidente do conselho de administração do Observador). A convivência é curta porque Carrapatoso começa a trabalhar no projecto da Telecel, que iria explorar a segunda rede móvel em Portugal. Depois de montado o projecto e encontrados os investidores — o grupo Espírito Santo seria um deles, tal como Américo Amorim — o jovem gestor do ESSI dá o salto para presidente da Telecel Vodafone, onde ficaria até 2014.
Do GES ao gás, com Pina Moura e o cunhado de Guterres
Não é claro como Mexia arranja o emprego no ESSI, onde o pai também trabalhou. Mas, por essa altura, já conhecia António Moura Santos, um empresário e intermediário de grandes negócios que iam desde as compras de carvão para a EDP (ainda uma empresa pública) a operações montadas pelo banco de investimento do Grupo Espírito Santo.
Moura Santos terá desempenhado um papel determinante na viragem da carreira de António Mexia, anos mais tarde. Quando António Guterres chega a primeiro-ministro, Moura Santos passou a ser conhecido nos bastidores como “o cunhado de Guterres”. Parecia estar em todos os grandes negócios, sempre na sombra, nunca como protagonista mas sempre como intermediário — o homem que apresenta alguém a alguém e faz o negócio acontecer, ganhando alguma coisa com isso (seja dinheiro ou influência).
Neste caso, António Moura Santos terá apresentado António Mexia a Joaquim Pina Moura. O então ministro da Economia teria conhecido o irmão da primeira mulher do primeiro-ministro em casa deste, depois de ter conquistado a confiança de Guterres nos anos em que foi seu secretário de Estado Adjunto.
A apresentação dos dois, num jantar em casa de Moura Santos, tinha como objectivo indicar um dos pivôs da reorganização do sector energético que o então ministro da Economia ia promover, de encontro às propostas apresentadas pelos grandes grupos portugueses que eram accionistas da Petrogal, e cuja liderança estava nas mãos do Grupo Espírito Santo e de Ricardo Salgado.
De acordo com um perfil publicado em 2017 pela revista do Público, Moura Santos terá mais do que uma intervenção na carreira de gestor de António Mexia. É certo que os dois se conheciam e tinham trabalhado em pelo menos um projecto comum quando o gestor estava na banca de investimento: a construção de centrais de cogeração no Brasil, uma operação que juntou Moura Santos, a Partex e a EDP. A energia viria a marcar o futuro de António Mexia.
Após anos de prejuízos e sem conseguir crescer fora de Portugal, a Petrogal era à data o patinho feio das grandes empresas industriais que o Estado queria vender. Os privados nacionais — GES, Monteiro de Barros, Amorim — estavam fartos de ter capital empatado numa empresa que foi várias vezes ao mercado, mas que ninguém parecia querer. Foram bater à porta de Pina Moura com um projecto de juntar o gás natural ao petróleo. O mercado de gás natural estava em pleno crescimento, alimentado por investimentos de muitos milhões de euros, uma expansão que se fazia à custa do petróleo. O Estado controlava duas empresas: a Gás de Portugal que tinha a distribuição aos clientes finais, e a Transgás que construía a rede e tinha os contractos de abastecimento. Foi por proposta dos privados da Petrogal que nasceu a Galp, uma holding que juntou o petróleo e o gás, dois braços do mesmo grupo. E, para dirigir o braço de maior potencial — o gás — foi escolhido António Mexia.
Das guerras internas na Galp à liderança
O gestor chega à liderança das empresas de gás em 1998, tinha 41 anos, onde irá trabalhar na criação da holding da energia que foi vendida por um bom preço à petrolífera italiana Eni. O negócio permitiu aos privados nacionais encaixar uma mais-valia significativa na venda da sua participação e, como bónus, tiveram direito a uma isenção do imposto sobre os ganhos extraordinários. Tinha compensado juntar o gás ao petróleo.
Na liderança da Petrogal estava o carismático Manuel Ferreira de Oliveira, que tinha regressado a Portugal depois de uma carreira internacional bem sucedida. Rapidamente Ferreira de Oliveira entra em choque com o novo projeto para o grupo Galp que dava prioridade ao gás natural, em prejuízo do petróleo, na estratégia e nos recursos. Demite-se com avisos de que a italiana Eni iria tomar conta da Galp.
À frente da holding do gás natural estava outro expatriado regressado, Bandeira Vieira, que tinha feito carreira na petrolífera belga Fina. Bandeira Vieira vai manter o projeto de Ferreira de Oliveira de desenvolver a área de exploração e produção de petróleo, com concessões em Angola e também no Brasil. Mas as tensões na holding de energia não terminam com a saída de Ferreira de Oliveira — também há conflitos entre o presidente da Galp e o gestor do gás.
Saem notícias a dizer que Bandeira Vieira falou com o ministro Pina Moura pedir a demissão de António Mexia. Mas quem acaba por sair é ele, numa demissão nunca explicada. Bandeira Vieira deu uma entrevista final ao Diário Económico a contar a sua versão, mas foi ameaçado com a perda da indemnização e as suas declarações nunca foram publicadas. Pelo caminho ficou também Jorge Santos Silva, um gestor da Shell que tinha substituído Ferreira de Oliveira na Petrogal e feito um emagrecimento da área dos combustíveis.
A saída dos dois gestores deixa aberto o caminho para António Mexia assumir sozinho a liderança executiva da Galp Energia. Com Rui Vilar a ocupar o cargo de chairman, Mexia chega a CEO de uma das maiores empresas portuguesas em 2001, ainda no Governo de António Guterres e com Pina Moura na tutela.
Aos 44 anos tem um percurso invejável, mas foi fazendo inimigos pelo caminho. Um dos mais visíveis publicamente terá sido Ferreira de Oliveira. Os dois homens foram vice-presidentes no início da Galp e trabalharam pouco tempo juntos, mas foi suficiente para os colaboradores de ambos sentirem o choque de personalidades, dizem várias fontes. Mexia era um homem da banca e do mundo, Ferreira de Oliveira era um engenheiro e um homem do petróleo.
A saída de Ferreira de Oliveira e a recentragem da Galp do petróleo para o gás natural não caiu bem dentro de algumas estruturas da Petrogal que se consideravam prejudicadas no acesso a cargos de chefia por pessoas contratadas ou promovidas por António Mexia. Por outro lado, o gestor confrontava-se com o que achava ser uma estrutura de “empresa pública”, com muitos cargos e assessorias que não faziam sentido. Uma das pessoas afastadas pelo gestor, mas neste caso na Gás de Portugal, foi Henrique Gomes, com quem António Mexia veio a confrontar-se já na EDP nos primeiros meses da chegada da troika a Portugal.
Se é certo que fez inimigos, foi também na Galp que encontrou, e em alguns casos contratou, os quadros que o iriam acompanhar nas etapas seguintes da sua carreira. Foi igualmente quando estava na empresa que fez aliados que iriam ser preciosos mais tarde. Um dos principais foi Pedro Santana Lopes, que o gestor terá conhecido quando deu uma conferência sobre energia na Figueira da Foz, município que era então dirigido pelo social-democrata.
Quase todos os que o conhecem — mesmo os que não gostam dele — destacam a inteligência, a visão, o pragmatismo e a capacidade de comunicação e de estabelecer relações com quem o rodeia. Mas pode passar nos corredores sem dizer bom dia, mesmo que também seja capaz de mostrar empatia pessoal. E é muito focado nas suas prioridades: consegue ouvir e processar o que lhe dizem mesmo quando não concorda. E às vezes (poucas) até o conseguem fazer mudar de ideias.
Também há quem lhe aponte um certo calculismo nas relações e a preocupação em cultivar as ligações certas com o poder, seja económico, político ou accionista, para ele próprio se manter no poder, um traço que se terá reforçado depois da experiência que viveu na Galp com a mudança política que se dá em 2002.
Muda o Governo, muda a estratégia. Fica o gestor, mas em equilíbrio precário
Foi na presidência da Galp que António Mexia enfrentou as dificuldades da falta de sintonia política. Depois de ter mantido uma excelente relação com Pina Moura, alinhados na mesma estratégia, eis que António Guterres cai e chega ao poder Durão Barroso. Teoricamente mais próximo de um Governo do PSD, o então presidente da Galp tinha uma ótima relação com um dos mais importantes barões do partido, Pedro Santana Lopes — mas Santana não estava no Governo.
A pasta da Economia foi entregue a Carlos Tavares, que estava preocupado com as duas maiores empresas da energia onde o Estado era acionista. A Galp estava em risco de cair nas mãos da Eni; e a EDP estava em conflito com a ex-parceira Iberdrola. A elétrica espanhola era muito maior e mostrava um grande apetite por Portugal, a EDP precisava de ganhar músculo para lhe fazer frente.
Homem da banca, Tavares chamou outro ex-banqueiro. João Talone (accionista do Observador) estava livre para estudar a reorganização do setor depois de sair do BCP. E propôs desfazer aquilo que Pina Moura (e António Mexia) tinham feito: obrigar a Galp a vender o gás natural à EDP e à Eni, abandonando este negócio, ao mesmo tempo que se livrava da incómoda empresa italiana no seu capital. Carlos Tavares não só aplaudiu a solução como convidou o seu promotor a executá-la, nomeando João Talone presidente da EDP.
Foram anos duros para António Mexia, apesar do apoio de outro social-democrata, Joaquim Ferreira do Amaral que substituiu Rui Vilar na presidência não executiva da Galp. Mexia estava do lado errado das opções políticas pela primeira vez na sua carreira.
O distanciamento face ao poder político era visível até na distribuição de lugares numa viagem oficial que Durão Barroso fez a Angola em 2003. Num avião recheado de empresários e gestores, a Galp era à data um investidor fundamental no país. O presidente da EDP, João Talone, seguia na classe executiva perto do primeiro-ministro e dos homens da banca. Já a equipa de gestores da Galp seguia mais atrás, a meio do avião, apanhando com o fumo das últimas cadeiras. António Mexia evitava fumar porque tinha um problema de asma, mas não resistia a um cigarro pontual, sobretudo depois de ir trabalhar para a EDP.
A cadeira ao lado de Durão Barroso estava vazia, mas ia sendo ocupada por pessoas que queriam ter uma conversa mais particular com o primeiro-ministro. Uma delas foi Ferreira do Amaral — o chairman da Galp era o pivô das relações institucionais com um Governo hostil aos interesses dos então gestores da empresa.
O que terá começado por uma estratégia divergente, rapidamente evoluiu para um conflito de natureza mais pessoal, ou pelo menos de estilos. Mexia estava habituado a gerir sem interferência das tutelas, mas Carlos Tavares queria deixar claro que quem mandava era ele, porque o Estado e as empresas do Estado tinham mais capital na Galp.
O ministro não gostou de várias atitudes dos gestores da empresa e chegou a contrariá-las em público. Quando Ferreira do Amaral confirmou a intenção de vender a produção de petróleo em Angola, que estava a dar os primeiros frutos, o ministro da Economia corrigiu-o, em declarações aos jornalistas nas quais garantiu que a decisão cabia ao acionista Estado. Esta operação tinha sido defendida por António Mexia como forma de canalizar recursos financeiros do petróleo, que exigia muito investimento, para o gás, mas o então Presidente da República Jorge Sampaio interveio e travou a transação.
Outra fonte de conflito foi a entrada em Bolsa da Galp, que iria conduzir a uma redução do poder do Estado. Numa viagem a Madrid, António Mexia falou aos jornalistas num calendário para a operação e, quando as notícias chegaram a Lisboa, Carlos Tavares ficou furioso e telefonou logo ao presidente da Galp. A perturbação foi tal que Mexia e alguns membros da comitiva perderam o avião de regresso a Lisboa. No dia seguinte, o ministro da Economia repetiu em público o que terá dito em privado: quem decide a privatização da Galp é o Governo.
A refinaria de Matosinhos que Mexia queria fechar, por não ser um ativo muito rentável, foi outro ponto de frição com o Governo. As relações atingiram o ponto mais baixo quando o ministro da Economia lançou um concurso para vender a Galp sem o gás natural.
Esta foi uma das operações mais disputadas de uma empresa do Estado, com três fortíssimos concorrentes. Um deles era o fundo americano Carlyle, associado a alguns dos antigos acionistas portugueses da Petrogal, incluindo o Grupo Espírito Santo, e que seria o favorito de António Mexia. Se ganhasse, este ficaria no cargo, de acordo com a imprensa da altura. Mas quem venceu foi um consórcio formado pelo BPI e empresários do Norte, liderado por Ferreira de Oliveira, o antigo rival da Petrogal. Com este desfecho — a operação não viria a concretizar-se porque o negócio foi chumbado pela Comissão Europeia de Durão Barroso, mas Ferreira de Oliveira chegou à presidência da Galp depois de Américo Amorim se tornar o maior acionista — , só restava a António Mexia abandonar a presidência da Galp. O que se seguiu foi totalmente inesperado.
Presidente da Galp em risco chega a ministro
Em junho de 2004, Portugal estava absorvido pelo Euro — do qual a Galp era uma das patrocinadoras e o seu presidente executivo andava a distribuir camisolas da seleção — quando Durão Barroso abandona o Governo para presidir à Comissão Europeia. Pedro Santana Lopes, que era então presidente da Câmara de Lisboa, sobe a primeiro-ministro, sem eleições. E leva consigo António Mexia para um inesperado cargo de ministro das Obras Públicas. Será a estreia política do gestor e, apesar de ser um Governo curto e de grande turbulência, Mexia não se dá mal no cargo. Um dos seus grandes trunfos é a amizade e grande empatia que tem com Santana Lopes. Mexia fora seu apoiante desde os tempos do agora primeiro-ministro como autarca na Figueira da Foz.
Outro aliado de Mexia foi Álvaro Barreto, ministro Adjunto e da Economia, que apoiou o colega das Obras Públicas quando este decidiu segurar Fernando Pinto na TAP. A equipa de gestores brasileiros, que à data era muito respeitada pelo trabalho feito na companhia, estava de saída para dar lugar a Cardoso e Cunha, um peso pesado do PSD. Assim que chegou a ministro, António Mexia travou esta nomeação e manteve a administração da TAP. Cardoso e Cunha e o colega de Governo que tinha a Energia (Sampaio Nunes) viriam a integrar o grupo de personalidades que apresentou uma queixa na Comissão Europeia contra o negócio feito entre o Estado e a EDP liderada já por Mexia sobre as barragens.
Nos oito meses em que esteve no cargo, Mexia foi sobretudo um decisor com as costas quentes. Tinha a reputação de competência num Executivo com tinha muitos erros de casting, contava com o apoio do primeiro-ministro e uma comunicação eficaz. Ao seu lado, estava como secretário de Estado, estava Jorge Borrego, um quadro da energia que António Mexia tinha levado para a Gás de Portugal e mais tarde para a Galp.
Mexia decidiu praticamente tudo o que havia para decidir e estava pendente no Ministério das Obras Públicas. Afinal, um dos lemas que assenta no seu estilo de gestão, de acordo com um antigo colaborador, é o de que vale mais uma decisão imperfeita no tempo certo do que uma boa decisão fora de prazo.
O ministro apresentou uma solução para a cobrança de portagens nas Scut (com uma tecnologia que viria ser implementada anos mais tarde por um governo socialista); indexou o preço dos passes sociais à evolução do custo dos combustíveis; apresentou um plano para sanear as empresas públicas de transporte que introduzia prémios e critérios de gestão por metas; lançou a ideia singular para uma expansão do Metro de Lisboa que serviria os bairros históricos da capital.
Um TGV e duas pontes em véspera de eleições
Já nos últimos dias como ministro, e com eleições marcadas, não resiste a uma tentação comum aos políticos e anunciou o projeto para a linha de TGV entre Lisboa e Porto (em 2003, o Governo de Durão Barroso tinha anunciado quatro ligações de alta velocidade, três com Espanha e uma interna). O traçado combinava troços novos e partes modernizadas da Linha do Norte. Era um investimento de 3,8 mil milhões de euros para ligar as duas cidades em 1h35 minutos até 2012 e que envolvia ainda a construção de uma nova travessia (ferroviária) sobre o Tejo, que seria provavelmente no eixo Chelas/Barreiro. Antes foi estudada, e afastada, a possibilidade de o TGV entrar pela Ponte 25 de Abril, porque limitaria um serviço ferroviário de alta prestação pretendido.
Mas não ficou por aqui. Com base num parecer do Conselho de Obras Públicas, António Mexia anunciou ainda a construção de uma ponte (ou túnel) rodoviária entre Algés e Trafaria, uma velha aspiração da concessionária Lusoponte que seria financiada por fundos privados e receitas de portagem.
O tempo não permitiu avaliar se seriam decisões fundamentadas, ou sequer executáveis (como o metro ligeiro nas colinas de Lisboa). José Pacheco Pereira, no programa da TVI24 “Circulatura do Quadrado”, recordou esta semana o anúncio onde Mexia propôs uma nova travessia sobre o Tejo como sendo “completamente impreparado”: “Não sabia se era por túnel, se era por ponte, onde é que começava e onde acabava. Essa conferência, dada supostamente como ministro das Obras Públicas, foi uma farsa eleitoral que desqualifica quem a faz”.
Quando o confrontaram com o timing político destas decisões, o então ministro argumentou que seria “insustentável” adiar a tomada de decisões sobre a gestão da mobilidade das pessoas”, sobretudo quando são projetos que demoram anos a concretizar-se.
Muitas destas decisões foram revertidas pelo PS em 2005. Mas algumas ficaram, como a escolha de António Ramalho, gestor que também vinha da banca e estava a trabalhar para a rede de alta velocidade, para a presidência da CP, as negociações que levaram a TAP a comprar a Portugália ao Grupo Espírito Santo, e o projeto da ponte Chelas/Barreiro ligado ao TGV que acabou por não sair do papel.
A passagem de Mexia pelo Governo ficou marcada por uma decisão dramática tomada em poucas horas numa sexta-feira à noite: o encerramento do túnel ferroviário do Rossio, por onde chegava a maioria dos comboios da Linha de Sintra. Foi a resposta a um relatório do Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC) que alertava para uma deficiência estrutural no túnel com risco para a segurança. O problema era conhecido e já há muitos anos que a gestora da rede queria fazer obras neste túnel, mas não se entendia com a CP por causa da perturbação nos horários. A situação ter-se-á agravado, segundo a Refer.
A proposta de encerrar o túnel recebeu luz verde do secretário de Estado, Jorge Borrego, e também do ministro António Mexia, depois de a comunicar a Santana Lopes. O primeiro-ministro ainda terá perguntado se seria possível esperar por segunda-feira para reorganizar a oferta de comboios, mas no Ministério ninguém quis arriscar: a Ponte de Entre-os-Rios tinha caído apenas quatro anos antes.
Apesar de admitir que “não havia nada que impedisse que o túnel continuasse a laborar”, o então ministro sublinhou que havia um risco numa zona de 40 metros. “Seria necessário intervir. Porque deveríamos adiar a intervenção se era necessária?” Depois de uma madrugada a refazer os horários com as empresas de transportes, no sábado, 23 de outubro de 2004, o túnel fechou. Só reabriu mais de três anos depois, com uma grande derrapagem nos custos e no calendário previstos para a obra.
Quando é aprovado em Conselho de Ministros o ajuste direto desta obra por 50 milhões de euros, dada a “extrema urgência”, o Governo de Santana Lopes já tinha os dias contados. A demissão acontece em novembro e as eleições são em fevereiro do ano seguinte. Mexia fica ao lado do líder do PSD e coordena o programa político que o partido leva a votos. Se ganhasse, estaria na calha para ser super-ministro.
Em fevereiro de 2005, José Sócrates conquista a primeira maioria absoluta para os socialistas. Os tempos eram de mudança, mas nem todas foram previsíveis. Depois do apoio a Santana Lopes, que se demite da liderança do PSD, António Mexia está desempregado e sem aparentes oportunidades de carreira em empresas onde o Estado tinha influência.
De um Governo à direita ao maior cargo da vida com a bênção do PS
No início de 2004, António Mexia foi um dos fundadores do Compromisso Portugal. O movimento de gestores e empresários mais jovens e internacionais opunha-se a visões mais tradicionais da defesa dos centros nacionais que até então dominavam a classe empresarial. O movimento, que tinha como porta-voz António Carrapatoso, então presidente da Vodafone, defendia também um maior liberalismo económico e queria colocar na agenda as reformas estruturais no Estado que, do seu ponto vista, Durão Barroso não estava a promover.
À data presidente da Galp, António Mexia esteve no movimento inicial, mas não foi um das figuras mais centrais nos trabalhos deste movimento que reuniu no Convento do Beato centenas de pessoas em fevereiro de 2004. Mas foi lá que se cruzou com várias personalidades com quem partilhava alguns conceitos económicos e ideológicos e que tiveram ou vieram a ter alguma influência na sua carreira. Entre eles António Borges, Paulo Teixeira Pinto e Diogo Vaz Guedes.
Terá sido Mexia a propor para secretário-geral do movimento Rafael Mora, o dinâmico partner da consultora de recursos humanos Heidrick and Struggles, que também estava com Nuno Vasconcelos na Ongoing. A consultora ficaria célebre pelo modelo de governo implementado no BCP e que foi o pretexto para o confronto entre Jardim Gonçalves e Paulo Teixeira Pinto. Este modelo foi replicado na EDP quando Mexia foi nomeado e coube à consultora desenhar também o modelo dos prémios de desempenho dos gestores que tanta polémica causou anos mais tarde.
O Compromisso Portugal tem sido apontado como um dos cenários preparatórios para a chamada guerra do BCP, que rebentou em 2007 e que também foi um conflito de gerações e visões empresariais. António Mexia, presidente da EDP há pouco mais de um ano, é visto como um aliado de Paulo Teixeira Pinto. O núcleo à volta de Jardim Gonçalves irá atacá-lo pelo papel central que terá tido na definição uma nova solução de liderança para o banco, e que foi desenhado numa reunião entre alguns acionistas na sede da EDP.
Ainda em exercício de funções governativas, Mexia reencontrou-se com os promotores do Compromisso Portugal, que se reuniram com os líderes dos principais partidos antes das eleições de 2005 para os sensibilizar para a sua agenda reformista e produziram uma avaliação dos programas partidários. Na crítica ao programa do PSD, coordenado por Mexia, reconheceram uma maior clareza nos princípios, valores e compromissos, mas apontaram várias falhas na definição do papel do Estado e na especificação de medidas. No capítulo sobre a reforma do sistema político, concluíram que o PSD “esquece” o tema, enquanto os socialistas apontam caminhos.
Livre depois das eleições de 2005, Mexia terá ponderado ficar na política, tendo admitido que “gostou imenso” da experiência como ministro. As fotos desse tempo mostram quase sempre um homem descontraído e à vontade no seu papel.
Um perfil publicado pela revista Sábado em 2004, quando foi para o Governo, mostra um outro lado, pessoal e familiar, do executivo de empresas. Desde andar à boleia e servir mesas em restaurantes na Suíça, onde estudou, para ajudar a pagar as despesas, até è relação com a filha então criança e a referência à primeira mulher, que era pianista (António Mexia está atualmente com Guta Moura Guedes, presidente da associação da ExperimentaDesign), Nesse artigo fala-se também da paixão pela música, desde a clássica à pop, e da prática de desportos como o ténis, a equitação ou o ski, apesar de a natação se ter tornado a opção para quem desenvolveu problemas nas costas. Entre os amigos contavam-se artistas, como por exemplo Rodrigo Leão, e há quem se lembre de o ver aparecer de boina basca quando passava pela empresa ao fim de semana.
Mas, tal como aconteceu a outros quadros empresariais e da gestão ligados ao PSD, a carreira política a que nunca fechou a porta não arrancou. Colaboradores próximos admitem que o gestor estaria pouco disponível para fazer aquilo que seria necessário para chegar mais longe. Não era pessoa para andar a distribuir cumprimentos pelos populares.
No verão de 2005, o seu nome é então falado para presidir à Vivo, a operadora móvel brasileira que a Portugal Telecom dividia com a espanhola Telefónica. A ideia terá vindo de Miguel Horta e Costa, o antigo secretário de Estado que contratou Mexia para o seu gabinete e que era à data presidente da PT. Mas a sugestão não reúne o necessário consenso.
A Telefónica, cuja área internacional era então liderada pelo português António Viana Batista (accionista do Observador), torce o nariz à escolha de Mexia. Estava previsto entre os dois sócios que, depois da saída do primeiro gestor português da Vivo, a empresa seria gerida por um brasileiro. Já um perfil publicado em 2017, da autoria da jornalista do Público Cristina Ferreira, indica que quem não quis Mexia na Vivo foi Ricardo Salgado. O então presidente do BES, o maior acionista privado da PT, terá receado o desagrado de Sócrates pela escolha de uma pessoa próxima do Governo anterior.
A proximidade de Mexia com o PSD não impediu que, menos de um ano depois e para surpresa de muitos, fosse nomeado para a maior empresa portuguesa, onde o Estado era o principal acionista. O nome do gestor foi avançado pelos principais acionistas privados da EDP, que aliás já o confirmaram ao Ministério Público. Paulo Teixeira Pinto, então presidente executivo do BCP, foi um dos promotores da ida de Mexia para a EDP, tendo sido apoiado pelo grupo José de Mello e pela espanhola Cajastur.
O Governo de Sócrates, onde Manuel Pinho assumia a pasta da Economia, tinha dado aos acionistas portugueses margem para indicarem o sucessor de João Talone. O gestor tinha feito apenas um mandato na liderança da elétrica. Apesar dos sucessos em dar escala à EDP, a sua estratégia de juntar o gás tinha caído em Bruxelas. Talone era visto como muito próximo do Governo de Durão Barroso e, como o próprio contou no Parlamento, não havia uma relação de confiança com o novo Executivo, em particular com o ministro da Economia, que estaria mais aberto às pretensões da Iberdrola de chegar à administração da elétrica.
Num gesto inédito, o presidente executivo da EDP faz um comunicado ao mercado no início do ano a dizer que não pretende fazer um novo mandato. Nele, alerta para a ausência “inaceitável” de uma tomada de posição pública por parte dos acionistas de referência contra a possibilidade de a Iberdrola chegar aos órgãos sociais da elétrica, um recado para o Governo.
Se parece confirmado que foi proposto pelos acionistas privados da EDP, o nome de António Mexia passou sem resistência no Governo socialista, apesar de haver quem preferisse o presidente da REN, José Penedos, um homem do setor que era também do PS e tinha sido secretário de Estado.
Manuel Pinho e António Mexia já se conheciam do Grupo Espírito Santo. As relações pessoais entre os dois não seriam as melhores quando Pinho chegou a ministro porque terá havido divergências do tempo em que Mexia esteve no banco Essi e Manuel Pinho regressou ao grupo BES em 1995, depois de ter tido uma passagem pelo Governo do PSD como diretor-geral do Tesouro. Mas havia outra afinidade entre os dois: António Mexia foi padrinho do filho de Manuel Pinho. O convite terá chegado por ter emprestado a casa em que vivia em Genebra, na Suíça, para Manuel Pinho e a mulher passarem uns dias.
Os dois iriam estar no centro da investigação judicial que agora levou à queda de Mexia. Mas, até chegar aí, o homem que passou de gestor a ministro e de ministro a gestor outra vez passaria 14 anos à frente de uma das maiores empresas portuguesas.
Na segunda parte deste perfil são contadas as histórias dos 14 anos de António Mexia na liderança EDP.
Ana Suspiro – Observador 12 jul 2020,
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