quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

Um ex-ministro da Defesa salvo pela dúvida e o pacto entre arguidos que não convenceu. O que ainda não se sabia do acórdão de Tancos. Azeredo Lopes.

Tribunal considerou que encontros entre ministro e diretor da PJ não ficaram provados e Azeredo Lopes foi salvo pela dúvida. Também concluíram que os militares combinaram uma versão e que mentiram.

A verdade é só uma, mas num julgamento há sempre várias e por vezes a prova não é suficiente para decidir. É preciso convicção. E, por isso, o tribunal de Santarém, em caso de dúvida, decidiu absolver o ex-ministro da Defesa, Azeredo Lopes, dada a fragilidade das provas que o Ministério Público encontrou para dizer que este sabia que a Polícia Judiciária Militar (PJM) estava a investigar ilegalmente o assalto a Tancos. No entanto, não acreditou no grupo de militares da PJM e da GNR que, ao contrário do ministro, acabaram condenados — considerando mesmo que todos eles arquitetaram uma defesa em tribunal que não faz qualquer sentido.

No acórdão de mais de 800 páginas assinado a 7 de outubro, o coletivo de juízes presidido por Nelson Barra até deu razão à acusação quando diz que existiram vários encontros entre o então governante e o à data diretor da PJM, Luís Vieira, quando ainda não se sabia onde estava o armamento de guerra levado dos Paióis Nacionais de Tancos. E que Vieira chegou mesmo a mostrar o seu desagrado pelo facto de a investigação ter ido parar às mãos da PJ civil. Mas daqui, lê-se na decisão, não se pode concluir que o responsável pela pasta da Defesa soubesse mais do que sabia, por exemplo, Marcelo Rebelo de Sousa com quem Vieira também falou numa visita a Tancos. E que lhe tivessem dito que estavam a fazer uma investigação ilegal.

“Não é suficiente para, por si só e na ausência de prova adicional, demonstrar com a necessária certeza e rigor exigidos pelo direito penal que o arguido Luís Vieira tenha transmitido ao arguido Azeredo Lopes que pretendia fazer ‘uma investigação paralela, à revelia da PJ e do Ministério Público’ e que pretendiam encetar negociações com um indivíduo ligado ao assalto para entrega do material militar e que como contrapartida este exigia não ser responsabilizado”, lê-se.

Os juízes lembram mesmo que alguns desses encontros descritos pelo Ministério Público foram apenas baseados na ativação de antenas dos telemóveis dos arguidos e que era preciso mais prova para mostrar que eles realmente estiveram juntos, uma vez que antena é ativada numa área muito extensa. Por isso, restou valorizar as declarações do próprios arguidos e do chefe de de gabinete do ministro, o general Martins Pereira, que terá testemunhado alguns desses encontros. Em caso de dúvida, porém, beneficia-se o arguido. E foi o que aconteceu, valendo a Azeredo Lopes uma absolvição pelos crimes de abuso de poder e de denegação de justiça e prevaricação de que vinha acusado.

“Eventuais dúvidas sobre o modo como os factos ora em apreço terão ocorrido, sempre terão de militar em benefício do arguido por força do princípio da presunção da inocência traduzido pelo brocardo in dubio pro reo, dando como não provados os referidos factos”, lê-se.

Mais, prossegue o tribunal, se Azeredo Lopes soubesse do plano criminoso dos arguidos da PJM e da GNR antes do “achamento”, não fazia sentido que Luís Vieira e o porta-voz da PJM, o major Brazão, fossem ter com ele ao seu gabinete a 20 de outubro de 2017 para lhe dar conta de que na base do “achamento” das armas não estava uma chamada anónima, como o comunicado público revelava, mas um informador. Uma informação que para Azeredo Lopes, segundo o próprio em julgamento, “lhe fazia mais sentido”, uma vez que “nos filmes policiais a que assiste os policias costumam proteger os informadores”.

O tribunal deu como provado porém, que através do seu chefe de gabinete, Martins Pereira, Azeredo Lopes fora de facto informado de que o diretor da PJM, Luís Vieira, tinha já sondado as equipas de Equipa de Inativação de Engenhos Explosivos do Exército para perceber se estavam prontas caso viessem a ser encontradas as armas, “o que o fez acalentar a esperança quanto à possibilidade da existência de avanços na investigação, no que respeita à recuperação das armas”, explicou o ex-governante em tribunal. Foi aliás esta a justificação que deu quando lhe perguntaram porque tinha mandado ao deputado Tiago Barbosa uma mensagem após o“achamento” revelando não estar surpreso com a recuperação das armas. “Eu sabia (…) Mas, como é claro, não sabia que ia ser hoje”, escreveu o então ministro.

O coletivo de juízes deixou mesmo um recado a Azeredo, lembrando que “por uma questão de cortesia institucional” devia ter informado a Procuradora Geral da Republica dessa informação. Uma falta de cortesia que, ainda assim, à luz da lei, não indicia que ele quisesse proteger os militares de um possível processo criminal ou disciplinar, lê-se no acórdão — e já o procurador de julgamento o tinha dito em alegações finais.

Igual entendimento para com a estrutura superior hierárquica da GNR, que autorizou três militares do Núcleo de Investigação Criminal da GNR de Loulé a colaborar com a PJM, sob pretexto de estarem a investigar um outro processo no Porto. Ficou claro para os juízes que o tenente-coronel Luís Sequeira e os coronéis Taciano Correia e Amândio Marques pensavam que os seus homens estavam a investigar outro crime pelo que foram absolvidos.

Ministro não sabia e militares da PJM tentaram enganar o tribunal

O tribunal não encontrou prova suficiente para condenar Azeredo Lopes, mas o mesmo não aconteceu em relação aos militares da PJM e da GNR que negociaram com João Paulino a entrega das armas e que acabaram condenados por favorecimento pessoal praticado por funcionário a penas suspensas entre os dois anos e meios e os cinco anos.

Durante o julgamento, estes arguidos tentaram convencer o juiz de que João Paulino era para eles um informador e que desconheciam por completo que ele tinha participado no crime, como veio entretanto a PJ a descobrir. Mas essa versão não convenceu. E os juízes chegaram mesmo a valorizar o próprio depoimento de Paulino em detrimento do dos militares, que considerou terem feito um pacto e concertado testemunhos.

Para o tribunal, desde o momento em que os militares não registaram em lado algum os encontros que mantiveram com o arguido na zona de Tomar, “optaram, ao arrepio de quaisquer normas processuais penais, por simular que o aparecimento das armas tinha resultado da informação de uma denúncia anónima efetuada através de uma chamada telefónica realizada para o piquete da PJM”, ocultando a existência de um informador.

E foi esta a versão que os polícias mantiveram desde o dia do achamento das armas num descampado na Chamusca, a 18 de outubro de 2017, até às suas detenções, a 25 de setembro de 2018. Durante quase um ano, nenhum deles contou à PJ ou ao MP o que tinha acontecido de facto. “Tendo presente que todos os referidos arguidos são órgãos de polícia criminal, não consegue este tribunal coletivo encontrar qualquer explicação lógica processual no comportamento assumido pelos mesmos, se não que a versão dos factos apresentada pelo arguido João Paulino se apresenta como credível e a única que é consentânea com os comportamentos processualmente anómalos assumidos pelos referidos arguidos no processo”, lê-se no acórdão.

Os magistrados não percebem mesmo porque houve sequer a necessidade de criar um segredo tão grande em torno de uma personagem que era um informador, e que só por isso a sua identidade seria protegida como acontece noutros processos. “Porquê todo este secretismo por parte dos arguidos à volta da existência de um simples “informador”, não revelando a sua existência sequer aos procuradores titulares do inquérito se não existia acordo algum com o mesmo?”, interroga o próprio coletivo. Ainda assim, o tribunal não valorou todo o depoimento de Paulino, que declarou que lhe foi prometida imunidade e que não enfrentaria qualquer processo caso colaborasse, — informação dada como não provada pelos juízes.

O tribunal até admite que, numa primeira fase, os militares da GNR de Loulé, Lima Santos, Bruno Ataíde e José Gonçalves, — que acabaram condenados como a PJM, — não tivessem conhecimento da investigação que a PJM estava a fazer, mas considera muito difícil que não se tenham apercebido rapidamente depois dos encontros e contactos com Paulino. Aliás, houve mesmo uma testemunha em tribunal, comandante do Destacamento da GNR de Loulé, que assegurou que eles sabiam bem que andavam a investigar o desaparecimento das armas dos Paióis Nacionais de Tancos — uma investigação que tinha ficado com a PJ civil.

A concertação de defesas “forçada e artificial”

Os juízes também notaram que os arguidos da PJM tentaram atribuir culpas ao coronel Estalagem, então Diretor da Unidade de Investigação Criminal da PJM, para que fosse ele o responsável pela investigação ilegal. Uma versão que também não convenceu os juízes que referem, no acórdão final, que houve “uma notória tentativa de concertação de defesas entre os referidos arguidos (…) tentando de forma patente e ostensiva incriminar e passar responsabilidades criminais” ao coronel Manuel Estalagem, que eles acreditam ter sido o autor da queixa anónima que acabou por denunciar ao MP toda esta investigação paralela, levando à sua detenção. Aliás, alguns já o tinham tentado fazer na comissão de inquérito ao caso que decorreu no parlamento.

Com efeito, não faz qualquer sentido os arguidos da PJM procurarem escudar-se numa justificação de que receberam ordens desta testemunha para nada fazerem. Cumpre relembrar que a nossa Constituição prescreve que ‘cessa o dever de obediência sempre que o cumprimento das ordens ou instruções implique a prática de qualquer crime’, lê-se. “Parecendo-nos ostensivo de que se verificou uma tentativa de concertação de versões entre os arguidos para procurarem, a todo o custo, escamotear as suas próprias responsabilidades nos factos praticados”.

O tribunal dá mesmo um exemplo concreto deste “pacto” entre os arguidos para concertarem uma defesa lembrando que os militares da GNR Bruno Ataíde e Paulo Gonçalves fizeram questão de dizer em tribunal que nos contactos com João Paulino o arguido Pinto da Costa, da PJM do Porto, ia fazendo chamadas a Estalagem dando-lhe conta da situação. No entanto, o registo de faturação do telefone do responsável pela Investigação Criminal da PJM não tem qualquer chamada, nem mesmo o WhatsApp. Os juízes lembram também que, perante o juiz de instrução, Vasco Brazão teve um discurso diferente ao contar que o diretor da PJM, Luís Vieira, lhe tinha dado instruções para pouco dizer a Estalagem sobre o que andava a fazer. Tinha instruções para dar um conhecimento meramente “en passant” das diligências realizadas sem serem específicos, com o que estavam a fazer, recorda-se no acórdão.

“Não nos mereceram qualquer credibilidade as declarações prestadas a esse nível pelo arguido Vasco Brazão, nas quais este procurou rejeitar a versão dos factos que tinha transmitido no referido interrogatório, referindo que prestou tais declarações unicamente porque estava pressionado e cansado, explicação que não tem qualquer sentido ou lógica face às regras da experiência comum, para mais tratando-se de um militar experimentado e altamente treinado para reagir a situações de grande pressão”, lê-se.

Foi mesmo Luís Vieira quem conduziu toda esta investigação paralela, tendo mesmo havido um encontro com os militares na sua casa em Sesimbra. “Tudo isto, nos inculca assim a convicção segura e fundada de que foi o arguido Luís Vieira a dirigir as operações desta ‘investigação’ na PJM e que como o Coronel Manuel Estalagem funcionava como elemento de ligação à PJ, o mesmo, à semelhança do Capitão Bengalinha [também afastado da investigação], foi mantido totalmente afastado e à margem da investigação “paralela” da Polícia Judiciária e do Ministério Público, que os arguidos Vasco Brazão, Pinto da Costa, Lage de Carvalho faziam juntamente com os arguidos Bruno Ataíde, Lima Santos e José Gonçalves, sob a liderança do arguido Luís Vieira, por temerem que os mesmos denunciassem tais comportamentos à Polícia Judiciária.

Por que caiu a maior parte dos crimes?

Do 23 arguidos acusados pelo assalto e pele investigação ilegal, o tribunal condenou onze e deixou cair vários crimes, como o de associação criminosa,  tráfico de armas e, até, tráfico de droga. Do grupo de dez arguidos que o Ministério Público considerou ser liderado por João Paulino, ex-fuzileiro, acabaram condenados quatro, três deles por terrorismo e um apenas por tráfico de droga.

O tribunal admite não ter conseguido provar que todos eles formavam uma rede de tráfico de droga e que se juntaram para assaltar os Paióis Nacionais de Tancos, como referia a acusação. Assim,  João Paulino, que terá planeado o crime, foi condenado a uma pena única de oito anos de cadeia por terrorismo e tráfico, os mesmos crimes que levaram à condenação por cinco anos do seu amigo Hugo Santos. O terceiro a participar no assalto, João Pais, foi condenado a cinco anos apenas pelo crime de terrorismo. Já Jaime Oliveira, que tinha droga na sua posse quando foi detido, foi condenado a uma pena de multa por tráfico de droga.

No caso concreto não se provou que os arguidos tenham atuado em comunhão de vontades e conjugação de esforços, cumprindo um plano previamente traçado e conjuntamente executado, pelo que, os referidos arguidos apenas serão condenados como autores material dos crimes de tráfico em que vão condenados, em autoria singular”, lê-se no acórdão para justificar porque cai o crime de tráfico de droga para a maior parte deles.

Do que ficou provado, para o tribunal, também não foi suficiente para considerar o crime de associação criminosa porque, como explicam, apesar de terem sido cometidos crimes não existe neste grupo “a formação da vontade coletiva de onde se possa extrair a existência de uma ‘entidade autónoma’, que se diferencie das vontades e interesses particulares e lhes seja superior, com uma certa estabilidade e permanência”, como a lei prevê para que seja considerada uma associação criminosa. Ou seja, este arguidos não “estavam comprometidos com os interesses da vontade coletiva da associação que formaram, mais do que com os interesses individuais de cada um deles”. O mesmo raciocínio foi usado para livrar os militares da PJM e da GNR deste crime.

O crime de tráfico de armas também acabou por cair porque o material foi devolvido. Tanto Paulino como os polícias que com ele negociaram a entrega atuaram com o objetivo de devolver o material. Embora o coletivo de juízes sublinhe que João Paulino não devolveu de imediato todo o material furtado e só o fez já depois de começar o julgamento. Nessa altura tinha em seu poder, numa propriedade da avó perto de Ansião:  1450 munições de 9mm e, ainda, com 1 disparador de descompressão, 2 granadas de gás lacrimogéneo, 1 granada ofensiva, 2 granadas ofensivas de corte para instrução, 20 cargas linear de corte CCD20, 10 cargas linear de corte CCD30 .

A cessação da conduta que o arguido João Paulino vinha encetando, não precedeu de determinação voluntária do mesmo arguido, mas de conjunturas externas que o levaram a assim atuar, visando desta forma apenas eximir-se à responsabilidade penal da sua conduta”, lembraram os juízes que consideram que o arguido pensou que assim podia ter uma atenuação da pena. Pesou, porém na decisão, a sua colaboração “reticente e insípida”, que conforme consideraram os magistrados não facultou “provas ou informações, tão pouco decisivas, que conduzissem à identificação e captura das pessoas”. O que foi determinante também para livrar os seus amigos da prisão.

Quanto ao crime de denegação da justiça e prevaricação, de que vinham acusados o então ministro da Defesa, os seis militares da PJM, entre eles o seu diretor, e os seis militares da GNR a decisão também foi diferente.

Em relação a Azeredo Lopes, também acusado de abuso de poder, a lei prevê que os titulares de cargo políticos tomem medidas caso ser apercebam de alguma irregularidade. Só que, além de o tribunal considerar que ele não sabia de facto o que se estava a passar, não podia fazê-lo, porque o ministro da Defesa não tem competência disciplinar sobre os militares da PJM, como aliás Azeredo Lopes sempre referiu em sua defesa, mesmo no parlamento.

Também os oficiais superiores da GNR que autorizaram que os militares da GNR de Loulé trabalhassem com a PJM, assim como Nuno Reboleira, do Laboratório de Polícia Científica da PJM, e José Costa (que fez a chamada anónima) não sabiam da investigação que corria à revelia da PJ civil logo, argumenta o tribunal, foram também absolvidos deste crime.

Já os militares que participaram nesta investigação ilegal, entre eles o diretor da PJM, o seu porta-voz Vasco Brazão, o amigo deste, o major Pinto da Costa e o seu investigador Lage de Carvalho, assim como o sargento da GNR de Loulé, Lima Santos, e os seus dois militares Bruno Ataíde e José Gonçalves, foram absolvidos deste crime porque foram condenados pelo crime de favorecimento pessoal por funcionário — o que para o tribunal é um crime que concorre com o de denegação de justiça pela sua semelhança. Logo, a punição de um, esgota o outro.

Ministério Público e arguidos ainda podem recorrer desta decisão.

Sónia Simões

Observador

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