quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

Eu amo a portugalidade


Fernando d’Oliveira Neves - Embaixador jubilado.


É claro que o Império Português foi colonialista e racista. Mas todas as

sociedades, por mais opressoras que sejam, têm vida para além dessas

dimensões. É da tradição diplomática, ou melhor, era, que, quando um

embaixador acreditado num posto terminava a sua missão, o ministro do

país anfitrião lhe oferecia um almoço de despedida. Tal era possível quando,

em cada capital, havia uma dúzia de embaixadores. Hoje, numa capital como

Lisboa esse número ronda a centena. É impossível que todos os almoços

sejam oferecidos pelo ministro. Na sua indisponibilidade, é substituído por

um dos secretários de Estado ou pelo secretário-geral do ministério.

Era eu secretário de Estado dos Assuntos Europeus, quando me pediram

para oferecer o almoço de despedida ao embaixador de Cabo Verde,

Onésimo da Silveira. Nunca o tinha visto e confesso que só li o respectivo

currículo pouco antes de me dirigir para a casa de jantar do Palácio das

Necessidades. No fim do almoço, faço um brinde, com as banalidades usuais,

apenas reforçadas pela forte singularidade das relações entre os dois países

e o facto de saber que o meu convidado era poeta. Quando acabo, o

embaixador Onésimo da Silveira levanta-se, com um pequeno caderno na

mão e, antes de começar a ler, diz “Eu amo a portugalidade”. Fiquei

encandeado perante a surpresa e a profunda sabedoria desta frase

maravilhosa. Tive vontade de pintar a cara de preto, face à banalidade do

que dissera. A conjugação do conceito de portugalidade com o verbo amar

enfeitiçou-me e fiquei, encantado, a ouvir a magia do discurso que o

embaixador continuou a ler, levando-nos pelos meandros mágicos da

experiência dessa portugalidade, tão bem cognominada.

Este episódio ficou-me atravessado. Tentei, reconheço que sem a

persistência necessária, obter o texto, sem nunca o conseguir. Agora, que

tantos dislates se ouvem sobre a expansão portuguesa, esse valor que mais

alto se alevantou e calou as musas, tenho-me lembrado dele.

É claro que o Império Português foi colonialista e racista e mais outras

práticas condenáveis de todas as sociedades humanas. Dessa ignomínia não

restam dúvidas. Apesar de tudo, parece avisado olhar para cada época em

função dos valores então prevalecentes. Vivi o bastante para ver valores

considerados vitais desaparecerem e, felizmente, ver surgir novos que

nunca me tinham passado pela cabeça. Mas todas as sociedades, por mais

opressoras que sejam, têm vida para além dessas dimensões. A expansão

portuguesa foi muito mais que isso. Foi uma das epopeias que mais

mudaram a História, dando aos homens uma nova e real dimensão do

mundo em que viviam.

Até pelo limitado número de portugueses que a fizeram, provocou uma

convivência sem precedentes de pessoas de todas as partes do mundo, que,

no quotidiano, se misturaram, fizeram amizades, riram em conjunto,

beberam e comeram ao pôr do sol dos cantos do mundo por onde andámos

e onde muitos ficaram, trocaram experiências e constataram a relatividade

das suas virtudes, crenças, medos e ambições.

Não é fácil definir a portugalidade. Talvez o resultado positivo desse

intercâmbio seja a criação e perpetuação de laços afectivos e familiares

entre gentes das mais diversas partes do mundo. As amas índias da Casa

Grande poderão ser exemplo. Ou talvez não passe de uma amarga saudade

doce, de uma utopia que, por vezes e por instantes, se transforma em

realidade. Talvez seja mais simples dar exemplos concretos.

Portugalidade é estar na antecâmara do chefe do Governo de Malaca, a

conversar com um chinês, e de repente este dizer: “Mas o Senhor é

português? Eu também. Sou da freguesia de S. Pedro, em Singapura, e nos

dias 13 de cada mês fazemos a procissão de Nossa Senhora de Fátima”.

Portugalidade é chegar a Jacarta, ao fim de 25 anos de hostilidade em

torno de Timor, ser levado a jantar no centro histórico da cidade pelo

embaixador do Brasil, amante da presença portuguesa na Indonésia, e ouvi-

lo dizer que o canhão que está no meio da praça é um canhão português,

onde as noivas se vão fotografar no dia do casamento, porque é um símbolo

da fertilidade.

Portugalidade é ser-nos dito, no Barém [Bahrein] e no Kuwait, que os

únicos edifícios de pedra que ali existem anteriores ao século XX são os

fortes portugueses que lá resistem.

Portugalidade é ouvir Samora Machel a olhar para o Índico e dizer do seu

orgulho, quando se lembra que Vasco da Gama ali passou e, logo a seguir,

afirmar, num tom meio agastado: “Nós é que descobrimos o Brasil e agora

têm um Presidente que se chama Geisel!”.

Portugalidade é ouvir um goês a manifestar o orgulho num seu remoto

antepassado agraciado com a Cruz de Cristo pela Rainha D. Maria II e outro

a lembrar que o trisavô fora Presidente do Supremo Tribunal de Justiça.

Portugalidade é ir jantar ao International Hotel do Barém, onde decorria

a semana gastronómica do Texas, e chegar à mesa um empregado indiano,

vestido à cowboy, que nos diz, em bom português, “boa noite” e tem na

farda um dístico onde se lê o seu nome: Bragança.

Portugalidade é verificar que os católicos de diversos países da Indochina

falam um português arcaico a que chamam christian, que é para eles

sinónimo de português, e por isso se dizem portugueses.

Portugalidade é ir ao Portuguese Setllement de Malaca, encontrar uma

mistura inédita de raças, malaios, chineses, indianos, e ouvi-los a cantar e

dançar o Tia Anica de Loulé, em trajes minhotos, e a falar um português

compreensível.

Portugalidade é um liurai timorense desenterrar e entregar-nos uma

bandeira portuguesa e dizer que o pai dele a tinha enterrado quando Timor

foi invadido pela Indonésia, e lhe disse para a dar aos portugueses quando

(não se) eles voltassem.

Portugalidade é ir ao CCB assistir a uma sessão das comemorações dos

500 anos da Descoberta do Brasil e ouvir o embaixador brasileiro, Sinésio

Sampaio Goes, ele também, como historiador, cultor da portugalidade, a

apresentar o chefe da maior tribo de índios do Brasil, os índios tupis, se a

memória não me falha. Vemos entrar um senhor com um aberto ar jovial,

envergando um casaco de tweed e um maravilhoso cocado que lhe caía

pelas costas até aos calcanhares, e ouvi-lo dizer, com ostensivo júbilo e

orgulho: “O meu nome é António Cardoso e o meu avô era de Trás-os-

Montes”.

Acabou o Império colonial português e a opressão de uma nação sobre

as outras. Fica na História um admirável património universal, físico e

afectivo. Este último, símbolo notável de humanismo, será a portugalidade.

Que Onésimo da Silveira me ensinou a amar.

publicado no jornal Público

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