segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

Que PS vai António Costa deixar se perder as legislativas para Rio?

 Além do imobilismo, do anti-reformismo, da desresponsabilização como modo de ação política, a radicalização será a principal herança que António Costa deixará no PS.

Vai deixar um país mais corrupto! Vai deixar um país mais autocrático, menos desenvolvido, mais funcionários públicos, menos responsáveis...

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Rui Rio tem o que queria: um partido unido. Com a honrosa, corajosa e genuína exceção de Miguel Pinto Luz, todos os seus adversários se submeteram à sua autoridade de líder vencedor de três eleições internas do PSD. Paulo Rangel, Luís Montenegro e muitos outros estão unidos em torno de uma candidatura de Rio. É este o resumo do congresso do PSD — que foi o culminar de um processo de clarificação que, ao contrário do que Rio sempre disse, serviu para fortalecer o partido. 

Os discursos de Rui Rio, nomeadamente o de encerramento, mostraram um líder da oposição acutilante e preparado para a guerra. Isso é um bom sinal porque o país, a democracia precisa de alguém que seja alternativa ao PS de António Costa. E, para já, as sondagens indicam que as eleições serão renhidas mas com o PSD com tendência de crescimento e o PS com uma ligeira queda. Traduzindo: Rio tem hipóteses de ganhar as legislativas.

Uma ideia que se reforça quando se ouve o PS a tentar colar Rui Rio ao Chega — uma prova de como os socialistas estão preocupados com o líder do PSD e algo desorientados.


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Também é justo dizer que a sua estratégia de se colocar ao centro e de tentar entrar no eleitorado do PS no centro-esquerda tem sido coerente desde a primeira hora em que ganhou a Santana Lopes em 2018. Na realidade, Rui Rio tenta posicionar-se como um político moderado, equilibrado e aberto a acordos com o PS porque pensa no país — e não em si próprio.

É por isso que tentou este fim-de-semana lançar um isco a António Costa: esclarecer se o PS viabilizará um governo do PSD, caso perca as eleições. Isto é algo que não faz sentido à primeira vista porque Costa já disse que, se perder as legislativas, sairá do PS.

Mas Rio não está a pensar só em Costa quando faz esse repto. Está a pensar essencialmente em Pedro Nuno Santos que, neste momento, tem elevadas probabilidades de ser o próximo líder do PS. E o atual ministro das Infraestruturas já disse que a geringonça “não foi um parêntesis” — como quem diz que poderá repetir-se. E de forma mais estrutural.

Com tal repto, e por muito que os socialistas não lhe respondam por agora, Rio consegue posicionar-se ao centro e encostar o PS à extrema-esquerda.

É verdade que tem um ganho de causa para as eleições mas, caso a esquerda mantenha a maioria no Parlamento após o dia 30 de janeiro, arrisca-se a viver o mesmo pesadelo de Passos Coelho: ganha as eleições mas não consegue formar um Governo sustentável.

3O que nos leva a outra questão: a herança que António Costa vai deixar no PS quando abandonar o partido? Em primeiro lugar, e por muito que o próprio não goste, Costa deixará um partido nas mãos de Pedro Nuno Santos — o único dirigente que tem claramente uma posição de controlo maioritário do aparelho do PS.

Aliás, se António Costa perder para Rui Rio e a esquerda mantiver a maioria no Parlamento, ninguém duvida que Pedro Nuno Santos saltará imediatamente para a arena para conquistar a liderança do PS.

Com Pedro Nuno Santos como secretário-geral do PS será claramente um partido mais ideológico e mais radicalizado — um partido à imagem de Nuno Santos, portanto.

Além do imobilismo, do anti-reformismo, da desresponsabilização como modo de ação política, a radicalização do partido será a principal herança que António Costa deixará no PS.

Não se percebe, aliás, como é possível que, perante uma eleições fortemente bipolarizadas entre PS e o PSD, o pragmático António Costa não tenha um esforço considerável na elaboração dos candidatos a deputados para tentar recentrar o partido.

Ainda para mais quando as sondagens indicam claramente que Costa está a ter sucesso no discurso de vitimização face ao voto contra a proposta do Orçamento de Estado do PCP e do Bloco de Esquerda. Mais uma razão para uma aposta no recentramento do PS.

Francisco Assis, Álvaro Beleza, João Ribeiro ou Sérgio Sousa Pinto seriam nomes que dariam um excelente contributo nessa estratégia. Costa, contudo, preferiu deixar os três primeiros de fora e colocou Sousa Pinto em 13.º em Lisboa. Nomes como o socrático João Galamba ou até mesmo Miguel Matos, o líder da Juventude Socialista que disse um dia preferir um ditador (Xi Jinping) a um líder democraticamente eleito (Donald Trump), ficaram à frente de Sousa Pinto.

A questão também pode ser vista de outra forma: em vez de reforçar o capital político dos moderados no PS, onde estão Ana Catarina Mendes ou Mariana Vieira da Silva, Costa optou por não o fazer.

4Na verdade, António Costa parece já estar noutra. Não é que as listas do PSD sejam brilhantes em termos renovação — que não são — mas a falta de frescura das listas do PS é gritante. Entre ministros, secretários de Estado, deputados, altos dirigentes do PS e ex-membros do Governo Costa, não há uma cara nova nos 22 círculos eleitorais.

Este facto reforça a ideia de que as legislativas antecipadas serão, como dizia Luís Marques Mendes este domingo na SIC Notícias, uma espécie de referendo a António Costa e ao seu Governo.

Tendo em conta o cansaço que os eleitores já sentem neste Executivo e no próprio primeiro-ministro, isso não augura nada de bom para Costa. Basta ver as sondagens dos últimos dias para confirmar a tendência de subida do PSD de Rui Rio e a consequente queda do PS.

PS  – A vitória de Paulo Colaço para o Conselho de Jurisdição no Congresso do PSD, derrotando Morais Sarmento (candidato de Rui Rio), prova que os congressistas do PSD (e as bases do partido) são sensíveis à ideia constitucional da separação de poderes — algo essencial em qualquer democracia. Liderando o chamado ‘tribunal’ do partido, Colaço sempre resistiu às pressões da direção de Rio. Logo, este é um sério aviso de como o partido não quer que o presidente da Comissão Política insista nos seus sucessivos ataques à independência do poder judicial. Mesmo assim, Rio insiste. No discurso de encerramento voltou a atacar a justiça por não achar “nada estranho e incomum” no negócio da venda do Novo Banco, nomeadamente nos pagamentos contingentes que o contrato celebrado pelo Governo Costa obriga. Não há volta a dar: Rio quer mandar na Justiça.

Luis Rosa Observador 

rui xisto

XVII Governo Constitucional 2005-2009

Os secretários de estado que estiveram SEMPRE com José Sócrates, a que se juntou o "acelera", em 06-07-2009

José SócratesJosé Sócrates

Primeiro-Ministro

3 Secretários de Estado 

  • Jorge LacãoJorge Lacão

    Secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros

  • Filipe BaptistaFilipe Baptista

    Secretário de Estado Adjunto do Primeiro-Ministro

  • Eduardo CabritaEduardo Cabrita

    Secretário de Estado Adjunto e da Administração Local

1º Governo de José Sócrates

 



Pode-se ver Mariano Gago (Ciência, Tecnologia e Ensino Superior), Diogo Freitas do Amaral (Negócios Estrangeiros) e António Costa (Administração Interna)


  • António CostaAntónio Costa

    Ministro de Estado

    Ministro da Administração Interna

  • Luís Campos e CunhaLuís Campos e Cunha

    Ministro de Estado

    Ministro das Finanças

  • Luís AmadoLuís Amado

    Ministro da Defesa Nacional

  • Francisco Nunes CorreiaFrancisco Nunes Correia

    Ministro do Ambiente, do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional

  • Jaime SilvaJaime Silva

    Ministro da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas

  • José Vieira da SilvaJosé Vieira da Silva

    Ministro do Trabalho e da Solidariedade Social

  • Maria de Lurdes RodriguesMaria de Lurdes Rodrigues

    Ministra da Educação

  • Isabel Pires de LimaIsabel Pires de Lima

    Ministra da Cultura

  • Diogo Freitas do AmaralDiogo Freitas do Amaral

    Ministro de Estado

    Ministro dos Negócios Estrangeiros

  • Pedro Silva PereiraPedro Silva Pereira

    Ministro da Presidência

    1 Secretários de Estado  Presidência do Conselho de Ministros
  • Alberto CostaAlberto Costa

    Ministro da Justiça

  • Manuel PinhoManuel Pinho

    Ministro da Economia e da Inovação

  • Mário LinoMário Lino

    Ministro das Obras Públicas, Transportes e Comunicações

  • António Correia de CamposAntónio Correia de Campos

    Ministro da Saúde

  • Mariano GagoMariano Gago

    Ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior

  • Augusto Santos SilvaAugusto Santos Silva

    Ministro dos Assuntos


domingo, 19 de dezembro de 2021

PPP–SCUT’s-3

No caso do crime de corrupção, e como o Observador já tinha noticiado em Agosto de 2018, nunca o MP conseguiu reunir indícios da prática desse crime, nomeadamente a eventual cedências de contrapartidas financeiras ou de outra ordem para titulares de cargos políticos.

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O MP entende que houve violação dos princípios da contratação pública e de uma boa gestão financeira e gestão de riscos prudente. Tudo porque o processo terá sido alegadamente conduzido de forma bilateral e sem pressão da concorrência, o que corresponderá a um ajuste directo, e por os responsáveis políticos terem aceite resultados menos favoráveis do que os oferecidos pelos contractos originais.

PPP–SCUT’s-2

Certo é que o facto de os pagamentos não terem sido concretizados até hoje é irrelevante do ponto de vista penal. Na perspectiva do MP, o crime ter-se-á alegadamente consumado quando a EP, com a alegada concordância dos Ex-ministros António Mendonça e Mário Lino e do Ex-secretário de Estado Paulo Campos, assumiu a contratualização das responsabilidades financeiras prejudiciais para o Estado.

PPP–SCUT’s

O MP aponta para um valor global da vantagem financeira das concessionárias da Ascendi estimado de 552,3 milhões de euros entre 2010 e 2015. O valor estimado praticamente duplica para 1.016 milhões de euros no período entre 2010 e 2020 e considerando que as concessionárias Scut conseguiriam receber pagamentos equivalentes aos valores centrais do caso base.

Almerindo Marques

Almerindo Marques não chegou a ser interrogado como arguido por razões de saúde, tendo sido colhido o seu depoimento como testemunha para memória futura. O antigo presidente da Estradas de Portugal morreu antes de ser proferida a acusação.

SCUT–negócios…

No caso da renegociação das Ex-Scut, o MP considerou que o ministro das Finanças, Teixeira dos Santos, e os ministros das Obras Públicas, Mário Lino e mais tarde António Mendonça, delegaram nos secretários de Estado a assinatura das alterações contratuais das antigas Scut, bem como a escolha dos membros a integrar as comissões de negociação.

MP simpático (para o PS). Ex-ministros de Sócrates foram ilibados do crime de participação económica em negócio por terem delegado competências em Paulo Campos e Carlos Costa Pina.



    Eram cinco os Ex-membros do Governo Sócrates que tinham sido constituídos arguidos por terem alegadamente prejudicado o Estado nas negociações dos contractos das subconcessões rodoviários e na renegociação dos contractos das antigas auto-estradas Sem Custos para o Utilizado (SCUT) entre 2009 e 2010. No final, só os Ex-secretários de Estado Paulo Campos e Carlos Costa Pina e um Ex-director da Estradas de Portugal foram acusados pelo Ministério Público (MP) da alegada prática do crime de participação económica em negócios.

    Paulo Campos e Costa Pina foram acusados em regime de co-autoria que terá resultado num alegado benefício para as concessionárias rodoviárias privadas em mais de 3,3 mil milhões de euros. Um valor que, contudo, não passa de uma estimativa, visto que os procuradores Jorge Malhado e Joana César de Campos escrevem no despacho de acusação que só no final dos contractos é que se terá uma ideia rigorosa do prejuízo alegadamente provocado ao Estado.

    Paulo Campos foi o único a ser acusado da totalidade dos 10 crimes de participação económica em negócio imputados aos três arguidos. Costa Pina e o técnico Rui Manteigas foram acusados de cinco ilícitos desse tipo.

    Quais as razões que levaram o MP a não acusar os Ex-ministros Mário Lino e António Mendonça (Obras Públicas) e Fernando Teixeira dos Santos (Finanças) do mesmo crime que imputam a Campos e a Costa Pina? E os principais crimes, prescreveram mesmo ou foram arquivados por falta de indícios? O Observador explica-lhe o que está em causa.


    MP estima prejuízo mas diz que o valor final só pode ser apurado no final dos contractos

    O MP considerou que os privados foram beneficiados em prejuízo do Estado no valor de 3,3 mil milhões de euros e que podem ter de devolver esses benefícios no caso de a tese da acusação ser confirmada em julgamento. Contudo, uma parte desse alegado prejuízo acabou por não se concretizar.

    Para tal, e como é norma em processos de criminalidade económico-financeira com prejuízo para o erário público, os procuradores titulares do caso das PPP emitiram, com o despacho de acusação, a chamada declaração de perda da vantagem alegadamente ilícita atribuída às concessionárias rodoviárias.

    No entanto, o MP considera que esses prejuízos só podem ser apurados com a execução dos contractos, que se estende até à próxima década.

    A estimativa do alegado prejuízo divide-se da seguinte forma:

    • Cerca de mil milhões de euros nas renegociações das concessões da Ascendi entre 2010 e 2020.

    • Já a revisão dos contractos das subconcessões terá tido à data (2010) um valor actualizado líquido (VAL) negativo para o Estado de cerca de 600 milhões de euros e gerado pagamentos adicionais de 2,3 mil milhões de euros.

      • A primeira parcela somada à última dá 3,3 mil milhões de euros, o valor que fontes ligadas às defesas adiantam como o alegado prejuízo para o Estado.


        Os principais crimes foram arquivados por falta de indícios

        Os 12 arguidos do processo, incluindo os três acusados, viram ainda o MP reconhecer claramente que não existiam indícios da prática dos crimes de corrupção, recebimento indevido de vantagem, fraude fiscal qualificada e branqueamento de capitais. A conclusão chegou após as contas e o património não financeiro dos arguidos ter sido passado a pente fino.

        Acresce a tudo isso que todos esses crimes também já estavam prescritos. Apesar de muitos deles terem o prazo de prescrição actual de 15 anos, o facto de na altura dos factos tal prazo prescricional ser de apenas cinco anos, levou o MP a aplicar a lei mais favorável aos arguidos. Tudo porque os crimes terão sido praticados entre 2009 e 2010 e a maior parte dos arguidos só foi constituída arguida em 2019 e 2020.

        Apenas num dos crimes que faziam parte das suspeitas originais houve a convicção do MP de que existiam indícios para levar a uma acusação. Referimo-nos ao crime de abuso de poder que, caso não tivesse sido declarado prescrito, poderia ter levado a uma acusação contra Mário Lino, António Mendonça e Teixeira dos Santos. Contudo, o MP não especifica os respectivos indícios no despacho de encerramento de inquérito.

        Sem efeito ficou igualmente a acusação prevista ao antigo presidente da Estradas de Portugal, Almerindo Marques, porque este morreu uma semana antes de este inquérito crime chegar à fase de acusação.


        Porque ficaram de fora os Ex-ministros no crime de participação económica em negócio

        Os três antigos ministros dos governos de José Sócrates foram constituídos arguidos devido à renegociação das concessões do grupo Ascendi (incluindo três antigas Scut e duas auto-estradas com portagens), da qual resultou, segundo a acusação, vantagens para os privados e prejuízos para o Estado. Os dois Ex-titulares das Obras Públicas (e não o das Finanças) também foram investigados pela sua intervenção na reforma dos contractos das subconcessões de forma a contornar a recusa de visto pelo Tribunal de Contas.

        No caso da renegociação das Ex-Scut, o MP considerou que o ministro das Finanças, Teixeira dos Santos, e os ministros das Obras Públicas, Mário Lino e mais tarde António Mendonça, delegaram nos secretários de Estado a assinatura das alterações contratuais das antigas Scut, bem como a escolha dos membros a integrar nas comissões de negociação. Foram os secretários de Estado que reuniam com a comissão e lhes transmitiam orientações para negociarem. Foram também os dois secretários de Estado que, ao abrigo das competências delegadas, subscreveram todos os acordos que resultaram na negociação das antigas Scut e das concessões Norte e Grande Lisboa.

        Não obstante, os ministros estavam cientes, segundo o MP, da necessidade de introduzir portagens e implementar o novo modelo financeiro e de gestão do sector e tiveram conhecimento do relatório final da comissão de negociação, mas inexistindo “porem indícios de que tenham acompanhado as negociações em causa ou que tenham emitido qualquer orientação no decurso do processo negocial”.

        A decisão final foi tomada depois de Mário Lino ter deixado o cargo. Quando António Mendonça chegou já o processo estava em curso e tinham sido dadas instruções à comissão. “É certo que tomou conhecimento do relatório final”, mas não surgiram indícios que contrariam o testemunho prestado de que face aos detalhes técnicos agiu na base de uma relação de confiança com o secretário de Estado e com os especialistas e comissões técnicas nomeadas. Além de que os seus assessores nunca “o alertaram para a possibilidade do interesse do Estado não estar salvaguardado”.

        Teixeira dos Santos manteve-se à frente das Finanças, mas a investigação concluiu que não acompanhou as negociações nem lhe terá sido pedido parecer ou emitiu qualquer orientação sobre as negociações cuja matéria estava delegada em Costa Pina, que foi “quem conduziu e acompanhou os detalhes da negociação”. O Ex-ministro testemunhou que lhe foi sendo transmitido que as negociações corriam bem, não tendo sido informado sobre estudos de tráfego, desvios ou sequer que a concessão Norte estaria falida.

        Não tendo tido intervenção directa, nem tendo sido indiciada intenção de obter vantagens para si ou para terceiros, foi arquivada a eventual prática de crime, acrescenta o despacho.

        Isto não obstante Teixeira dos Santos e Mário Lino terem recebido indicações do então primeiro-ministro, José Sócrates, para iniciarem procedimentos no sentido de obter uma solução para que os contractos de subconcessão chumbados viessem a obter a luz verde do Tribunal de Contas (TdC). E de as mesmas instruções teriam sido dadas ao sucessor nas pasta das Obras Públicas António Mendonça.

        O Ministério Público volta a invocar a delegação de competências atribuída a Paulo Campos a quem “deu como entregue o assunto relativo à concessão de visto pelo TdC aos contratos de subconcessão, o qual o tomou em mãos nos termos com as consequências relativamente às quais contra este se proceder criminalmente de seguida”.


        Porque foram acusados os secretários de Estado

        O MP conclui que Carlos Costa Pina e Paulo Campos “ficaram bem cientes que aquela renegociação com o grupo Ascendi, nos termos em que foi efetuada e que veio a ser consagrada em cada um dos contratos renegociados e por si subscritos, implicaria resultados menos vantajosos do que os contratos iniciais e um aumento de encargos para o Estado português, assim como conduziria a que cada uma daquelas concessionárias obtivesse um benefício económico que não lhes era devido”.

        Em particular porque foram informados pelos membros da comissão de negociação e tiveram acesso a documentos onde se mostrava que o Estado não tinha responsabilidade financeira nas concessões Norte e Grande Lisboa e que estas não eram economicamente viáveis.

        Diz o MP que Campos e Costa Pina teriam alegada consciência que negociar estas concessões não traria vantagens para o Estado, antes prejuízos. Daí terem alegadamente ordenado a sua inclusão no pacote negocial para evitar a entrada em falência da concessão Norte (que tinha a tal dívida à banca).

        Apesar de saberem que o tráfego real era substancialmente inferior ao previsto, os então governantes terão alegadamente determinado que a comissão de negociação validasse projeções de tráfego demasiado otimistas e desconformes com a realidade e que se mantivessem taxas de rentabilidade iniciais apesar de o Estado assumir mais riscos.


        Porque Manteigas foi acusado e como a morte de Almerindo Marques condicionou acusação

        O despacho de acusação também refere as intervenções do então presidente do Tribunal de Contas, Guilherme d’Oliveira Martins e do então diretor-geral José Tavares (atual presidente do TdC), que chegou a estar numa reunião promovida pelo então chefe de gabinete de José Sócrates, Guilherme Dray, na qual explicou que a única forma de os vistos serem concedidos “era conformar os contratos às exigências plasmadas nos respetivos acórdãos”.

        No entanto, apenas três destes protagonistas viriam a ser acusados neste processo, em parte devido às reuniões realizadas em janeiro de 2010 em que ficou “assente, acordado e decidido entre os presentes ser intenção de Paulo Campos, Almerindo Marques e Rui Manteigas (diretor de concessões) que o VAL (valor atualizado líquido) para a Estradas de Portugal em cada um dos contratos reformados viesse a ser idêntico ao VAL previsto nos contratos iniciais, bem como se diligenciasse nesse sentido”.

        Almerindo Marques não chegou a ser interrogado como arguido por razões de saúde, tendo sido recolhido o seu depoimento como testemunha para memória futura. O antigo presidente da Estradas de Portugal morreu antes de ser proferida a acusação.

        O único responsável da empresa que acabou apanhado neste processo foi Rui Manteigas. O diretor de concessões da EP, em colaboração com Almerindo Marques, foi um dos principais responsáveis pela reforma dos contratos das subconcessões rodoviárias e pelos polémicos pagamentos paralelos aos bancos e que foram omitidos dos contratos reenviados para o Tribunal de Contas, que foram visados na investigação. O seu bloco de notas com as presenças nas reuniões e descrições é várias vezes citado como prova no despacho da acusação.

        Já outros dirigentes da Estradas de Portugal escaparam à acusação. No caso do então vice-presidente Eduardo Gomes, a investigação concluiu que quem tinha responsabilidades diretas nas concessões PPP (subconcessões) era o presidente Almerindo Marques, a quem competia também decidir empréstimos e operações financeiras.

        O MP considera que Almerindo Marques “tomou em mãos os assuntos aqui em causa” — representação dos interesses financeiros e patrimoniais da empresa nestes contratos — e nos termos e circunstâncias que se descrevem na acusação — designadamente na sequência da conduta também assumida por Rui Manteigas — sobre eles tomou decisões, desacompanhado de outros administradores”.

        No caso dos diretores das áreas jurídica e financeira, João Canto e Castro e Joaquim Paes Jorge, o MP destacou o facto de não desempenharem cargos de administração e considerou que a sua intervenção na reforma dos contratos “se limitou a seguir as determinações hierárquicas do arguido Rui Manteigas”.


        Os pagamentos paralelos às subconcessões e quem os determinou

        A solução passou por eliminar o acréscimo de custos financeiros provocado pela crise de 2008 nas propostas finais a concurso de cada uma destas concessões, retomando as condições das propostas iniciais. Mas criando um compromisso paralelo de pagamento que ficou de fora dos contratos — mecanismo esse assegurado nas cartas enviadas aos bancos financiadores, as side letters, que o Tribunal de Contas diz que não foram remetidas quando os contratos reformados voltaram para o visto prévio daquele tribunal, que veio a ser concedido em 2010.

        Também foi “acordada e decidida por todos os presentes a inclusão, se necessário se revelasse, de documentos laterais (side letters) ou de cartas de consentimento para os bancos”. Os procuradores Jorge Malhada e Joana Campos concluem que conforme “pretendido, definido, determinado e aceite por Paulo Campos, Almerindo Marques e Rui Manteigas, com vista à prossecução dos objetivos por ele pretendidos (…), a Estradas de Portugal assumiu perante cada subconcessionária o encargo de pagamento de uma parcela certa e fixa (…) designada como compensação contingente (…) não prevista nem em cada contrato nem no modelo financeiro ou no próprio clausulado (do contrato reformado) “, lê-se no despacho de acusação.

        Apesar de ficar previsto que eventuais ganhos obtidos na renegociação do financiamento ficassem do lado da Estradas de Portugal, “como bem sabiam Paulo Campos, Almerindo Marques e Rui Manteigas, o impacto eventual das alterações das condições de refinanciamento eram pouco prováveis de acontecer e, a ocorrer, mesmo na sua plenitude tal como previsto, nunca seriam suficientes para anular a totalidade dos pagamentos contingentes”, escreveram os procuradores titulares dos autos.

        Os montantes expressamente previstos e que foram exigidos pelos financiadores totalizam 594 milhões de euros em valores atualizados líquidos (VAL) ao longo do prazo das concessões. A preços correntes (com base em 2010) os pagamentos adicionais ultrapassam os 2,3 mil milhões de euros. De referir que estes pagamentos contingentes nunca chegaram a ser realizados pela Infraestruturas de Portugal (sucessora da Estradas de Portugal) depois de terem sido considerados ilegais pelo Tribunal de Contas em 2012. Mas essa evolução não afeta a imputação de crime.


        Valor a devolver só pode ser apurado após execução dos contratos

        Apesar de terem sido investigadas outras matérias, como as cerimónias de inauguração de estradas adjudicadas por ajuste direto à mesma empresa, o raio de ação das investigações centrou-se em dois processos negociais entre o Estado e os grupos privados que ganharam concessões de autoestradas: as renegociações com as concessionárias das antigas Scut para a introdução de portagens e a reformulação dos contratos de subconcessões rodoviárias adjudicados pela Estradas de Portugal em plena crise financeira e aos quais o Tribunal de Contas recusou visto.

        O despacho de acusação cita vários relatórios de entidades públicas, com destaque para auditoria do Tribunal de Contas divulgada em 2012 e segundo a qual os dois processos resultaram em prejuízos para o Estado, tendo também recorrido a peritos financeiros para avaliar as consequências financeiras dos contratos sob suspeita. Mas as contas não são fáceis de fazer e o resultado vai mudando com o tempo porque os cálculos partem de projeções e pressupostos que se prolongam pela década de 2030 e cujo valor só pode ser calculado no período temporal em que foram feitas as contas.

        O despacho aponta para um valor global da vantagem financeira das concessionárias da Ascendi estimado de 552,3 milhões de euros entre 2010 e 2015. O valor estimado praticamente duplica para 1.016 milhões de euros no período entre 2010 e 2020 e considerando que as concessionárias Scut conseguiriam receber pagamentos equivalentes aos valores centrais do caso base.

        De acordo com o Ministério Público, “uma tal vantagem financeira para as concessionárias será equivalente ao incremento dos encargos para o concedente devido aos pagamentos por disponibilidade nesses períodos e nos termos supra referidos”. Estas estimativas podem pecar por defeito porque neste período os tráfegos andaram na parte inferior da banda prevista e porque não foi quantificado o efeito positivo para o concessionário e seus credores de ficarem livres do risco de tráfego.

        Este ganho resulta sobretudo da imposição feita pela Ascendi, e aceite pelos negociantes do Estado, de incluir duas concessões que não recebiam nada do Estado até então, mas cuja exploração estava a ser deficitária para o grupo devido a um tráfego muito inferior ao previsto. Eram os casos da Grande Lisboa e do Norte. A negociação desta última, conclui o Ministério Público, evitou a entrada em falência da concessionária que tinha uma dívida de 800 milhões de euros toda detida por bancos nacionais.


        Como Marques Mendes e várias denúncias levaram ao inquérito

        O inquérito foi aberto na sequência da denúncia feita pelo comentador Luís Marques Mendes na televisão de que a renegociação com a Mota-Engil de várias concessões feita no segundo Governo de Sócrates teria resultado numa assunção de encargos de mais de mil milhões por parte do Estado. O Ministério Público recebeu várias queixas sobre o tema das parcerias público privadas (PPP) rodoviárias, entregues por associações como o Automóvel Clube de Portugal, mas também de forma anónima através do portal da PGR.

        As buscas nas casas dos ex-governantes foram realizadas a um mês de Pinto Monteiro abandonar o cargo de procurador-geral da República, no qual foi substituído por Joana Marques Vidal.

        Os dois processos centrais desta investigação decorreram em paralelo entre o final do primeiro Governo de Sócrates e o segundo que tomou posse em outubro de 2009, e foram acompanhados por um quadro de degradação da situação financeira de Portugal e das contas públicas que resultou no resgate internacional de 2011. Enquanto o processo das subconcessões avançou com a justificação do investimento público e da criação de emprego para contrariar a crise económica, a renegociação das Scut foi explicada com a necessidade de o Estado, e em particular a Estradas de Portugal, obter receitas.

        O despacho descreve as decisões políticas e a evolução jurídica que resultaram na reorganização da Estradas de Portugal numa superconcessão a 90 anos debaixo da qual ficariam todas as receitas com as portagens das concessões rodoviárias, mas também todos os encargos com os contratos e os custos com investimento.

        O modelo implicava que as concessionárias privadas aceitassem transferir as receitas que cobravam para a empresa pública, passando a receber um pagamento por disponibilidade da infraestrutura. Esta evolução, a par da criação da contribuição rodoviária paga pelo Estado concedente com uma percentagem do imposto petrolífero, iam permitir à Estradas de Portugal obter autonomia financeira do Orçamento do Estado e saltar das contas espartilhadas do défice, na medida em que passaria a poder recorrer à banca privada para contrair dívida para pagar os novos compromissos, tendo como contrapartida as receitas futuras de décadas de portagens.

        Paulo Campos, antigo secretário de Estado das Obras Públicas, é o único a quem são imputados todos os crimes descritos no despacho de acusação, pelo papel que desempenhou na renegociação dos contratos das antigas Scut enquanto tutela setorial com delegação de competências, mas também pela reforma dos contratos chumbados no Tribunal de Contas, um processo que liderou, segundo a reconstituição feita pelo Ministério Público a partir de provas documentais e testemunhos.

        De destacar que o despacho refere que este arguido nas declarações que prestou em abril deste ano, apresentou uma denúncia de factos que poderão, se confirmados, a consubstanciar a prática de crimes, tendo sido extraída uma certidão para a eventual instauração de inquérito autónomo.

      Lucília Gago mandou informação desactualizada (Sobre Rendeiro)

      Fotografia

      Sobre: JOÃO RENDEIRO, A PGR sabia desde Outubro que a pena de prisão do Ex-banqueiro era definitiva. Apesar disso, Lucília Gago não informou a África do Sul em Novembro de que a pena era definitiva. Só o fez esta semana.

      Diz o Observador!

      Arquivos de baixas civis.

      O New York Times está tornando públicas centenas de avaliações confidenciais do Pentágono sobre relatórios de vítimas civis resultantes de ataques aéreos liderados pelos EUA no Iraque e na Síria. Os documentos revelam como a guerra aérea foi marcada por falhas profundamente nas informações, alvos apressados ​​e muitas vezes imprecisos e a morte de milhares de civis inocentes, muitos deles crianças.

      Os documentos foram obtidos por meio de solicitações de Liberdade de Informação a partir de Março de 2017 e subsequentes acções judiciais movidas contra o Departamento de Defesa e o Comando Central dos Estados Unidos. Até o momento, o The Times recebeu mais de 1.300 relatórios examinando ataques aéreos no Iraque e na Síria de setembro de 2014 a janeiro de 2018, mais de 5.400 páginas ao todo.

      A reportagem independente do The Times correspondeu de perto a muitas das informações básicas dos documentos, mas também encontrou discrepâncias e omissões importantes em alguns casos, incluindo o local de um ataque ou o número de pessoas mortas ou feridas. Apesar das imprecisões, os documentos servem como um importante registro para pesquisadores que buscam entender os processos internos do Pentágono.

      Por: POR AZMAT KHAN, LILA HASSAN, SARAH ALMUKHTAR E RACHEL SHOREY

      Ver aqui: https://www.nytimes.com/interactive/2021/us/civilian-casualty-files.html

      'Quero fazer o máximo que posso': Keanu Reeves sobre poesia, luto e como aproveitar ao máximo cada minuto.

      Tom Lamont The Guardian

      Ele é um dos actores mais queridos e trabalhadores de Hollywood. Quando o próximo episódio de sua épica série Matrix chega às telas, da famosa estrela sempre atenciosa.

      Keanu Reeves cobre o rosto com as duas mãos. Longas faixas do cabelo desgrenhado e preto do actor balançam de um lado para o outro enquanto ele balança a cabeça embalada. Reeves, de 57 anos, lança um novo filme Matrix em breve. Será o primeiro episódio dessa famosa série de ficção científica desde a virada do século, quando uma trilogia visualmente esplêndida - The Matrix, The Matrix Reloaded e The Matrix Revolutions - sacudiu o cinema blockbuster nos seus alicerces. Acabei de lhe dizer que passeio inesquecível foi aquele primeiro filme de Matrix para mim, em 1999, quando o vi num cinema lotado e barulhento, cheio de pessoas que não conseguiam ficar paradas de empolgação. Também acabei de admitir para Reeves que, quando Matrix Resurrections estiver disponível no final deste mês, através de várias plataformas, provavelmente irei transmiti-lo em casa, provavelmente num laptop.

      Matrix. O filme que mudou tudo, perdeu tudo e ressuscitou.

      Joana Amaral Cardoso Publico



      Para o novo filme, regressam Keanu Reeves, cuja carreira como John Wick mostra bem o legado de Matrix, e a dupla central de um filme de amor e filosofia de bolso disfarçado.

      “Eu não sei o que é o futuro. Vim para vos dizer como é que ele vai começar”, diz Neo em Matrix em 1999. Um messias de vinil e cabedal com código verde a chover sobre o negrume do fim do século XX chegava discretamente ao cinema mas saía das salas com o estrondo dos Rage Against the Machine a gritar “Wake up! Wake up!” directamente para um mundo real assarapantado.

      Matrix é uma espécie de cápsula do tempo da vertigem do milénio onde cabem Lewis Carroll, Descartes, Jacques Lacan ou Platão e — contrariado — Jean Baudrillard, um vírus digital que mudaria o cinema tecnicamente e impactaria o mundo real politicamente. Nos últimos 22 anos convocou a comunidade trans e a extrema-direita das teorias da conspiração, Slavoj Žižek ou o sistema da moda; agora chega Matrix Resurrections, um quarto capítulo que volta a interrogar uma versão fantasista da internet quando a sua visão fatalista de 1999 já se concretizou. A banda sonora, desta vez, é dos Jefferson Airplane — “Feed your head. Feed your head”.

      A estreia de um novo Matrix gerou um interesse notório. O original parece ter ficado imune às sequelas de 2003, Matrix Reloaded e Matrix Revolutions, e os seus temas — o transe colectivo da sociedade de consumo, a fase terminal do capitalismo, uma rede digital usada para cultivar dados, pessoas tornadas números em latifúndios de terra queimada — terão tocado no nervo de 2021. Em duas décadas, a apropriação política de Matrix também é sinónimo do nervoso do novo milénio, com os comprimidos oferecidos ao protagonista Neo (Keanu Reeves) — vermelho para despertar para a dura realidade que é ocultada da maioria, azul para continuar na

      sociedade ordeira e mainstream — a serem sinónimo de uma facção minoritária mas disruptiva de comunidades conservadoras que fomentam e traficam teorias da conspiração online porque foram... “red pilled”.

      Para o novo filme, regressam Keanu Reeves, cuja carreira como estrela de acção de séries como John Wick mostra bem o legado de Matrix, e Carrie-Ann Moss como Trinity, a dupla central de um filme de amor e filosofia de bolso disfarçado de filme de acção e ficção científica. Yahya Abdul-Mateen II rejuvenesce o profeta Morpheus (Lawrence Fishburne) e Neil Patrick
      Harris e Jonathan Groff são rostos da televisão que se juntam ao elenco.
      Lana Wachowski realiza e escreve o novo filme, deixando de contar com a irmã Lily, que se afastou de Hollywood. As Wachoswki assinaram os primeiros filmes como “irmãos
      Wachoswki
      ”, tendo feito a sua transição de género na década seguinte.
      Só um filme pioneiro, estilizado e afinado como Matrix pode lançar vocabulário eternizado — “uma falha na Matrix” —, manter modas circulares — é ver a capa de 1999, de Charli XCX e Troye Sivan, é ver as irmãs modelo Hadid ou as estrelas reality Kardashian e seus óculos esguios e gabardines de cabedal — e ser um terreno onde tantas comunidades diferentes se podem projectar. Em 1999, Matrix era “o cinema cyberpunk na sua melhor forma até agora”, como postulava a revista de tecnologia Wired; 20 anos depois, o site Vox garantia que esta “é de longa a obra de cultura pop mais influente alguma vez criada por uma pessoa trans”; este ano a Wired volta para decretar que “Matrix é o melhor filme de hackers”. Pelo caminho, Matrix abanou a estrutura de Hollywood e captou o espírito de 1999.
      Matrix Resurrections, que se estreia nos cinemas portugueses dia 22, é mais uma reanimação de corpos culturais passados e uma retoma de um filme que começou glorioso, sucesso inesperado com orçamento de 63 milhões de dólares que rendeu 460 milhões em todo o mundo, e cuja trilogia descarrilou estrondosamente com dois filmes inferiores e que, pior, destruíam a premissa se bastianista do original.
      Afinal, o programador Thomas Anderson que se revelava ser Neo, o salvador da humanidade escravizada pelas máquinas, era só uma personagem de mais uma história que a inteligência artificial criou para distrair os poucos rebeldes que escolhiam viver fora da simulação capitalista
      que é a Matrix. Por vezes, as histórias são tão mais potentes quanto o tempo e o público que encontram. A internet pulula de artigos académicos, jornalísticos ou ensaios que querem saber “o que é a Matrix”. As respostas podem de facto residir numa data e não num compêndio de filosofia.
      Geração DVD Como experiência de espectador, Matrix mostrava a superação das barreiras físicas e um sonho de super-heroísmo tornado possível para corpos meramente acessórios perante o poder da mente. Neo, ou o esfíngico actor em vias de se tornar estrela de acção Keanu Reeves, era alguém que não se vende ao sistema, “o rosto de uma geração X alienada,
      um inconformista que foge à sua vida entediante de zangão num cubículo para se tornar num deus”, como escreveu o crítico David Sims na revista Atlantic.
      O seu opositor é o software maligno que o Agente Smith do actor Hugo Weaving resume como “o futuro”, que é afinal “um mundo de sonho gerado por computador para nos manter sob controlo”, como esclarece Morpheus. “Parece um filme que é sobretudo sobre a desilusão que chega no fim de um século”, reflecte Sims, um século cujo fim também era o fim de um milénio e que ainda por cima tinha como principal vilão um vírus, o Y2K, que se temia que à meia-noite de 31 de Dezembro de 1999 tirasse a ficha ao mundo. Matrix mistura referências de Neuromancer, de William Gibson, de Sandman, de Neil Gaiman, e uma linguagem visual que já se adivinhava em Sem Limites, a primeira longa da dupla Wachowski, entre muitas outras pistas. Dispõe os
      seus peões numa cidade cujas cabines telefónicas são pontos de fuga através de ligações digitais dependente de modems (que influem na banda sonora e nos efeitos de som do filme) e em que o telemóvel Nokia 8110 era a rede mais avançada. De forma também cronologicamente sintomática, a própria existência de Matrix depende dos DVD.
      O ano de 1999, como se reparou em 2019 pela profusão de listas, ensaios ou podcasts sobre o tema, foi dos mais ricos de sempre no cinema americano. Uma geração de realizadores vinda dos videoclips, da publicidade ou da simples veneração indie dos seus precursores da década de 1970, ascendia numa Hollywood endinheirada. Os cinéfilos criavam as suas colecções com o suporte que na altura parecia mais inovador e duradouro — o DVD, cujas vendas começaram em força em 1997 gerando uma auto-estrada de receitas para os estúdios.
      Havia dinheiro para investir em novos nomes, como Wachowski, Fincher (Clube de Combate), Jonze (Queres Ser John Malkovich?), Mendes (American Beauty). Havia algo de errado na nossa percepção da realidade, distorcida, onírica, revoltada, lúbrica. Especialmente se se era um jovem homem branco acabado de assistir ao escândalo Clinton-Lewinsky na televisão e com o desemprego em máximos históricos. O filme “alegoriza as ansiedades que emergiram nos anos do pós-guerra”, sugeria em 1999 o crítico de arquitectura Herbert Muschamp.
      “Na era de apenas uma superpotência remanescente, de uma só ideologia dominante e do progresso disseminado da internet, Matrix pode facilmente significar o que alguns chamaram “a monocultura”: uma rede de centros comerciais, parques temáticos, cidades periféricas, subdivisões suburbanas, centros de convenções e hotéis construídos em torno da cultura do consumo do capitalismo avançado e dos seus padrões de normalidade fruto de pesquisas de mercado
      ”, disparou Muschamp no New York Times após a estreia do filme.
      Nesse contexto, se hoje é já “old news” que a cultura geek dominou Hollywood, Matrix surgia numa inflexão determinante da indústria do cinema de massas norte-americano:a influência dos videojogos e sobretudo dos comics é fulcral e tornar-se-á o modelo — a matriz — das décadas seguintes. As distopias, especialmente as urbanas e gótico-industriais, entram novamente na moda. A realização com a marca Wachowski pega num léxico visual bem conhecido do cinema de acção asiático, em particular de Hong Kong ou do anime, e cria mais vernáculo Matrix: filma em bullet-time, permitindo assistir a cada detalhe de um movimento em câmara lenta, e torna as artes marciais num voo arrojado, conhecido como “wire fu” (ou kung fu preso por arames).
      Matrix era um filme de heróis de acção de ciberescapismo destinado aos fãs dos comics e computadores para a crítica de cinema do New York Times Janet Maslin, que apesar de
      tudo reconhecia nele “uma aventura americana mainstream com grandes perspectivas [de se tornar] um clássico de culto e com o futuro em mente”, reconhecia. “Merece tornar-se um clássico e sê-lo-á seguramente para aqueles que valorizam o poder dos filmes sci-fi de cristalizar momentos de sensibilidade urbana”, dizia ainda Muschamp, citando Metropolis, Alphaville, A Décima Vítimao u Blade Runner. “Os efeitos especiais [de Matrix] são mais do que adornos fulgurantes. São o coração do enredo.”
      Metáfora trans Esse é talvez o mais crucial simbolismo de Matrix. “É uma perfeita fusão de forma e tema. Se há algo que manteve o fascínio sobre a nossa sociedade nos últimos 30, 40 anos, é o nosso vício na ofuscante irrealidade da acção cinemática”, escreveu o crítico da revista Variety nos 20 anos do filme. “Filme quintessencial de 1999”, considera, “ver Matrix é perceber algo sobre o mundo de ilusão em que vivemos”, fruto do poder do ser humano de manipular imagens.
      Faz parte da história de Matrix que o papel de Neo foi oferecido a Will Smith e que o actor recusou o papel depois de não ter compreendido o conceito de “parar no ar” que os efeitos visuais revolucionários do filme trariam e que lhe foram descritos na oralidade. A Warner Bros. achou que o público mainstream não ia compreender outro aspecto do filme: a personagem Switch foi originalmente escrita como pessoa de género fluido. Na Matrix era uma mulher e na realidade dos humanos era um homem; a personagem ficou só mulher no filme.
      Com os anos e com o percurso pessoal das realizadoras e argumentistas, Matrix revelou uma outra camada - sendo uma narrativa de superação, era também uma história sobre pessoas transgénero em crisálida. “Matrix era sobre o desejo de transformação, mas vinha de um ponto de vista no armário”, admitiria Lilly Wachowski em 2020 no programa online Netflix Film Club. Metáfora trans em que “os corpos são, na melhor das hipóteses, uma sugestão” e onde “as personagens rejeitam os nomes com que nasceram em prol dos nomes que escolhem”, como descreveu a jornalista e mulher transgénero Emily VanDerWerff no site Vox, o mundo “não estava pronto para isso”, lamentou Lilly Wachowski.
      Matrix mudou tudo, mas também encerra em si a ilusão. O mito Matrix desmoronou-se passados escassos quatro anos do fenómeno que fora o filme original, segunda obra da dupla Wachowski plena de mensagens filosóficas em torno do livre arbítrio, da ilusão e dos simulacros envolta numa capa negra de acção e ennui distópico alimentados por conceitos latos da caverna de Platão ou do “grande Outro” de Lacan.
      Nem tudo o que foi sucesso em Matrix reluziu como ouro, a começar pela recepção da comunidade filosófica. “Quando vi Matrix num cinema na Eslovénia, tive a oportunidade única de me sentar perto do espectador ideal do filme — ou seja, de um idiota”, disse o filósofo e intelectual público Slavoj Žižek em 1999, num simpósio na Alemanha. Tem voltado ao filme regularmente, seja para falar dos sobreviventes do acidente nuclear de Chernobyl ou para dinamitar a dualidade simbólica dos comprimidos azul e vermelho dizendo, no documentário The Pervert’s Guide to Cinema: “Quero um terceiro comprimido”. Uma pílula que mostra a realidade dentro da ilusão e não aquela que se esconde atrás dela. Numa cena do filme de 1999, o Neo de Keanu Reeves pega num exemplar de Simulacros e Simulação (1981), de Jean Baudrillard. Referência clara para as criadoras do filme, o filósofo francês também não mostrava especial apreço pelo título. “Matrix é seguramente o tipo de filme sobre a Matrix que a Matrix poderia ter produzido”, comentou em tempos, admitindo que foi sondado para colaborar em Matrix Reloaded e Revolutions mas que, surrealismo por surrealismo, prefere Mulholland Drive (2001), de David Lynch. Agora, nos trailers de Resurrections, Lana Wachowski pega no ainda mais óbvio Alice no País das Maravilhas de Carroll, perseguindo uma rapariga com uma tatuagem de um coelho branco rumo, supõe-se, à toca por onde muitos cairão outra vez.

      Keanu Reeves e Carrie-Ann Moss “queriam dizer sim” a Wachowski e tinham “material com o qual uma pessoa se quer comprometer, dar tudo o que possa”, como disse o actor à revista Entertainment Weekly.
      Lana Wachowski chegou a Ressurections devido a uma perda da vida real: a morte dos pais e de uma amizade. “[Para lidar com isso] como não podia ter a minha mãe e o meu pai, subitamente tinha Neo e Trinity,
      provavelmente as duas personagens mais importantes da minha vida”, disse a cineasta numa sessão do Festival de Cinema de Berlim. A história do filme chegou-lhe de supetão, quase integralmente.
      Matrix Resurrections chega a um mundo de fake news, deepfakes e bots, de trolls, de Alexas e da criptoarte. A evolução tecnológica aproximou as pessoas e isolou-as, defende Lana Wachowski aos 56 anos. “O poder da tecnologia para prender ou limitar a nossa realidade subjectiva foi uma parte importante da nova narrativa para Matrix Resurrections”, disse à Entertainment Weekly. Os detalhes da intriga desta ressurreição são desconhecidos à data de publicação deste texto. Mas “as boas notícias são que Matrix é ficção, não o futuro”, lembrava Jessica Baron, eticista de tecnologia, numa reflexão sobre os 20 anos do filme na revista Forbes em que apelava ao aCtivismo do consumidor, do eleitor, do espectador. “No filme, os humanos só têm uma hipótese de tomar o comprimido. Nós temos uma oportunidade todos os dias.”