Querer lá saber disso
São tantos os queixumes hoje em dia que uma pessoa farta-se, à quinquagésima vez, de fingir que está cheia de pena – até porque já não convence ninguém.
Publico
1 de Fevereiro de 2023,
Nos mercados os clientes são mais sinceros e os vendedores, para contra-atacar, são mais mentirosos.
A vantagem dos supermercados é que ninguém mente. Não está ninguém de roda das laranjas, à espera que alguém leve uma delas à palma da mão para dizer: “Estão muito boas, freguês! São de Silves. É o meu filho que mas manda.”
É uma das razões para ir ao mercado. Dou comigo a arrastar os pés para ouvir as conversas. Qual será a palavra para ouvir desconvidadamente as conversas dos outros? Como se diz espiolhar com os ouvidos? Espiouvir? Bisbilhescutar?
No sábado, perante uma crítica mordaz da selecção de alfaces, a vendedora, para se defender, pôs-se a queixar-se da dificuldade que teve em arranjar hortaliça, por causa do frio.
A senhora crítica, que estava a ouvir a queixa, enquanto recebia o troco, respondeu assim, num tom monocórdico: “Isso para mim é igual ao litro.”
Caí na asneira de repetir a frase em voz baixinha, por ser tão apetitosa de dizer. E a senhora ouviu, porque desatou a justificar-se: “Mas não é? Mas não é? Então, sou eu que pago e ainda tenho de ouvir? Mas eu venho para aqui queixar-me do que me custou ganhar o dinheiro para comprar hortaliça?”
Decidi que, a partir daquele momento, iria usar “Isso para mim é igual ao litro” para todos os meus intercâmbios diários.
É que são tantos os queixumes hoje em dia que uma pessoa farta-se, à quinquagésima vez, de fingir que está cheia de pena – até porque já não convence ninguém.
Deve saber bem, depois de levar com os pormenores de mais um virtuoso sacrifício, contado à espera de aplausos comovidos de gratidão, dizer apenas: “Isso para mim é igual ao litro.”
Ainda não consegui, porque me falta coragem, mas desconfio que, mal apanhe o jeito, não hei-de querer outra coisa.
Ou isso para si é igual ao litro?
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