Costa (que ataca empresas) e Marcelo (que defende D. Clemente) não hesitam em intimidar quem perturbe os seus interesses. Em Portugal, o respeitinho prevalece sobre o enquadramento constitucional.
Episódio 1. Esta semana, após uma entrevista do presidente da Endesa que anunciou aumentos de 40% nas facturas de electricidade, o primeiro-ministro interveio com todo o vigor. Esclareceu ou desmentiu as declarações do presidente da Endesa com os números que, a seu ver, serão os correctos? Nada disso: António Costa retaliou e executou um ataque directo sobre a empresa. A partir de agora, a administração pública não pode proceder ao pagamento de quaisquer facturas emitidas pela Endesa sem validação prévia por parte do governo. Mais: o primeiro-ministro incentivou os organismos públicos a consultar o mercado, com vista à “contratação de novos prestadores de serviço que mantenham práticas comerciais adequadas”. A interferência no mercado é evidente. A retaliação política também, assim como o aviso: quem se meter com o governo de António Costa sofrerá as consequências.
Como sempre na política, há quem censure esta actuação (PSD-IL) e há quem bata palmas (PCP-BE). Mas o ponto não é tanto de opções políticas (porque o governo tem poder para decidir), mas de formas de exercer o poder. O primeiro-ministro montou uma reacção em tom de ameaça contra uma empresa privada. E, para piorar, nada neste comportamento é inédito. No passado, António Costa desencorajou o uso da operadora Altice (após os incêndios de Pedrógão Grande), acusou a EDP de “contabilidade criativa e manhas”, prometeu “dar uma lição exemplar” à GALP. Ou seja, António Costa está sucessivamente a pisar o risco para intimidar todos os agentes políticos e económicos que não estejam alinhados com o seu governo. Isto é, a todos os níveis, um comportamento censurável.
Episódio 2. Na semana passada, após uma reportagem do Observador sobre abusos sexuais na Igreja e a sua ocultação por parte de D. José Policarpo e D. Manuel Clemente, o Presidente da República apressou-se a interferir — sim, a palavra é mesmo esta. Fazendo declarações “enquanto pessoa” e partilhando a sua “opinião pessoal”, Marcelo Rebelo de Sousa assegurou que não via “em nenhum deles nenhuma razão para considerar que pudessem ter querido ocultar da justiça a prática de um crime”. E assim, numa frase, o Presidente da República fez picadinho da Constituição da República, da separação de poderes e da separação entre o Estado e a Igreja: é inconcebível que o mais alto representante do Estado português se pronuncie “enquanto pessoa” e, como católico e próximo de D. Policarpo e D. Clemente, venha influenciar (e intimidar) investigações que competem às autoridades judiciais. De resto, o cinismo de fazer estas declarações “enquanto pessoa” só demonstra o óbvio: Marcelo sabe que pisou o risco. Mas sabe, também, que já o fez inúmeras vezes e que ninguém se importa que o risco seja pisado.
O que estes dois episódios têm em comum? Mostram como tanto António Costa como Marcelo Rebelo de Sousa exercem o seu poder: não hesitam em pisar o risco, de forma a influenciar ou a intimidar quem perturbar os seus interesses. O ponto é que, numa democracia madura, isso seria impossível de ser feito sem o escrutínio implacável das instituições políticas e da sociedade civil. Mas, em Portugal, o respeitinho prevalece sobre a lei e sobre o enquadramento constitucional. Seria, portanto, fácil dizer que a culpa é deles. Mas, em bom rigor, os principais responsáveis somos nós — porque não estranhamos os abusos, porque os aceitamos como trivialidades e porque nos contentamos com uma versão tropical de democracia europeia.
Alexandre Homem Cristo
Observador
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