Não sei o que é mais triste: se a noite escura que desce sobre o nosso tempo estar longe de se limitar a Portugal, ou se em Portugal, acanhado e pobre, a noite ser de um breu sem luz nem esperança.
18 jul 2020, Alberto Gonçalves , Observador
Há dias, o “Público” informava com entusiasmo: “Governo chama universidades para vigiar discurso de ódio”.
Isto é tão bizarro que é difícil decidir por onde começar, embora não custe imaginar como acabará.
E quem diz bizarro, diz errado.
E equívoco.
E repugnante.
E assustador.
E os adjectivos que pudermos inventariar até nos cortarem o pio.
Em primeiro lugar, a ideia não caiu do céu.
Caiu da boca de uma ministra qualquer, que pouco antes havia anunciado a intenção de vistoriar as “redes sociais” para colher informações acerca dos cidadãos que, aqui e ali, emitem palpites dissonantes da cartilha em curso. Dado que, ao contrário do que seria saudável em lugares civilizados, a intenção não levou às ruas multidões furiosas, a exigirem a demissão da ministra ou a imersão da mesma em alcatrão e penas, o governo percebeu que podia avançar sem chatices na prossecução deste desígnio espiritual.
Em segundo lugar, o “discurso de ódio” não é mais do que as opiniões de que certos indivíduos intolerantes discordam, ou, no caso, de que um poder intolerante discorda. Os indivíduos intolerantes, serviçais do poder intolerante, discordam disto. Para eles, o ódio é identificável (desde que por eles) e objectivo (segundo os critérios deles). Por isso, informam com uma cara-de-pau digna de registo, a censura da liberdade de expressão não é censura porque ninguém deve ser livre de exprimir “ódio”.
Ninguém deve ser livre de anunciar que detesta ciganos.
E muçulmanos.
E hindus (principalmente, quase exclusivamente, o dr. Costa).
E pretos (excepto os reaccionários).
E judeus (excepto os “sionistas”).
E gays (excepto se presos em Cuba).
E estrangeiros (excepto os que votam em Trump, Bolsonaro, Orban, Johnson e nos governos que não querem deixar vir dinheiro ou turistas para Portugal). E mulheres (excepto as que tomam banho).
E a humanidade em peso (excepto a parte da humanidade que não partilha os gostos da parte da humanidade empenhada na perseguição).
Em suma, o “discurso de ódio” é aquilo que é dito pelas pessoas que os censores do “discurso de ódio” odeiam.
Em terceiro lugar, as “universidades” não “vigiam” o “discurso de ódio”, por iniciativa própria ou a mando dos que mandam. Se vigiam, não são universidades.
As universidades de facto estimulam justamente o debate e o confronto, não a castração e a unanimidade. As instituições a que o “Público” se refere e o governo recorre assemelham-se, suponho, a polícias políticas, entregues a jagunços com vocações primitivas. “Jugunços” é um eufemismo. “Primitivos” também. Recentemente, um académico, Riccardo Marchi, escreveu um livro acerca do Chega. Não conhecia o académico e não aprecio o Chega. Mas tenho uma vida, sem vagar para desenvolver apetites de calar o próximo. Pelo menos 67 auto-designados “investigadoras e investigadores” obviamente não têm vida e subscreveram uma carta (publicada adivinhem onde) a explicar que “a produção de conhecimento académico não se coaduna com propósitos de normalização, legitimação e branqueamento de um partido racista e com desígnios antidemocráticos”. Não, não se trata do Partido Socialista Unido da Venezuela, do Hamas, do Podemos ou do Bloco de Esquerda: é só o partido daquele moço do Benfica, vigiado e condenado por vultos com – aposto e ganho um dinheirão – um belo currículo em matéria de anti-semitismo e totalitarismo.
Em quarto lugar, é notável o entusiasmo do “Público” na divulgação da notícia, enquadrada, eu fique vesguinho, na secção “Direitos Humanos”. O “Público” não acha que a criação governamental de um sistema de censura constitua uma ameaça aos direitos humanos: acha que é uma forma de os proteger. E lança foguetes alusivos. Salvo em cantinhos raros, o jornalismo, à semelhança do telégrafo e do dodó, extinguiu-se. O que as televisões e a imprensa “tradicional” hoje fazem nem sequer tenta disfarçar os respectivos propósitos: agradar aos donos, definir a “linha justa”, espalhar um pensamento único.
É fácil ridicularizar os beatos da moral. É igualmente fácil esquecer o perigo que representam. Por um lado, são bafientos e boçais, indignados e infantis, puritanos e paranóicos, características que, na disposição adequada, divertem. Por outro lado, porém, são gente sem escrúpulos e com uma propensão para o fanatismo susceptível de alimentar diversos ramos da psiquiatria. Convinha que não nos iludíssemos. Os ministros que reclamam censura, os “universitários” que se dispõem ao trabalho sujo, os “jornalistas” que se curvam em vénias, os anónimos que denunciam páginas nas “redes” não são simples artistas de variedades: são a subespécie omnipresente nos momentos vergonhosos da História, a corja que se purifica através da destruição alheia. Não precisamos recuar à Inquisição para amanhar comparações com os Torquemadas vigentes. Ou apelidá-los de fascistas. Os marxistas que promovem a moderna queima dos hereges inscrevem-se na longa tradição marxista da opressão, do silêncio e das trevas. Logo, dizê-los “marxistas”, ou “comunistas”, ou, pelo andar das coisas, “socialistas” está muito bem: é descritivo, exacto e insultuoso.
Não sei o que é mais triste: se a noite escura que desce sobre o nosso tempo estar longe de se limitar a Portugal, ou se em Portugal, acanhado e pobre, a noite ser de um breu sem luz nem esperança.
O que vale é que o povo já dorme.
artigo de AFP
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