
Oito anos depois de "Origem", o autor best seller regressou. Em "O Segredo dos Segredos", Ana Bárbara Pedrosa reencontrou uma fórmula e anotou falhas e problemas. Inevitavelmente, leu até ao fim.
Passaram oito anos desde o último livro de Dan Brown, Origem. Tendo o autor, no total, vendido cerca de 250 milhões, não espanta que O Segredo dos Segredos, publicado agora pela Planeta, com tradução de Tânia Ganho, tenha sido aguardado com entusiasmo pelas hordas de leitores do autor norte-americano.
A esta altura do campeonato, não serão necessárias grandes apresentações. Desde O Código da Vinci, protagonizado por Robert Langdon, que agora regressa, o autor arranjou espaço entre prateleiras por todo o mundo. Aliás, só esse livro vendeu cerca de 80 milhões de cópias, além de ter sido adaptado para cinema. As teorias da conspiração atraem – intrigam –, os códigos incitam a curiosidade e a ideia de divulgação de segredos do Vaticano faz o resto. Feito o teste, ou seja, publicado o livro, os leitores, que viraram as páginas como quem come batatas fritas, tinham encontrado ali um filão onde lhes era aguçada a curiosidade e despertada a vontade de ler. De livro em livro, Dan Brown foi usando esta fórmula, nunca cedendo à facilidade de se afundar no mesmo tema – ainda que cada livro se meta a mergulhar algures.
Os romances de Dan Brown, que resultam sempre em sucesso comercial, são thrillers em que se junta a vida a teorias da conspiração que emergem de factos históricos. A informação é muita, e pode partir de estátuas ou de conferências antigas, ou mesmo de referências arquitectónicas, sendo que, muitas vezes, os livros também parecem guias turísticos de cidades. Os capítulos, regra geral curtos, deixam a acção a pingar para um capítulo posterior, que nunca vem logo a seguir. Há várias acções em simultâneo e o leitor é constantemente interrompido, tendo de ler avidamente para compor a acção.

▲ A capa de "O Segredos dos Segredos", de Dan Brown, na versão portuguesa publicada pela Planeta
Nisto, vão pesando várias coisas. Há o suspense, claro, que domina tudo. Há a informação que o leitor recebe – no meio de uma teoria da conspiração, sente-se que se encontram segredos há muito – há séculos – escondidos. Há uma parte quase educativa – o leitor depara-se com texto sobre monumentos, quadros, teorias, dando por si a aprender, como na escola, sobre factos aleatórios, numa leitura que parece treino para o Trivial Pursuit. As descrições são detalhadas e nisso não se pode dizer que Dan Brown conheça atalhos, uma vez que acaba por fazer uma constelação de elementos verídicos que dão suporte à acção, também construída de forma irrepreensível para que tudo venha a encaixar no fim.
Ou seja, ler acaba por não diferir muito de compor um puzzle, puzzle esse onde as conspirações encaixam no curso da narrativa, respondendo a dilemas de criptografia antiga, complexa, misteriosa. Ao invés de uma imersão literária, o leitor dá por si numa espécie de museu, saltando com as personagens entre marcos físicos e épocas históricas e grupos influentes que agem no substrato da vida.
Nisto, as personagens são máquinas. Robert Langdon, que está para Dan Brown como Sherlock Holmes está para Conan Doyle, é um invólucro, um herói com conhecimentos de Wikipédia e pernas de Rosa Mota, mas com a espessura emocional de uma folha de papel. Sabe-se, claro, que é genial, mas o que tem por dentro é um mistério tão grande quanto os que desvenda. É um académico que, ao contrário de todos os seus pares, é mundialmente conhecido; é antiquado, ao ponto de ser quase analógico; usa um relógio com uma imagem do Mickey; veste-se à velho; gosta de nadar. E isto é quase tudo.
De resto, ei-lo útil: permite, claro, que a acção seja levada a cabo, estando no texto ao serviço do enredo, permitindo-lhe avançar, mas não passa disto – tem, em cada página, demasiado de Hollywood, pouco de dia-a-dia. É por isso entendido como parte do jogo, sendo mais um elemento que faz da escrita de Dan Brown uma experiência de juntar peças. Não espantará por isso que haja, dentro dos livros, muito que saiba a artificialidade, até a sensacionalismo, mas tudo passa ao lado perante o que se busca com o livro: entretenimento, algum didatismo, leitura rápida. O perigo, claro, é a repetição da fórmula: eventualmente os leitores podem acabar por se cansar.
Neste O Segredo dos Segredos, a fórmula já sabe a coisa repetida. Landgon é um pacato professor de iconografia religiosa e simbologia da Univerdade de Harvard, e de repente acontece-lhe de tudo. Em Anjos e Demónios, dá por si em luta contra os Illuminati. No Código da Vinci, mete-se com a Opus Dei e o Priorado do Sião. Em O Símbolo Perdido, lá está ele contra a Maçonaria. Em Inferno, primeiro está amnésico, a seguir tentam matá-lo. Em Origem, mete-se no epicentro da luta entre religião e ciência. E agora, em O Segredo dos Segredos, fica sem saber da namorada. Ou seja, tal como nos filmes de Liam Neeson, tudo lhe acontece.
A dada altura, já se sente que é mais do mesmo, estando o livro a seguir os mandamentos do autor, que se têm provado capazes de engatar leitores. Aqui, ainda que a fórmula seja a mesma – um mistério, crimes, conspirações –, e ainda que haja alguma artificialidade no perigo e na urgência que o autor mete no texto –, a verdade é que não deixa de haver a novidade do tema que o autor explora no volume: a noética, uma disciplina que estuda os fenómenos subjectivos da consciência a partir de elementos científicos. Como nos outros volumes, a investigação do autor é voraz, e entrega a informação a quem lê como papinha feita, pronta a ser devorada.

Os romances de Dan Brown, que resultam sempre em sucesso comercial, são thrillers em que se junta a vida a teorias da conspiração que emergem de factos históricos
ANP/AFP via Getty Images
Logo à cabeça do romance, temos o anúncio de que Katherine Solomon, namorada de Langdon, noeticista de referência, fez uma descoberta sobre a natureza da consciência que vai dar uma reviravolta – como não será surpreendente nos romances de Brown – a tudo o que se sabe sobre o universo, partindo da ideia de que os cérebros humanos, ao invés de serem órgãos autónomos, são receptores capazes de adquirirem consciência de forma externa. Ou seja, começa-se com uma hipótese de se transtornar a vida. Pouco depois, ela desaparece, não sem antes Langdon dar o alerta para uma bomba prestes a explodir, entretanto desactivada, não havendo motivos lógicos, plausíveis, para que soubesse do atentado. Dado o alerta, Landgon ainda salta para um rio gelado.
Enfim, o livro começa de forma intensa, e o estilo continua, com o autor a apoiar-se na fórmula habitual, sendo cada fim de capítulo um cliffhanger, e o protagonista a tentar evitar a prisão. Pelo meio, há o roubo de um manuscrito da sede da Penguin, que aqui é tratado quase como bomba-relógio, e que motiva outros crimes, quase sempre sem que se meçam as consequências, rompendo-se a lei e a moral em simultâneo, de novo para impedir que terríveis segredos científicos vejam a luz do dia. Para ir acompanhando o enredo, o leitor tem de ir acompanhando teorias de neurociência, sendo a leitura, em simultâneo, o encaixe do enredo e o entendimento da informação que o autor dá, nomeadamente no que toca a experiências de quase-morte e a abertura de novos canais perceptivos (para a qual Brown muito investigou, fosse através de leituras ou de conversas com especialistas).
A escrita é uma tortura, o enredo é um exagero descabido, o drama é sempre demasiado dramático, os mauzões são demasiado maus, as personagens são fantoches, mas o leitor não tem outro remédio senão ler. O infodumping do costume abre janelas para um mundo cuidadosamente estudado, não deixando de lado as habituais curiosidades didáticas, que não só não interrompem o ritmo como se tornam parte fulcral da experiência de leitura. De resto, é acção só porque sim, só para ir agarrando o leitor, que lá continua de livro colado aos dedos, seja para ver alguém a levar um tiro ou a levar com a decepção no último segundo. É tudo demasiado catastrófico, demasiado conspirativo, e um disparate equivalente a fazer asneiras divertidas, mas seria sempre um best-seller, e talvez por isso a Planeta tenha entregue a conversão para português à mais elegante das tradutoras em Portugal (em termos de estética textual, será o equivalente a ir buscar o Messi para jogar na distrital).
São 700 e tal páginas que partem da premissa que sem Robert Langdon, o Ethan Hunt dos livros, o mundo acaba amanhã. E ei-lo, então, com conhecimento de geek a ser capaz de salvar tudo, ele que, recorde-se, é criptologista. Os seus oponentes, algo entre o erudito, o terrorista e o capanga, são robots (e aqui cabe explicar que é no sentido metafórico), estes com a densidade emocional de uma folha de papel vegetal. E pelo meio há um golem, uma criatura artificial mística criada a partir da lama, figura do judaísmo, que ajuda a transformar todo um livro num circo de onde os olhos não despegam.
De resto, a acção avança sempre em catadupa em cinco ou seis sentidos em simultâneo, e o leitor segue perdido entre os capítulos a tentar perceber para onde vai, com o texto a fugir-lhe sob os pés, seja em termos de enredo ou personagens, que volta e meia desaparecem sem deixarem rasto. Tudo isto funciona, porque é uma fórmula bem aplicada: Dan Brown encontra maneira de deixar as pontas soltas, e demora a atá-las, soltando-as mais, e depois separando os fios, criando uma acção que é uma constelação de coisas a acontecer ao mesmo tempo, não dando espaço à demora. Dentro do livro, tudo é urgência, cada marca de tinta sabe a apocalipse.
Hidratos complexos mergulhados em gordura; o cheiro do amido em óleo, transformado em glicose; o prazer imediato dos circuitos de recompensa dopaminérgicos; a intensificação de sabor via cloreto de sódio; o exterior crocante e a maciez interna, num contraste de texturas que faz pedir mais uma, trazendo também prazer sensorial; uma alta densidade calórica que dá gás a qualquer um; e uma baixa complexidade de sabor que se adapta a qualquer paladar: quem é que não gosta de batatas fritas?
A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.
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