Angola foi dos maiores investidores em Portugal nos anos da crise. Filha do presidente e maior empresa estatal foram protagonistas. O que resta da saída do José Eduardo dos Santos e do Luanda Leaks.
O fluxo de investimento angolano em Portugal ganha força na primeira década do século XXI e bastaram três negócios para colocar o país africano no top dos maiores investidores internacionais. Para além do país origem do capital, as três operações — Galp, BCP e BPI — têm em comum a ligação direta ao presidente José Eduardo dos Santos — falecido esta sexta-feira — através da filha e da maior empresa pública, a Sonangol. Antes da China chegar com as privatizações da era da troika, Angola foi um dos maiores investidores em Portugal a ponto de um título do jornal espanhol El Confidencial afirmar: Portugal, a nova colónia de Angola.
A entrada do dinheiro angolano nas grandes empresas é franqueada em 2006 por um dos principais empresários portugueses que tinha ligações económicas a Angola. Depois de garantir uma posição relevante na Galp, Américo Amorim vai associar-se à Sonangol e a Isabel dos Santos — de quem era sócio no BIC — para dividir o esforço financeiro, mas não o poder de decisão que ficou todo nas mãos do empresário português. A Esperaza tem 45% do capital da Amorim Energia que é a maior acionista da Galp, mas quem manda é o empresário português.
Hoje sabe-se que a Sonangol, então liderada por Manuel Vicente (político e gestor aliado de sempre do ex-presidente angolano), emprestou dinheiro à filha do então presidente angolano. O poder dentro da Esperaza ficou nas mãos do marido de Isabel dos Santos (Sindika Dokolo falecido em 2020), apesar de a Sonangol ter 60% do capital, contra 40% da empresária angolana. Os documentos divulgados em 2020 pelo Luanda Leaks fizeram desta joint-venture um dos pontos da guerrilha jurídica e económica entre os herdeiros do velho poder de Angola — ligados ao clã dos Santos — e os novos homens fortes do regime.
Banca de braços abertos ao capital angolano
Mas recuando 14 anos atrás, o dinheiro angolano é bem recebido em Portugal. Em 2007, ainda em pleno conflito entre acionistas no BCP, a Sonangol recebe autorização do Banco de Portugal para comprar 10% do maior banco português. A petrolífera angolana, liderada por Manuel Vicente, será nos anos seguintes o acionista de referência mais influente, acompanhando aumentos de capital até quase 20% do capital. Apesar de vários rumores de venda, a Sonangol mantém esta posição, mas foi ultrapassada pela chinesa Fosun que é desde 2016 o principal investidor no BCP.
O investimento no BCP foi o primeiro passo de uma estratégia desenhada pelo poder angolano para recuperar os centros de decisão económica e financeira no país. Numa primeira fase, esta política obrigou os bancos portugueses com operações lucrativas no mercado angolano a abrir o capital das suas filiais a investidores locais. Pessoas próximas do regime, desde a filha do presidente a ex-titulares de altos cargos políticos, como os generais conhecidos como Dino e Kopelika. Esta é também a elite que estava a tomar conta dos negócios “privados” em Angola atribuídos por despacho ou decreto presidencial quase sempre sem concurso público.
E numa segunda fase evoluiu para o investimento angolanos nas casas-mães em Portugal dos bancos que estavam em Angola. Isabel dos Santos foi a outra protagonista desse movimento em 2008 — ia crise financeira fazendo as primeiras vítimas na banca portuguesa — quando liderou a compra de 49,9% do Banco do Fomento Angola (BFA), o principal banco comercial do país, e entrou no capital do BPI. O investimento da filha do presidente angolano foi feito com um empréstimo do BCP (onde já estava a Sonangol) que na mesma operação vendeu as suas ações no banco rival. O recurso ao sistema bancário português para financiar as aquisições feitas no país foi uma prática que Isabel dos Santos viria a seguir em outras operações.
A angolana que então todos chamavam de empresária ajudou o BPI a resolver a crise criada pela saída do fundador Itaú — quando em pleno resgate financeiro o banco brasileiro decidiu sair. Em 2012, Isabel dos Santos aumentou a sua posição para 20% do capital tornando-se incontornável na gestão e estratégia do BPI . E quando mais tarde o espanhol CaixaBank tentou ficar com o controlo rebentou um conflito acionista e com a gestão do banco que só foi resolvido com a intervenção política. Foi necessário uma mudança legislativa para evitar a minoria de bloqueio que a angolana tinha nas assembleias-gerais do banco.
O que resta dos investimentos de mais de mil milhões (também feitos com crédito) em Portugal
A venda das ações no BPI na oferta da CaixaBank em 2017 foi uma das operações mais lucrativas no nosso país. E foi apenas uma das muitas guerras empresariais que Isabel dos Santos travou em Portugal nos vários negócios que fez e que mobilizaram investimentos de mais de mil milhões de euros em menos de dez anos. Ao seu lado esteve sempre o gestor português Mário Leite Silva.
Apesar de ainda deter nominalmente alguns dos ativos que adquiriu, essas participações estão hoje condicionadas.
No EuroBic, os direitos de voto foram congelados pelo Banco de Portugal e a participação de 42,5% está à venda. A participação de 26% na Nos, que é detida através da sociedade Zopt, foi alvo de arresto por uma ordem do juiz Carlos Alexandre e a pedido da justiça angolana. A Efacec foi nacionalizada em 2020. E na Amorim Energia, a empresária sofreu já várias derrotas. Em 2021 um tribunal arbitral condenou Isabel dos Santos a devolver as ações da Esperaza, a holding acionista da Amorim Energia à Sonangol — que fica com o investimento indireto na Galp. Já este ano o juiz Ivo Rosa decidiu que os 83 milhões de euros congelados na Esperaza (e resultantes dos dividendos pagos pela Galp) pertencem apenas à petrolífera angolana.
Mas nos tempos da crise e da fuga de investidores em Portugal, o dinheiro da filha do presidente de Angola era mais do que bem vindo. Em 2012, o atual EuroBic é o comprador do BPN, banco que a troika obrigou o Estado a vender em poucos meses (ou liquidar).
No mesmo ano 2012, Isabel dos Santos compra o resto da participação da Caixa Geral de Depósitos na Zon (ex-PT Multimedia) que já lhe tinha vendido 10% da operadora em 2009. O negócio foi financiado com o crédito da Caixa. Quando no ano seguinte a Zon se funde com a operadora de telecomunicações da Sonaecom para criar a Nos, Isabel dos Santos consegue uma posição paritária com a poderosa Sonae. O investimento na segunda maior operadora portuguesa e maior concorrente da poderosa PT encaixava na estratégia de confrontação que a empresária alimentava há anos na Unitel, empresa de telecomunicações angolana que é apontada como o ponto de partida do “império” económico e empresarial de Isabel dos Santos.
Por ordem de Isabel dos Santos, a Unitel bloqueou a distribuição de dividendos à PT. Estes dividendos foram durante muitos anos a principal fonte de rendimento empresarial de Isabel dos Santos, a par dos que receberia pela participação indireta na Galp, sua e do marido. Segundo notícias da investigação, Isabel dos Santos poderia estar, também, a ficar com os dividendos da Galp que caberiam à Sonangol.
Numa tentativa de resolver a seu favor o braço-de-ferro com a PT na Unitel — participação que viria a perder numa decisão de um tribunal arbitral de 2020 que lhe retirou o controlo da operadora angolana –, Isabel dos Santos aproveita a fragilidade da Portugal Telecom, afundada nos escândalo BES/GES, para lançar uma oferta pública de aquisição (OPA) em 2015. Mas a operação sobre a ex-PT nunca chegou ao mercado.
A história de como a empresa criada pela filha do presidente, em sociedade com os aliados políticos de José Eduardo dos Santos — e que por essa via também se tornaram empresários — obteve o direito para explorar o serviço móvel em Angola tem várias versões. A da própria foi contada na entrevista dada ao Observador no final de 2019 quando já se apertava o cerco aos seus negócios. Faltava menos de um mês para o Luanda Leaks.
A Unitel junta no capital a Portugal Telecom, Isabel dos Santos, a Geni, empresa angolana conotada com os interesses de Leopoldino Fragoso do Nascimento (general Dino) e Manuel Vieira Dias (general Kopelipa), e a Sonangol, pelo que também Manuel Vicente fica associado a este investimento. Enquanto presidente da Sonangol durante mais de 10 anos, entre 1999 e 2012, Vicente esteve aos comandos do maior braço financeiro do regime angolano cujos negócios se expandiram muito para além de Angola e dos petróleos. Os dois generais, que trabalharam diretamente com o presidente dos Santos, também surgem associados a contratos com a petrolífera estatal.
Das primeiras dúvidas ao Luanda Leaks
O aparente saco sem fundo para negócios (públicos e privados) em que a Sonangol se parece ter tornado acaba a partir de 2015 quando a desvalorização do petróleo atira Angola para uma recessão. Auditorias revelam discrepâncias e perdas por reconhecer de milhares de milhões de euros nas contas da petrolífera estatal. E quem é nomeado para resolver a crise da maior empresa angolana? A filha do presidente através de um despacho assinado pelo pai um ano antes de abandonar o cargo. Isabel dos Santos contrata consultores internacionais e advogados para fazer a reestruturação da Sonangol, uma operação que resultou em processos na justiça em Angola, depois das revelações do Luanda Leaks.
Em 2017 Isabel dos Santos ainda é a rainha dos negócios, classificada como a mulher mais rica de África pela revista americana Forbes e com a presença em vários rankings internacionais sobre as mulheres mais influentes do mundo. Mas há mais cobertura internacional sobre a origem dos fundos que a tornaram milionária e sua presença em Portugal já está a encolher. A última aquisição realizou-se em 2015 com a compra da maioria da Efacec, empresa de referência da engenharia com vários negócios em Angola.
A transação foi mais uma vez financiada pelos bancos portugueses numa reestruturação de dívida da empresa e dos seus acionistas nacionais, a José de Mello e a Têxtil Manuel Gonçalves. E foi alvo de uma intervenção dura por parte da então deputada europeia Ana Gomes que levantou suspeitas de “lavagem de dinheiro”, suscitando um pedido por parte da comissária europeia da justiça às autoridades portuguesas para averiguar de onde vinha o dinheiro. Pois se Isabel dos Santos recorreu à banca para aquisições, não há notícia em Portugal de que tenha entrado em incumprimento.
A política socialista foi uma das primeiras vozes a questionar publicamente a origem dos fundos por detrás dos investimentos da filha do ex-presidente angolano e apresentou uma denúncia à Procuradoria-Geral da República em janeiro de 2020. Uma semana depois rebenta o escândalo Luanda Leaks com a divulgação de milhares de documentos confidenciais sobre os negócios de Isabel dos Santos investigados por um consórcio de jornais internacionais de referência, representado em Portugal pelo Expresso.
Esta fuga, que teve o dedo do hacker Rui Pinto, foi como abrir a caixa de Pandora da justiça, dos negócios, dos reguladores e da opinião pública contra a carreira empresarial de Isabel dos Santos cuja estrela já estava a perder o brilho desde a chegada de João Lourenço ao poder em 2017. Uma das primeiras decisões do novo Presidente foi exonerar a filha do ex-presidente da liderança da Sonangol.
Os outros investidores que estiveram no ciclo do ex-Presidente
Sem chegarem a ter a visibilidade de Isabel dos Santos, houve outros protagonistas, próximos do ex-presidente, que também fizeram ou representaram negócios em Portugal. Manuel Vicente foi administrador do BCP logo em 2007 representando a Sonangol, mas tornou-se mais conhecido por causa de um caso de justiça que gerou uma mini-crise nas relações luso-angolanas.
Manuel Vicente, que depois da Sonangol foi vice-presidente de José Eduardo dos Santos, foi apanhado em Portugal na Operação Fizz. Este processo resultou em acusações de corrupção e branqueamento de capitais na sequência da investigação a suspeitas de pagamentos a um procurador para arquivar uma investigação criminal contra si. O Ministério Público pediu ao congénere angolano para o constituir arguido, mas Angola, já com João Lourenço na presidência, recusou e o incidente entre os dois países apelidado de “irritante” por António Costa foi resolvido, enviando o processo para a justiça angolana. Já depois do Luanda Leaks, a Procuradoria angolana apreendeu bens a Manuel Vicente.
Os dois generais — conhecidos por Dino e Kopelipa — tiveram também um papel importante naquele que foi o pior negócio português em Angola, o BESA (Banco Espírito Santo Angola). Foram acionistas minoritários do banco controlado pelo BES e liderado por Álvaro Sobrinho até 2013. Ainda que nunca tenha sido especialmente conotado com o ex-presidente angolano, o gestor bancário que Salgado elogiou pela inteligência liderou aquilo que durante anos foi considerado um banco de sucesso em Angola.
O buraco gigantesco descoberto no banco angolano foi um dos golpes que ajudou a deitar ao chão o Banco Espírito Santo em 2014, apesar da garantia estatal que Ricardo Salgado ainda conseguiu obter junto do presidente José Eduardo dos Santos. O famoso aval visava cobrir as perdas geradas por créditos dados a sociedades desconhecidas e sem garantias, créditos esses que foram financiados com recursos da casa-mãe, o BES, quando Salgado era presidente. Essas operações irregulares que levaram também à intervenção do Banco de Angola no BESA terão movimentado mais de seis mil milhões de dólares.
Álvaro Sobrinho é alvo de um inquérito criminal em Portugal por causa do BESA que já resultou na apreensão de bens (imóveis) e a fixação de uma caução das mais elevadas — seis milhões de euros. Sobrinho é suspeito de ter sido o beneficiário de alguns dos créditos concedidos pelo BESA a sociedades offshore e de por essa via ter desviado centenas de milhões de euros do banco a que presidia.
Numa entrevista dada em 2019 à revista Visão, Álvaro Sobrinho acusou os acionistas angolanos do BESA, precisamente os generais Dino e Kopelipa, de terem, em conjunto com o BES, montado um plano para tomarem de assalto o BESA depois de terem beneficiado de créditos sem garantia financiados pelo BES. É a referência a uma assembleia-geral realizada em Luanda já depois da resolução do BES, decidida em Lisboa, e na qual os representantes jurídicos do banco português foram impedidos de entrar. Nesta assembleia o BESA passou a Banco Econômico com a bênção do Banco de Angola e os créditos reclamados pelo BES sobre o antigo BESA ficaram quase impossíveis de recuperar.
Sobrinho foi um homem de confiança de Ricardo Salgado em Angola até 2012, mas em 2013 foi afastado do cargo de presidente do BESA pelos acionistas.
Em Portugal, o negócio mais conhecido de Álvaro Sobrinho foi o Sporting onde se tornou o maior acionista a seguir à SAD com quase 30% do capital. O gestor angolano foi também investidor nos media, tendo sido acionista dos jornais Sol e i até 2015. A Holdimo de Sobrinho ainda será acionista da SAD do clube.
Sobrinho terá também investimentos imobiliários tal como os generais que foram acionistas do BESA. A Hélder Vieira Dias Junior é ainda atribuída a propriedade de quintas de vinho no Rio Douro. O general Kopelipa foi chefe da casa militar de José Eduardo dos Santos e é uma das figuras próximas do ex-presidente que caiu em desgraça na era de João Lourenço. Segundo uma notícia do jornal Expresso, os generais Kopelipa e Dino, que foi consultor de comunicação do antigo presidente, mostraram-se disponíveis para entregar ativos à justiça angolana e assim limitar as consequências penais dos inquéritos. Os dois foram constituídos arguidos em 2020 pela procuradoria angolana e são suspeitos de crimes de corrupção, branqueamento de capitais, falsificação e burla.
Ana Suspiro
Observador