segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

Cravinho, no limiar da indignidade

Isto já não é cair de podre; é estar podre de não cair!

Um governo que protege isto, escolhe apodrecer a seu lado

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9 fev 2023, Sebastião Bugalho, comentador, CNN

Numa semana de extraordinários momentos parlamentares pelo ,mundo – Biden no Estado da União, Zelensky em Westminster ‒, qualquer expectativa de que a democracia portuguesa pudesse aproximar-se de semelhante dignidade foi rapidamente dissolvida. Em que copo? Num meio-vazio: o parlamento. Em que águas turvas? Nas habituais: de João Gomes Cravinho. E quem as bebeu?

Nós, meu caro leitor. Inevitavelmente, nós.

A audição do actual ministro dos Negócios Estrangeiros na comissão de Defesa não se bebe de um trago, nem tão-pouco sem gelo. Paciência e frieza são mesmo a única maneira de sobreviver aos 150 minutos milimetricamente distribuídos sem nos engasgarmos de perplexidade ou tossirmos por embaraço. Senhores, com sinceridade, se não se ultrapassou o limite do indigno, esteve-se muito perto. 

Clinton & Cravinho

Logo a início, em resposta a um conjunto de questões cronologicamente fundamentadas, João Gomes Cravinho introduziu uma novidade pouco original: o álibi tecnológico. Em involuntário tributo a Pedro Nuno Santos, que redescobriu a verdade num grupo de WhatsApp, Gomes Cravinho revelou ter sido privado da verdade pelos servidores do ministério da Defesa.

Inacreditável? Absolutamente.

Irreal? É puxar atrás na box. 

Sobre os custos das obras no Hospital Militar de Belém, que derraparam em 2,5 milhões de euros, o ministro garante que a primeira informação que recebeu lhe chegou a 23 de Junho de 2020. “Esse ofício teria sido enviado por Alberto Coelho [Ex-director de recursos da Defesa, entretanto detido] num email de 20 de Abril, mas este não chegou aos destinatários por exceder o tamanho limite das mensagens, sendo recusado pelo servidor”, narraria.

Na mesma audição, Cravinho rectificaria mais tarde o bode expiatório cibernético para “o peso excessivo dos anexos” no email, alegadamente responsáveis pelo seu desconhecimento de uma obra milionária no seu próprio ministério.

O argumento é de credibilidade dúbia na medida em que os contractos das adjudicações directas seriam publicados no portal BASE três dias depois desse email, que o ministro clama não ter recebido, onde aliás ainda estão. 819 mil euros de tranche e 750 mil euros de outra, no dia 23 de Abril, num site que é público. Repito: pú-bli-co. Cravinho, estranhamente, não sabia de nada. Ou assim o diz.

Hillary Clinton, no longínquo Verão de 2015, discursou num jantar de campanha no Iowa, socorrendo-se de humor para animar as hostes: “Adoro o Snapchat. Adoro. As mensagens desaparecem todas sozinhas!”, ironizou a então candidata presidencial, perseguida pelo uso indevido do seu endereço electrónico. João Gomes Cravinho escusava de mimetizá-la com tamanha eficácia.

Menos original foi o modo como utilizou a pandemia, em uníssono com o Partido Socialista, para branquear o seu descuido no processo de remodelação do Hospital Militar. “Em primeiro lugar, temos de recordar qual era a situação do país e do mundo em Março de 2020”, defende.

O mínimo de respeito pelas 26 mil vidas perdidas em Portugal para a Covid-19 aconselharia algum cuidado em usá-las como escudo.

Gomes Cravinho, manifestamente, não o tem.

Mea culpa não só minha

Mas o ministro pediu desculpa, dir-me-ão. Lendo o jornal Público, terá sido isso a acontecer. “Ato de contrição de Gomes Cravinho cala oposição”, titulava o diário, após a audição.

“Ato” com certeza. “Contrição” é que nem por isso.

“Se soubesse o que sei hoje, não o teria nomeado para outras funções”, admitiu Cravinho, que, insistindo não ter sabido, se considera absolvido de promover Alberto Coelho.

A questão é que, em parte, sabia.

Como apontou a deputada Joana Mortágua, quando não reconduziu o director-geral no cargo em que este cometera irregularidades legais, Cravinho já tinha conhecimento da auditoria que dava conta dessas irregularidades. O problema é que nomeou o mesmo Alberto Coelho para presidente de uma empresa pública logo a seguir.

E a mesma lógica se aplica ao facto de não ter delegado retroactivamente competências no Ex-director-geral por já ter suspeitas sobre ele. Se as tinha para não o reconduzir, como é que deixou de as ter para o promover?

Três audições depois, esta é a pergunta a que Cravinho continua sem responder.

Fim de linha

Se a isto juntarmos a forma tosca como o ministro evocou um louvor de Aguiar Branco (de 2015) para sustentar a sua decisão (de 2021), torna-se difícil aplaudir a prestação de ontem. Até listas a assembleias de freguesia Cravinho repescou, ignorando o ridículo de comparar a Direcção-Geral de Recursos, que tutelou, a uma junta.

O deputado Francisco César iria mais longe, acusando os colegas de comissão de não terem enviado a auditoria para o Ministério Público quando a receberam, (sendo que a tinham recebido de um ministro que demorou seis meses a fazer isso mesmo).

O açoriano, tão empenhado em salvar o seu ministro, acabaria a contradizê-lo. “Todos nós sabemos que abdicamos um pouco de transparência para ter uma obra mais rápida”, afirmaria (minuto 1, hora 2, segundo 14) quando Cravinho havia assegurado precisamente o inverso. “As instruções para que houvesse celeridade não significavam que as obrigações legais deixassem de existir” (minuto 11, segundo 53).

Quando questionado por Jorge Paulo Oliveira, o ministro cairia definitivamente na dissimulação, comunicando à sala que não informou a comissão da existência de uma auditoria em Fevereiro de 2021, pura e simplesmente, por ninguém lhe ter perguntado sobre essa possibilidade.

Isto já não é cair de podre; é estar podre de não cair ‒ e um governo que proteja isto escolhe apodrecer a seu lado.

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P.S. ‒ Ao fim de quase dez anos de escrita semanal em jornais, talvez por ingenuidade, acalentava alguma esperança de que o país, depois de atravessar uma crise financeira, uma crise sanitária, uma crise inflacionista e uma guerra em solo europeu, encontrasse em si próprio algum ânimo, alguma ânsia de elevação na vida pública.

Aquilo a que assistimos ontem, na Assembleia da República, foi o oposto disso.

Profissionalmente, civicamente, pessoalmente, essa é uma constatação desoladora. 

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