Nuno Guedes , RL
Nota de ilicitude da Autoridade da Concorrência revela pormenores do caso. Laboratórios contestam e prometem defender-se, acrescentando que ajudaram o Serviço Nacional de Saúde a pedido do Estado português
Em plena pandemia, um alegado cartel entre os principais laboratórios clínicos do país conseguiu travar, por duas vezes, uma descida mais abrupta dos preços pagos pelo Estado para fazer os testes Covid. A acusação é da Autoridade da Concorrência (AdC) num documento a que o Exclusivo da TVI (do grupo da CNN Portugal) teve acesso.
A acusação já tinha sido divulgada sumariamente pelo regulador que fiscaliza o cumprimento da lei da concorrência pelas empresas, mas o documento agora consultado revela muito mais detalhes, incluindo o nome das empresas acusadas e da principal associação nacional de laboratórios.
Os efeitos do alegado acordo entre empresas tiveram vários episódios que terão começado quatro anos antes do início da pandemia, nomeadamente nas negociações de 2016 com o Estado para definir os preços das análises clínicas aos utentes do Serviço Nacional de Saúde (SNS), bem como, em vários momentos, nas negociações das análises a quem beneficia de seguros privados.
A acusação atinge a Associação Nacional de Laboratórios Clínicos (ANL) e as sete empresas que nos últimos anos têm estado na direcção dessa mesma associação.
A chamada nota de ilicitude (ou acusação) da Autoridade da Concorrência detalha que "os comportamentos associados aos grupos Affidea, Unilabs, Joaquim Chaves, Synlab, Germano de Sousa, Redelab e Beatriz Godinho consubstanciam uma fixação de preços e uma repartição do mercado e de fontes de abastecimento, alcançadas por via de um acordo facilitado pela ANL".
O objectivo seria, alegadamente, "'Deixar de discutir se descemos muito ou pouco, para discutir o quanto se deve subir'" e alcançar uma "estabilidade e defesa das margens" no mercado da prestação de análises clínicas ao longo de, pelo menos, seis anos (2016 a 2022).
O documento consultado pelo Exclusivo conclui, contudo, que a "Affidea, Unilabs, Synlab, Joaquim Chaves e Germano de Sousa desempenharam um papel de destaque", "estando directamente envolvidas em todos os comportamentos identificados".
Os cinco laboratórios anteriores "correspondem aos laboratórios privados com maior capacidade de produção e rede de colheitas" e "mantiveram um grau de proximidade maior entre si que resultou numa concertação mais estreita, levando a que, muitas vezes, beneficiassem dos resultados da colusão em detrimento dos demais laboratórios concorrentes".
"As visadas Joaquim Chaves, Unilabs, Affidea, Germano de Sousa e Synlab instituíram entre si um 'acordo de cavalheiros', 'compromisso de não agressão' ou 'entendimento geral', com vista à repartição do mercado no sector das análises clínicas", refere a acusação. O alegado "pacto de não agressão" terá mesmo chegado à não-contratação de trabalhadores de empresas concorrentes.
O cartel nos testes Covid
Numa vasta acusação com 447 páginas, a Autoridade da Concorrência (AdC) classifica como tendo "especial gravidade" aquilo que aconteceu a partir de 2020 desde o início da pandemia.
"O acordo alcançado entre os laboratórios visados permitiu-lhes forçar as entidades públicas a negociar com a ANL o preço para a prestação de serviços de análises clínicas por laboratórios privados" e adiar a redução do preço dos testes Covid pagos pelo Serviço Nacional de Saúde com ameaças de boicote, travando descidas mais abruptas de preços pelo Governo numa altura em que o país tinha uma enorme necessidade de testagem.
Segundo a AdC, em Setembro de 2020, "no momento em que foi administrativamente fixado o preço convencionado de 65 euros para testes, havia operadores a realizar estes testes por 50 euros, sendo que o preço de 65 euros estava acima do valor de custeio apresentado pelo Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA)".
218 milhões de euros
Mais tarde, em Junho de 2021, "aquando da redução do preço convencionado para 40 euros, existiam laboratórios dispostos a aceitar a redução, assumindo-se, portanto, que o preço era rentável", mas "em resultado da estratégia acordada entre os laboratórios visados o preço convencionado para testes Covid foi revisto em alta para 45 euros".
As vantagens dos laboratórios com este alegado cartel, no período da pandemia, são difíceis de calcular, mas a acusação recorda que entre Março de 2020 e Julho de 2021 o Estado gastou 218 milhões de euros facturados por laboratórios privados pela realização de 3,4 milhões de testes.
Além dos valores cobrados pelas análises aos utentes do SNS, a Autoridade da Concorrência acusa as empresas visadas de terem repartido entre si "as escolas e creches que foram alvo do processo de testagem massiva" no primeiro semestre de 2021.
Empresa denunciou violações da lei da concorrência
Este processo por violação da lei da concorrência começou com uma denúncia da Affidea, uma das empresas que acabou acusada. Esta empresa, presente em 15 países europeus (incluindo Portugal) fez um inquérito interno, percebeu que podia ter violado a lei ao lado de outros laboratórios e apresentou-se à AdC, com provas, a pedir clemência.
A meio da investigação, também a Unilabs decidiu colaborar e pedir uma redução da eventual coima. Nas respostas às questões do Exclusivo da TVI, nenhuma empresa aceitou ser entrevistada, mas cinco das sete responderam por escrito.
O Grupo Germano de Sousa afirma que "refuta as suspeitas levantadas porque são infundadas e fantasiosas", estando a preparar a sua defesa, e a Joaquim Chaves Saúde também "rejeita as imputações preliminares da contra-ordenação e está totalmente disponível para colaborar com a Autoridade da Concorrência".
Laboratórios dizem que ajudaram Serviço Nacional de Saúde
Apesar da falta de entrevistas, foi possível, no entanto, perceber que um dos contra-argumentos das empresas, em relação ao período da pandemia, será que terá sido o Governo a procurar a associação do sector para discutir os preços dos testes Covid. Aliás, todas as empresas que estavam na direcção da ANL acabaram por ser acusadas.
A Unilabs, que colaborou com a AdC, responde que "este processo diz respeito a temas sectoriais, historicamente conhecidos, e de âmbito associativo”.
A Synlab diz que "o cumprimento de todas as leis e regulamentos é uma prioridade máxima" e a Redelab também refere que "não se revê nas imputações descritas.
Finalmente, a Associação Nacional de Laboratórios Clínicos argumenta que contribuiu, "a pedido do Estado português, de forma decisiva para ajudar a superar as fragilidades que assolaram o Serviço Nacional de Saúde durante um período de especial fragilidade", acrescentando que "os preços foram estabelecidos por Portaria publicada em Diário da República, e/ou de acordo com a metodologia da Ordem dos Médicos".
CNN-Portugal
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