Quando se é Médico, quando se ouve sem preconceito, é inevitável que se acumulem histórias, algumas das quais justificam registo.
De início, quando comecei a atividade profissional via tudo pela lente do conhecimento, do saber e de uma ética ditada pelos princípios, os meus princípios. Estava então longe de compreender que os valores dos outros não eram forçosamente os meus. Como um qualquer recém-licenciado sentia-me "endeusado", demasiado dono do meu umbigo. Não era verdadeiramente Médico. Para o ser teria, não de "julgar" as pessoas, mas de as compreender e aceitar por mais estranhas que as suas ações ou motivações parecessem. Teria de crescer, de aprender não medicina, mas a ser Médico, algo que não resulta só do estudo ou da aplicação do conhecimento. Só quando este acrescento ocorre e dita a bonomia com que ouvimos e compreendemos o outro, só então somos Médicos. Ser-se Médico é ajudar o outro, "o doente" e, para isso, não basta saber medicina, é preciso sair do pedestal da ciência e conhecer as pessoas e sua cultura – "quem só sabe de medicina, nem de medicina sabe" (José de Letamendi in Curso de Clínica General ó Canon Perpetuo de la Práctica Médica; volume II, Madrid, 1894 – pag. 20).
Por entre a rotina, tanta coisa igual, as pessoas são sempre diferentes, sempre com características singulares e uma luminosidade própria e encantadora. E quando se é Médico, quando se ouve sem preconceito, é inevitável que se acumulem histórias, algumas das quais justificam registo. É uma dessas que aqui trago hoje.
Era uma tarde de outono. Um fim de tarde meio chuvoso, embrulhado num frio húmido de incómodo maior que o registado no termómetro. E sim estava frio, mas um frio entranhado, alojado nos ossos, um frio que não era bem um frio, era mais um desaconchego que não dava tréguas a camisolas e casacos.
As tardes já estavam mais curtas, mas nem por isso a rotina permitia que o ritmo biológico se adaptasse ao inverno que se aproximava. O trabalho continuava e as exigências faziam-se sentir sem olhar a uma luminosidade que se encurtava a cada dia. As rotinas são assim, fazem-se demasiadas vezes sem sobressalto e em módulo automático, como se o universo tivesse de se adaptar. No "juízo final" todos fomos "métro, boulot, dodo". Assim era essa tarde, fria desconfortável e preenchida por "rotinas" que se desempenhavam sem grande sobressalto. Estava em consulta desde as 16 horas e a D. Joana seria a sexta que nesse fim-de-tarde estava marcada.
Em regra, e creio que isto se passa na maior parte das consultas de ambulatório, os doentes procuram o médico por problemas menores, que, só são menores depois de saberem que o são, até lá são sempre problemas.
Assim era o caso da D. Joana. Tinha uma rinite alérgica bem controlada, que nos últimos meses se tinha agravado e se acompanhava de urticária – uma erupção sempre incomodativa pelo prurido que quase invariavelmente se lhe associa.
A urticária é uma doença, ou melhor, é a forma como muitas situações clínicas se expressam, independentemente das causas subjacentes. E é uma "entidade" ingrata, em particular quando se estende no tempo, porque apesar de frequente, raramente se lhe encontra uma causa que a justifique.
É curioso constatar, tal como em muitas outras situações da vida, também na doença as pessoas tendem a penitenciar-se, atribuindo a si ou aos seus atos a causa dos seus males. Numa lógica semelhante os doentes com urticária tendem a atribuir os sintomas ao que fizeram antes do rash. Questionam-se se não foi a refeição anterior, a roupa que usaram nesse dia ou do detergente com que a lavaram a causa da sua maleita? Algumas veem os sintomas como uma forma de punição e atribuem-nos, por vezes com razão, a estados de maior ansiedade ou melancolia. Enfim, há na relação entre a causa e a consequência, um simbolismo do pecado, onde as pessoas procuram numa teleonomia ou num castigo culposo dar sentido ao que lhes vai sucedendo.
E a associação entre doença e culpa não é apenas fruto de uma imaginação supersticiosa. Ela corresponde à procura pelo homem de um sentido para tudo o que lhe acontece, sobretudo para eventos dolorosos ou inexplicáveis. É desta forma que a doença muitas vezes é vista como uma punição numa narrativa que o doente constrói e onde a "dor" deixa de ser um mero acaso biológico e passa a ser uma consequência moral. Essa penitência oferece, paradoxalmente, algum conforto – se o sofrimento tem como causa as minhas ações, então existe ordem e lógica e talvez haja redenção.
Contudo, esse mesmo raciocínio é também cruel, porque transforma o indivíduo em juiz e réu de si mesmo. E assim, uma urticária, que poderia ser entendida como um episódio, passageiro e independente da vontade, converte-se numa falha pessoal que, em vez de encontrar alívio nas causas, acaba por encontrar nas explicações um reforço da ansiedade e do sentimento de culpa. É como se a pele, ao inflamar-se, exprimisse no corpo um pecado onde a punição se tornou visível.
Este modo de pensar ecoa na tradição e nos arquétipos culturais. Na tragédia grega, em Édipo Rei, Sófocles mostra como a peste que assolou Tebas foi assumida como a culpa moral de uma falha cuja revelação seria a purga redentora. Já na era cristã, Santo Agostinho, via na dor e na doença os vestígios do pecado original, marcas indeléveis de uma humanidade em queda, enquanto para Nietzsche, em "A Genealogia da Moral", a culpa era um sentimento que convertia a dor em memória e penitência.
Já mais contemporaneamente, Susan Sontag denunciou a insistência de se transformar a doença numa metáfora moral, como se cada febre ou ferida fosse a confissão de uma qualquer falha íntima. E, para citar um autor português, Saramago em Ensaio sobre a Cegueira, a epidemia que assolou a população, não era apenas uma desordem física, mas uma metáfora com que descreveu uma humanidade que tropeçava na própria culpa.
Quando alguém se interroga se o desconforto resulta da última refeição, da roupa ou do estado de espírito, a causa que procura para o rubor não fala apenas de si. Insere-se numa tradição milenar onde o sofrimento precisa de explicação e no caso, o corpo se oferece como palimpsesto para uma culpa escrita a vermelho e transformada em castigo.
E a D. Joana, a sexta doente dessa tarde, inseria-se nessa longa tradição de culpa, mas trar-me-ia também algo de inusitado e verdadeiramente insólito.
A sua urticária arrastava-se há um par de meses. Já a tinha visto em consulta umas três vezes e, como acontece na maioria destes casos, a procura de uma causa única é quase sempre uma demanda impossível. Nestes doentes, a opção passa por controlar os sintomas e ficar menos focado na procura de uma causa. E por isso, invariavelmente, a consulta começa por questionar como andou nos últimos meses, se teve sintomas e fez a medicação conforme prescrito.
Nesse dia, a D. Joana tinha entrado no consultório, com um ar mais pesado que o habitual. A sua pele estava "limpa" sem vestígios da vermelhidão, mas o seu semblante era carregado e bem diferente do habitual. Quando lhe perguntei como tinha andado, disse-me que não estava pior – o que me deixa sempre desconcertado, mas o seu rosto denotava uma preocupação que eu teria de perceber.
Disse-me que os sintomas iam e vinham de forma idêntica ao habitual, mas que, quando tomava a medicação ficava assintomática ou praticamente sem sintomas.
Quando tomava a medicação? Perguntei de forma mais impositiva, pois já lhe tinha explicado que necessitava de a fazer regularmente para ter qualidade de vida.
Sabe como é, disse-me ela enquanto ajeitava a gola da blusa, quando ando bem paro a medicação para ver se isto já se foi de vez. Aliás, e não se esqueceu de frisar, não quero tomar a medicação muito tempo porque acho que me faz engordar.
Lá lhe expliquei, mais uma vez, que a referida medicação não tinha "cortisona" – receio universal de todos os doentes, e que algum aumento de peso que apresentasse dependia mais dos hábitos alimentares e menor atividade física, que de um efeito secundário da medicação.
Explico sempre isto, assim como insisto no cumprimento da medicação como forma de controlar os sintomas. Insisto sempre, mas falho sempre da mesma maneira pois só à terceira ou quarta insistência é que os doentes aderem à medicação, aquilo que pomposamente descrevemos como "compliance". Não cumprir o esquema terapêutico não era novidade, mas também não me parecia ser a causa do mal-estar espelhado no rosto.
Quando lhe perguntei se entre consultas tinha encontrado alguma causa para os sintomas, ou tinha suspeitado de algo, disse-me que não, que não os relacionava com nada, contudo, o seu rosto continuava a espelhar preocupação.
Mantivemos uma conversa afável e enquanto a questionava sobre pormenores do seu dia a dia que pudessem estar relacionados com a doença o desconforto acentuava-se na forma como se sentava ou na sua obsessão em ajeitar a gola da camisa.
Contudo, e apesar do interrogatório exaustivo, e quiçá, intrusivo, o certo é que continuava sem causa, nem para a urticária, nem para o desconforto.
Preparava-me para passar a receita dos anti-histamínicos para os próximos meses, frisando mais uma vez a importância da toma regular, quando a Joana, coçando a mão esquerda, disse – Dr. posso fazer-lhe uma pergunta?
Claro que sim respondi-lhe de imediato – o Dr. acha que a minha urticária pode ser dos agapórnis?
Devo ter feito uma cara de tal perplexidade que ela me devolveu com um brilho no olhar e um esboço de sorriso – então, o Dr. não sabe o que são agapórnis?
Não, disse-lhe eu que devia ter continuado com cara de ignorante! E não, é que não fazia mesmo a menor ideia do que pudesse ser ou significar "agapórnis".
Aí, e vendo pela minha cara que não fazia ideia do que estava a falar, disse – quer que eu lhe mostre?
Claro que sim! Nem sei bem se cheguei a dar a resposta ou apenas a pensei! Mas enquanto esperava que me mostrasse uma foto, ou recorresse ao telemóvel para me esclarecer, vejo-a a desabotoar dois botões da camisa e a fazer o ruído universal de chamamento de "bichos" – "pss-pss; pss-pss; pss-pss", e estava ela a ciciar de forma doce, quando vejo sair do peito, com manifesta volúpia, dois exuberantes pássaros, um de cada seio, ambos belos e com uma plumagem sumptuosa e colorida, os pássaros.
Nunca esquecerei esta imagem. Claro está que nas doentes que vou vendo com urticária não pergunto se alojam "pássaros" nos seios, mas lembro-me desta história e aguardo sempre, nestes doentes, que algo de insólito possa ocorrer.
A D. Joana acomodou aqueles lindos papagaios noutra divisão do corpo ou da casa pois, os agapórnis nunca mais os vi, nem a D. Joana voltou a ter urticária apesar de já não tomar a medicação e continuar a engordar.
José Torres da Costa
Médico
Pbservador
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