A hierarquia de valores de uma sociedade vê-se por aquilo com que se indigna. Temos hoje razões para nos envergonharmos. Com os valores que estamos a revelar.
Nos últimos tempos temos assistido com indiferença a casos que merecem indignação, mostrando como há quem se sinta impune ou que todos nós nos desumanizamos. Ou ainda expondo o estado dos nossos valores
Um deles é o que tem vindo a ser denunciado na TVI sobre o Hospital Conde de Ferreira – “A vida no Conde Ferreira” e “Espera sem Fim” referido igualmente neste artigo de Sofia Florentino.
As reportagens são emocionalmente difíceis de ver, mas temos a obrigação de as enfrentar. Dando o benefício da dúvida a governantes e eleitos, admito que seja o choque emocional, que provocam, que esteja a impedir a indignação e as iniciativas parlamentares que casos menores geram. O que se passa naquele hospital, da responsabilidade da Santa Casa da Misericórdia do Porto, é de uma atroz desumanidade. Seres humanos com doenças mentais são deixados ao abandono em espaços sem condições mínimas para alguém viver.
Não é fácil deixar de cair na tentação de comparar as indignações a que temos assistido, com a morte de animais ou a escolha de procuradores, e ver a indiferença com que os eleitos olham para o que se passa no hospital Conde Ferreira. Como não é fácil encontrar os argumentos emocionais que usam os líderes da Santa Casa do Porto para serem cúmplices de uma desumanização dessas. Acreditam no que vêm no site de apresentação do hospital e nos prémios que ali anunciam? Fecham os olhos para não verem?
Durante o último ano enfrentámos um dos mais graves casos de desumanidade que, entretanto, temos tentado corrigir. Foi a insistência dos órgãos de comunicação social, com especial relevo para o Diário de Notícias e o Público, evitou que um dos acontecimentos da nossa história recente que mais nos envergonha ficasse esquecida. O que sofreu Ihor Homeniuk e sofre a sua família é indescritível. Hoje sabemos que em Portugal se torturam imigrantes e esperemos que a justiça faça justiça e que se adoptem as medidas para que nada disto se volte a repetir. Não queremos ver Portugal na lista de países que tratam os imigrantes como vemos tantas vezes nas notícias.
Não sou das que defende que o acontecimento do SEF deveria levar à demissão do ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita. Todos levámos tempo demais, salvo honrosas excepções, para enfrentarmos o horror que foi o que se fez a Ihor Homeniuk. Ao ministro é preciso exigir que mude o SEF o mais depressa possível. Ao Governo que garanta o pagamento rápido da indemnização decidida pela Provedora de Justiça. Aos tribunais que façam justiça. A nós todos que nunca mais, enquanto cidadãos, permitamos que um caso destes se arraste sem que a nossa indignação se faça ouvir mais cedo e mail alto.
Também não sou das que defende que a ministra da Saúde, Graça Temido, deva ser responsabilizada pelo que se passa no Conde Ferreira. (Graça Temido, com os erros que obviamente era impossível não cometer numa situação tão difícil como a de uma pandemia, tem revelado uma resistência notável). Mas, não sendo razão para se responsabilizar politicamente, há razões para questionar porque nada fazem os seus serviços em relação ao que se passa naquele hospital.
A pandemia tem absorvido as energias de todos. Mas a desumanização a que temos assistido tem de nos obrigar a reflectir. Embora esta desumanização seja transversal à comunidade, estes dois casos reflectem um Estado sem capacidade de agir e com poderes que se sobrepõem ao poder.
Um hospital como nos é apresentado o Conde Ferreira teria sido imediatamente intervencionado logo na primeira reportagem que foi para o ar – repare-se que não há desmentidos, há silêncios. Não devia sequer ser necessária a actuação de um ministro, os diversos serviços do Estado com as mais variadas competências, tinham de ter margem para agir. Mas não agem. Porquê?
Observador
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