Prometeu à mulher que não voltava à política a sério antes de a filha ser mais crescida. Riu-se bastante com a manchete que lhe insinuava uma nova namorada. Adora dar aulas. Não se inibe nas conversas nem nos almoços. “Seria um imbecil” se o fizesse, costuma dizer. Nem faz planos nem diz nunca. Sofreu, mas às vezes canta. A família, a universidade e a política no quotidiano do Ex-primeiro-ministro.
Índice
1 Aulas bem preparadas
2 A casa, o carro e o cão
3 Não vê TV, mas respira política
4 O futuro político
5 Terá de ser o país a precisar dele
No Verão passado, Passos Coelho ficou uns dias de férias em Ílhavo, no hotel da Vista Alegre. Teve azar: o carro foi assaltado e acabou a ir comprar um computador à Fnac do Fórum Aveiro. Em tempo de férias, o espaço estava à pinha. Não foram compras normais. Gerou burburinho, gente à volta, pedidos de fotos, “parecia uma popstar”, recorda quem assistiu. Na loja, teve ainda de atender dois pedidos de funcionárias: se podia falar ao telefone com os respectivos namorados, a garantir que estava mesmo ali, coisa a que o Ex-primeiro-ministro acedeu sem ser preciso insistência. Talvez tenha mesmo achado graça, já que usou a voz de barítono para questionar um dos interlocutores no telemóvel que lhe passaram: “Sabe quem fala?” Mesmo que não tenha sido reconhecido pela voz, a resposta era fácil, já que havia pessoas atrás e à volta a ajudar “é o Passos, é o Passos”.
Cenas como estas não são uma excepção. Foi comer à Vagueira (carne maturada, que Passos mantém o mítico apetite) e um cidadão incauto arriscou o atropelamento pondo-se à frente do carro de braços abertos quando o reconheceu, “ó Passos, Passos”. Mais recentemente, num jantar no Solar dos Nunes, em Lisboa, “foi um corrupio, do dono aos empregados”, passando por quem estava a jantar, “em alguns sítios mal se consegue comer com calma com ele”, diz o conviva de refeição, mas também acrescenta a reacção de Passos: “Ele reage bem, mas não está em ânsia nenhuma.” Não vê nisso nenhuma onda de fundo. Ou, como resume quem o acompanhou em Aveiro: “Ele gosta disso, ou seja, gosta de ser apreciado, mas não faz disso mais nada.”
Muitos fazem por ele: além de quem o aborda na rua, de quem lhe pede para almoçar e conversar, dos sociais-democratas que lhe deram uma recepção em tom sebastiânico na Festa do Pontal, também uma sondagem recente da Intercampus para o CM/CMTV e Jornal de Negócios mostrou que Pedro Passos Coelho é hoje o nome mais popular para candidato à Presidência da República (com 15,8%, à frente de Guterres, Costa e Gouveia e Melo) – um cenário a que o próprio já tem respondido com convicção, aos próximos, com um “está doido, doido, o Presidente da República não faz nada”.
Passos é um político carregado de passado em que a sombra de um eventual futuro pesa cada vez mais. Ele reage com a frieza habitual. Nunca houve um não rotundo, mas não mostra, nem aos mais próximos, planos, pressa, ou sequer a intenção de. Talvez porque, ainda antes da dolorosa morte da mulher, Laura, em Fevereiro de 2020, lhe tenha prometido que ficaria longe de responsabilidades políticas mais exigentes até que a filha de ambos ainda menor, Júlia, que terá hoje 14 anos, fosse mais autónoma. Tem cumprido. A vida de Passos Coelho tem sido praticamente só família e aulas, mais o ocasional almoço a falar de política.
Embora não se iniba de intervir, mede as raras aparições públicas ao milímetro. Porque, como o próprio explica com ênfase a quem o questiona sobre elas: “Cada vez que apareço isso põe as pessoas a olhar para o passado e não para o futuro. Não quero de todo alimentar isso ou desviar a atenção do presente.” Está confortável na sua nova vida, ou como avalia um amigo próximo, “ele deu-se muito bem com o pós-poder”. Embora, e fazendo as contas, a filha estará a fazer 18 anos em 2026, data das próximas presidenciais.
O pós-poder começou há cinco anos. A 16 de Fevereiro de 2018, no arranque do congresso do PSD que deu lugar a Rui Rio, Pedro Passos Coelho despediu-se da liderança do PSD, prometendo “discrição” ao novo líder – não ia andar por aí. E avisando que “é da propaganda que vive este governo”, “só preocupado consigo próprio” e não “com o futuro do País”. No fim desse mês, despediu-se também do parlamento e no início de Março, confirmou-se que iria dar aulas no ISCSP, de Administração Pública, a alunos de mestrado e a doutorandos. Foi uma escolha com significado e não um acaso – mas já lá vamos.
Aulas bem preparadas
“Conhecia-o e falámos sobre o assunto, no sentido de que a situação fosse confortável para ele e de o incentivar a fazer o doutoramento”, recorda Manuel Meirinho, que o convidou e era à altura director da faculdade, sendo hoje presidente do Conselho Científico. Mas a entrada para professor catedrático convidado foi atribulada. Houve uma vaga de críticas, sobretudo mas não só, nas redes sociais, e até um abaixo-assinado de alunos contra a contratação (a invocar uma “afronta à transparência e à meritocracia”). Passos chegou mesmo a colocar a direcção da faculdade à vontade, se entendessem que a sua entrada afinal “era prejudicial” à reputação da escola, ficava tudo sem efeito, que não fizessem cerimónia, não era por ele que não haveria recuo. Mas nem a direcção recuou, nem os protestos persistiram. Nas aulas também hesitou: quis uma carga horária pequena, para avaliar como se dava e preparar os conteúdos. Depois, foi aumentando. “Tinha menos aulas no início, não leciona o que não sabe e por isso a evolução foi incremental, por opção dele”, diz Meirinho.Outro professor da mesma escola diz mesmo que sentia que Passos não apreciava se lhe pedissem para dar conteúdos, “do ar, sem mais nem menos, e sem se preparar”. Hoje, ensina Princípios de Macroeconomia, Estratégia e Gestão da Empresa, Gestão Administrativa de Recursos Humanos e Economia, em licenciaturas; Processos de Decisão e Políticas Públicas, Avaliação de Políticas Públicas em três mestrados; Temas Aprofundados de Administração Pública e um seminário temático no doutoramento em Administração Pública.
“Leva as aulas todas preparadas, traz imenso materiais”, aponta uma Ex-aluna. Sendo impossível avaliar se todos o apreciam, nas avaliações internas promovidas pela universidade, feitas pelos alunos, surge sistematicamente entre os mais bem classificados. Mesmo que os alunos não simpatizem com a técnica do professor Passos nos exames, em que leva dois enunciados diferentes, um para a fila da direita, outro para a fila da esquerda, que vai alternando, para evitar copianços. E que lhe dão o dobro do trabalho a elaborar.
O mistério não é que Passos dê aulas. Teve aliás, convites de outras universidades, e está também, embora apenas com uma única aula (Economia Portuguesa e Europeia), na Lusíada, onde ele próprio se licenciou em Economia. É porque é que escolheu só dar aulas. “Sei que ele teve muitos convites quando saiu do partido”, aponta quem acompanhou esse processo. Quais, também não o detalhou, nem aos amigos.
Um Ex-aluno aponta uma explicação directa. O deputado socialista Sérgio Sousa Pinto, que o conhecia desde os tempos em que liderou a JS, teve-o como professor durante a pandemia de Covid-19, sempre online, e define: “Ele teve um papel patriótico num momento difícil da nossa história e não aceita que esse legado seja maculado com qualquer actividade no privado.” Um amigo pessoal corrobora: “Ele não quer ser rico. No dia que tentasse, estragava uma parte da imagem dele.” E isso não tem a ver com cálculos futuros (ou pelo menos, não tem só), assegura: “Tem a ver com respeitar o seu próprio passado. É preciso perceber o Passos para perceber as escolhas dele. Sei que ele teve convites, mas nunca mo disse. E nem os deve ter considerado.”
Voltando a Sousa Pinto, o balanço que faz é este: “Só tenho elogios. Era de um enorme profissionalismo e rigor, era um magnífico professor. Dos mais zelosos e competentes que tive.” Diz o amigo: “Ele adora dar aulas. Adora falar, qualquer pessoa que tenha ouvido um discurso dele também percebe isso. Tem nos alunos as ‘vítimas’ perfeitas”, brinca.
Passos trata as burocracias que tem de tratar, domina o sistema informático e não tem nenhum estatuto especial. Recebe com frequência alunos de mestrado e doutoramento no gabinete 27, no piso 3, para ser entrevistado sobre o seu período como primeiro-ministro. “Cravam-no muito”, diz um colega – e não tem problemas em fazê-lo. Para fora, mede mais as intervenções.
Não vai, de facto, ficar rico a dar aulas. A lei obriga a que um professor convidado só possa ficar como catedrático durante quatro anos. Assim, este ano, passou a uma categoria abaixo, é agora professor associado convidado. Dependendo do escalão em que estiver colocado (o ISCSP não clarificou este ponto à SÁBADO), a tabela oscila entre 3.717 ou 4.393,09 euros brutos, a que se subtraem 33% por ser convidado. Ou seja, entre 2.491 e 2.944 euros brutos. Traduzindo, levará para casa, líquidos, entre 1.782 e 2.011 euros.
A casa, o carro e o cão
Passos vive no mesmo apartamento, em Massamá. “Até tem a mesma mobília”, retrata um amigo. Só mudou de carro: já não tem um Opel Corsa, como quando estava no governo (“vamos lá a ver, aquilo já não dava mesmo…” – é a descrição do estado do veículo por quem nele andou) e comprou um Renault Megane azul elétrico, mas a casa, essa está mais vazia. A 25 de fevereiro de 2020, a mulher de Passos Coelho, Laura, morreu. O osteossarcoma no joelho fora detetado em 2014, ultrapassado em 2015, regressara em 2017, já com ramificações para outros órgãos. Era um desfecho esperado havia algum tempo. Laura passara o último Natal em casa. Rira-se com os mais próximos que a visitaram, mas nessa altura os tratamentos tinham já parado. Laura, descrevem os amigos de Passos que a conheceram – manteve a boa disposição até ao fim. Passos acompanhou-a em todas as consultas, em todos os tratamentos, apoiava-a em casa, dava-lhe banho, como fizera já na campanha de 2015, em que vinha a casa dormir por onde quer que andasse em serviço eleitoral.
A morte da mulher recentrou ainda mais a vida do ex-primeiro-ministro na família. Tem uma ligação próxima com as duas filhas mais velhas, Joana e Catarina, filhas do primeiro casamento com Fátima Padinha, das Doce, vive com a filha Júlia, a mais nova, e teve uma reaproximação ainda mais forte com a filha de Laura de uma primeira relação, Teresa. “Ele é como se fosse mesmo o pai dela”, descreve um amigo próximo. A foto de perfil que usa no WhatsApp (a única rede social que usa, não frequenta outras), é com as três filhas biológicas e com Teresa. E está com um sorriso aberto, uma expressão pouco habitual nele. A foto de capa do telemóvel ainda é de Laura e mantém a aliança no dedo.
“Ele fartou-se de rir com a história da Nova Gente”, recorda um amigo. Em março do ano passado, a revista pôs na capa o título “Passos Coelho volta a sorrir, dois anos após a morte de Laura Ferreira” e o anúncio “mostramos o primeiro-ministro como nunca o viu”, ilustrado com uma fotografia em que surgia ao lado da investigadora na área da Saúde Isabel de Santiago. Braço na cintura da amiga, ela a mão no ombro dele. Mas na imagem Passos tinha o lado esquerdo do corpo cortado, e ele ria-se com gosto a contar: “Se tivessem posto a foto completa, via-se que do outro lado estava o marido.”
Mantém uma relação próxima com os sogros, Domitília e Tomás, os pais de Laura. Não há quem não o tenha ouvido dizer “a minha sogra faz a melhor cachupa do mundo”, e toda a gente sabe que Passos adora uma cachupa, “esta está boa, mas não tem o mesmo sabor, a da minha sogra…” Passos é pai e mãe, leva a filha à escola, faz as tarefas domésticas, cozinha, faz as compras e passeia o cão duas vezes por dia nas redondezas – em novembro foi apanhado e fotografado pelo Tal & Qual na cívica tarefa de recolher os dejetos do Koda. Sempre teve a disciplina de ajudar em casa e lidar com situações em que o seu apoio era fundamental. Ainda na JSD, e deputado, saía das reuniões para ir a casa cuidar da filha mais velha, que tinha problemas, e dar-lhe explicações. Na família habituou-se a ajudar no acompanhamento do irmão mais velho, Miguel, com paralisia cerebral desde criança.
Hoje está mais centrado em Massamá, já pouco vai ao Comilão, poiso habitual de antigas conspirações políticas. Agora o local mais provável para o encontrar a jantar com algum amigo é perto de casa, no Estrela da Bica. Na vizinhança já toda a gente o conhece. Vão longe os tempos em que era primeiro-ministro e no supermercado onde costuma fazer as compras, na caixa o funcionário lhe perguntou, “nós conhecemo-nos?” Passos foi fleumático: “Penso que não…” O funcionário insistiu: “Não trabalhámos já juntos?” “Não sei, não me recordo, mas é possível, quem sabe.” Não se apresentou, nem esclareceu que o outro, se o conhecesse, só da televisão, em versão fato e gravata – ali estava à paisana. Na rua anda de calças de ganga, ténis e camisola, às vezes com um casaco de malha que parece um número acima, mas vai de fato para as aulas.
Depois de deixar a política, e instalado numa rotina muito pessoal, sucederam-se momentos difíceis: a morte do pai, em 2019, a de Laura, a do irmão Miguel, em finais de 2020. E ainda a doença da irmã, e de Fátima Padinha, com quem manteve após o divórcio uma relação de amizade próxima.
“Ele tem tido uma vida emocional dura, muito dura, embora seja de uma resistência impressionante. Quem acha que ele anda o tempo todo a pensar em política desengane-se. Tem uma vida cheia, com as aulas e tudo o que lhe tem acontecido. Não anda distraído de nada, mas tem tido muito em mãos, muito com que lidar”, explica um amigo de muitos anos.
É um lado, o pessoal, que tentou e conseguiu sempre preservar. No Governo, recorda o mesmo amigo, tentou convencê-lo a “abrir qualquer coisa à impressa”, pô-lo a falar ou deixar que alguém falasse por ele. “Proibiu-me”, foi a conclusão. “A minha vida pessoal não interessa a ninguém nem me interessa expô-la.”
Mas é nessa vida pessoal que, como na foto com as filhas, sorri mais. Está longe de ser um homem acabrunhado. Num aniversário recente, de um sobrinho, chegou atrasado à festa, já depois da hora de jantar (vinha das aulas), mas acabou a cantar a Júlia florista para toda a gente.
“Só não falaria com pessoas com quem trabalhei ou com quem gosto de conversar se fosse um completo imbecil”: a resposta desarmante é do próprio Passos, a quem lhe perguntou sobre notícias na imprensa dando conta de vários almoços seus. “Porque é óbvio que ele continua a falar com muita gente, e gosta disso. E não diz que não a convites. Às vezes diz-me, fui almoçar com o cientista tal, com o professor tal… Por um lado, ele gosta genuinamente de conversar com pessoas. Por outro, se um dia pensar voltar – e não estou a dizer que pense – isso não só não estraga, como ajuda”, contextualiza um amigo próximo.
Essa é a eterna questão e é por isso que qualquer aparição pública ou almoço privado gera comentários e notícias. Por isso, e porque, diz Sousa Pinto – e os dois trocam impressões de vez em quando – “porque ele é o líder da direita em Portugal”.
Não vê TV, mas respira política
Passos respira, ainda, política. Não vê televisão, nenhuma, perdeu esse hábito há anos, nem tem redes sociais, mas lê tudo o que é publicado na imprensa. Com algum distanciamento. “Concorda-se com umas coisas, com outras não, mas deixa-se passar”, costuma dizer. Pratica ainda o moto de quando estava no Governo: “Nervos de aço e gelo nas veias.” E agora é mais fácil. De resto, devora relatórios, nacionais e internacionais, sobre economia, demografia, segurança social ou o que lhe vier à mão. E mesmo pagando o preço de alimentar mais uma ou outra especulação, não se inibe de intervir sobre o que acha importante. Costuma justificar-se com esta argumentação: “Precisamente por ter sido primeiro-ministro, e numa altura determinante, isso traz uma responsabilidade, como para outros ex-primeiros-ministros também trouxe. Há quem diga uma responsabilidade moral, não sei, mas alguma traz. Não posso fazer como se não tivesse nada a ver com nada, é normal que intervenha.”
E interveio, por exemplo, sobre a eutanásia, publicando um artigo no Observador, em dezembro, numa linha diferente daquela que o PSD defendeu. Criticava a omissão de posição clara do seu partido, que se remeteu à defesa de um referendo, e apelava também, diretamente, à reversão futura da lei: “Era bom que se soubesse que haverá quem não se conforme nem desista de, no futuro próximo, pôr em cima da mesa a reversão da decisão que o parlamento se prepara para tomar, como numa democracia madura.” Em algumas linhas intuía-se, sem que tal nunca fosse explícito, parte da experiência pessoal por que passou e continua a passar: “Não se perde a dignidade pelos infortúnios que a vida nos possa trazer nem se resgata dignidade simplesmente por não aceitar ou desejar viver uma vida que possa parecer ter perdido o sentido de ser vivida.”
Mas há mais em que Passos discordou e afirmou-o: disse a Luís Montenegro, líder do PSD, que achava que deveria manter o líder parlamentar, Paulo Mota Pinto, em vez de o substituir por Joaquim Miranda Sarmento.
Montenegro reagiu, de forma “desproporcional” ao texto da eutanásia, diz um passista, mas um membro da atual direção garante que a relação entre os dois é serena – ainda que ambos sejam “tão institucionalistas” que de um lado ou de outro “ninguém sabe com que frequência falam, detalhes, nada”. “Mas não há afastamento”, indica a mesma fonte. “Não há sombras nem fantasmas e podem até divergir, o Passos tem espaço e está à vontade para isso, a relação é impecável, trabalharam bem juntos e conhecem as virtudes e limitações um do outro.”
E há mais um tema que Passos não deixará passar em silêncio: se a questão da regionalização se colocar de forma evidente na agenda política, é absolutamente claro para todos os que com ele conversam que intervirá publicamente – resta saber como – para a evitar. É convictamente contra.
Mesmo em contactos privados, Passos Coelho não se retrai de contar episódios do seu Governo ou de comentar a atualidade, com uma descontração que por vezes espanta quem o ouve. Por exemplo, num almoço perto de casa, há uns meses, um amigo com quem ia almoçar levou outro amigo, que Passos não conhecia de lado nenhum, sem o avisar. Passos achou normal – ainda que o convidado-surpresa fosse do Bloco de Esquerda – e a conversa decorreu amena mesmo quando o interlocutor, nos antípodas políticos, entrou por temas que achava incómodos para Passos Coelho. Mas porque é que mantivera o [Miguel] Relvas, no caso da licenciatura duvidosa? O ex-primeiro ministro desfiou com pormenores e à-vontade desconcertantes as conversas com dois dos seus ex-ministros. Com Nuno Crato, ministro da Educação, que lhe disse “o que se passa é isto”, disse-lhe simplesmente “investigue-se”. Quando vieram os resultados que comprometiam o amigo e ministro da Presidência e dos Assuntos Parlamentares, foi igualmente curto com Crato: “Então execute-se.” Já a Relvas, relatou, fez outras perguntas: “Tens as cadeiras? Mas para que é que precisas das cadeiras? Porque é que não fazes uma declaração pública a assumir que não tens as cadeiras, mas que também não precisas das cadeiras?” Isto enquanto o surpreendido mas interessado bloquista comia caril e ele muamba.
O futuro político
Dos muitos contactos, conversas, almoços e jantares que Passos foi mantendo ao longo dos últimos meses, é possível reconstituir aquilo que foi dizendo sobre como vê o seu futuro político. Alguns exemplos, de conversas diferentes: “Nunca serei Presidente da República, nem outras coisas que para aí dizem”; “Este governo está em fim de ciclo, acredito que Montenegro será primeiro-ministro. Não quer dizer que ele esteja a fazer tudo bem, ninguém faz, mas tem todas as hipóteses de ser primeiro-ministro, conheço-o, sei do que é capaz.”
Este é o cenário da maior probabilidade, defende. Depois, sobre a improvável circunstância de os astros se alinharem para criar circunstâncias que incentivem um regresso, vai dizendo “não é um assunto que tenha na cabeça, não estou aqui à espera de uma oportunidade qualquer”. Há uma razão, de contexto, que costuma lembrar. Quando saiu da política, em 1999, achava que não ia regressar. Tinha 35 anos, foi tirar o curso e trabalhar no setor privado. Passaram seis líderes até que chegasse a sua vez e já não pensava nisso. Mas agora é diferente: “já fui”, explicou numa conversa bastante recente. “Já fui primeiro-ministro.”
Miguel Relvas, com quem houve um processo de reaproximação, embora a frequência dos contactos seja hoje mais ocasional, defende que Passos “não tem dever moral nem obrigação de regressar à política. Entrou pelo seu pé e saiu a ganhar – foi o único. Só em circunstâncias muito, mas muito excecionais decidirá.”
Mas Passos também não exclui nada. Em novembro passado, depois de Marcelo Rebelo de Sousa ter dito que “sendo tão novo [Pedro Passos Coelho], o País pode esperar, deve esperar muito ainda do seu contributo no futuro, não tenho dúvidas”. Passos acabou por reagir, à saída de uma conferência académica sobre o Serviço Nacional de Saúde: “Não tenciono regressar a espaços políticos, as pessoas sabem disso, estou afastado da atividade política. Não há nenhuma razão para eu dizer que nunca mais na vida faço coisa nenhuma, porque seria uma tolice dizer coisas dessas, seria um absurdo, mas não estou a pensar em coisa nenhuma, estou muito fora de tudo e assim pretendo continuar.”
E há outro ponto: Passos, garante quem com ele conversa, nunca vai “espetar a faca em Montenegro”, é uma “questão que nem se coloca”. Ou, como diz Pedro Gomes Sanches, que o convidou para almoçar no fim do ano passado, “parece evidente que não fará a Montenegro o que Costa fez a António José Seguro”. Almoçaram no Darwin, da Fundação Champalimaud. Achou-o “muito atento ao que se passa no País” e também com a sensação de ter deixado “um trabalho interrompido de forma abrupta”, com reformas por executar. “Ele tem uma visão para o País, um legado executivo e um capital moral. Não interferiu com a governação, não fez sombra no partido que deixou. Tem o foco no País. Há um reencontro com a História que seria normal. Pode fugir a esse reencontro com a História. Só alguém agregador do voto à direita e com capital moral se pode assumir como alternativa. Disse-lhe isso. Acho que ele não é passado, é futuro. E enquanto ele não disser ‘não’ vou, eu fico nesta ideia…”
A SÁBADO sabe que está longe de ter sido o único a dizer-lhe isto. Num outro encontro, Passos não repetiu em privado o que dissera em público: “Nunca sabemos. A oportunidade não era para surgir e surgiu”, admitiu. As circunstâncias ditarão o seu futuro, mas garante sempre que não vai à procura delas.
Terá de ser o país a precisar dele
Passos nunca teve, ao contrário do que se possa pensar, ideia fixas sobre quando se candidatar fosse ao que fosse, e mais do que uma vez mudou de ideias. Antes de ser líder da JSD, e embora já estivesse na direção, anunciou que ia sair para acabar o curso –, mas foi convencido de que teria de voltar a adiar a licenciatura para se candidatar à sucessão de Carlos Coelho, que por sinal já tinha outro sucessor para apoiar – mas Passos ganhou. E, num episódio pouco conhecido, quando Marcelo Rebelo de Sousa se tornou líder do PSD, em 1996, Passos quis avançar. Disse-o abertamente a um próximo, mas foi mal recebido: o social-democrata disse-lhe que era cedo e que nem ele o apoiaria. Passos acabaria não só por recuar, como por ser decisivo no avanço de Marcelo, sugerindo-lhe que avançasse pelo menos com uma moção estratégica. E Passos lá foi finalmente acabar o curso e trabalhar fora da política. Fez um interregno de 12 anos até regressar como candidato à liderança do PSD, em 2008.
Alguém com quem costuma falar vê assim a questão: “Terá de ser o País a precisar dele, não ele a precisar do País. Só isso o convenceria.” Sousa Pinto, com quem fala (e discorda) ocasionalmente sobre temas diversos, da fiscalidade à saúde (mas não sobre o “futuro”), diz, contudo, uma frase que encaixa no diagnóstico de outros mais próximos: “Ele é um homem moral. Decidiu servir. A vida dele só pode compreendida assim.”
Na cabeça de Passos: defeitos e virtudes
Preocupado
Quem vem de um almoço com Passos muitas vezes não vem animado. Tem uma visão inquieta dos caminhos do País, os cenários a médio e longo prazo que traça são pessimistas.
Frio e analítico
Terá vantagens, mas para alguns gera pouca empatia. Um amigo de anos admite que para muitos persiste a imagem de “há 10 anos”, do primeiro-ministro seco e da austeridade
Teimoso
É possível fazer Passos Coelho mudar de ideias, mas não é fácil. “É preciso ter bons argumentos”, porque “quando já traçou a bissetriz”, é difícil levá-lo a ver o outro lado
Paciente
Sabe ouvir, quer quem discorda dele (não interrompe e escuta até ao fim), quer quem só tenha dúvidas. Não mostra impaciência. Estende conversas, mesmo quando diverge. Não toma as críticas como pessoais
Terra a terra
Tem um estilo de vida frugal, não se queixa do que ganha, continua a ir para a Manta Rota e a frequentar sobretudo restaurantes baratos. “Não é nada deslumbrado”
Desprendido
“Não está interessado em resolver a vida dele, está interessado no que acontece ao País mais à frente, na saúde e nas pensões, no lado estrutural das coisas. Só pensa nisso”, diz um social-democrata
Dinheiro e dívidas
Antes
Quando chegou ao governo declarou 122 mil euros de rendimento. Fora administrador das empresas Fomentinvest, TejoAmbiente, Ribatejo, HLC Tejo e CM02. Tinha dois apartamentos em Massamá.
Durante
Ao deixar o governo, em 2015, declarou 95.021 euros de rendimento bruto de trabalho dependente (do salário como primeiro-ministro), e 5.100 de rendimentos prediais.
Depois
Em 2018, ao deixar a liderança do PSD, declarou 98.996 euros (do trabalho como deputado e líder do partido) – hoje ganha muito menos. Não tinha ações ou obrigações. Tinha três créditos à habitação (179.216 euros ao Millennium BCP e 24.659 à CGD), mais um crédito pessoal de 5.538 euros (ao Millennium)
Com quem ele fala
Mantém alguns velhos amigos de sempre. Pedro Pinto, que conheceu na JSD, a ex-jornalista Eva Cabral (que foi sua assessora em São Bento, mas que conhece há décadas), e Luís Monteiro (que foi administrador no Instituto de Segurança Social) fazem parte de um grupo que acentuou o convívio quando viviam todos na Colina do Sol, junto à Brandoa.
É amigo do professor universitário de relações internacionais Vasco Rato (é padrinho do filho dele), e do jurista Miguel Matias (de quem foi padrinho de casamento), mas mantém contactos mais pontuais com muita gente da área da Economia – “é um amigo sólido e antigo”, diz Jorge Braga de Macedo – e da academia em geral.
Não recusa convites: foram públicos, recentemente, os encontros com José Eduardo Martins, do PSD, com o gestor Pedro Gomes Sanches e com Rui Batista, seu antigo assessor de imprensa. Foi, por exemplo, à festa de anos de Francisco Cavaleiro Ferreira, onde se cruzou com Luís Campos e Cunha e teve um padre na mesa, com quem ficou à conversa – e a criticar o Governo, até depois da 1h da manhã.
O livro em banho-maria
Sabe-se praticamente desde que deixou o PSD que tem estado a escrever um livro sobre os seus anos como primeiro-ministro , mas não deverá estar para breve. Apesar de adiantado, Passos nunca o terminou, primeiro pela dificuldade com o acompanhamento da doença da mulher, depois porque as aulas lhe deixam pouco tempo. E ainda porque, como se viu pelo preâmbulo de 35 páginas ao livro do embaixador Luís de Almeida Sampaio, Diplomacia em Tempo de Troika, cheio de detalhes, datas, horas e referências, a futura obra requer trabalho pesado. Não há calendário, nem nada que o prenda a terminá-lo.
Maria Henrique Espada
https://www.sabado.pt/portugal/detalhe/a-nova-vida-de-passos-coelho-o-desejado