domingo, 19 de dezembro de 2021

Matrix. O filme que mudou tudo, perdeu tudo e ressuscitou.

Joana Amaral Cardoso Publico



Para o novo filme, regressam Keanu Reeves, cuja carreira como John Wick mostra bem o legado de Matrix, e a dupla central de um filme de amor e filosofia de bolso disfarçado.

“Eu não sei o que é o futuro. Vim para vos dizer como é que ele vai começar”, diz Neo em Matrix em 1999. Um messias de vinil e cabedal com código verde a chover sobre o negrume do fim do século XX chegava discretamente ao cinema mas saía das salas com o estrondo dos Rage Against the Machine a gritar “Wake up! Wake up!” directamente para um mundo real assarapantado.

Matrix é uma espécie de cápsula do tempo da vertigem do milénio onde cabem Lewis Carroll, Descartes, Jacques Lacan ou Platão e — contrariado — Jean Baudrillard, um vírus digital que mudaria o cinema tecnicamente e impactaria o mundo real politicamente. Nos últimos 22 anos convocou a comunidade trans e a extrema-direita das teorias da conspiração, Slavoj Žižek ou o sistema da moda; agora chega Matrix Resurrections, um quarto capítulo que volta a interrogar uma versão fantasista da internet quando a sua visão fatalista de 1999 já se concretizou. A banda sonora, desta vez, é dos Jefferson Airplane — “Feed your head. Feed your head”.

A estreia de um novo Matrix gerou um interesse notório. O original parece ter ficado imune às sequelas de 2003, Matrix Reloaded e Matrix Revolutions, e os seus temas — o transe colectivo da sociedade de consumo, a fase terminal do capitalismo, uma rede digital usada para cultivar dados, pessoas tornadas números em latifúndios de terra queimada — terão tocado no nervo de 2021. Em duas décadas, a apropriação política de Matrix também é sinónimo do nervoso do novo milénio, com os comprimidos oferecidos ao protagonista Neo (Keanu Reeves) — vermelho para despertar para a dura realidade que é ocultada da maioria, azul para continuar na

sociedade ordeira e mainstream — a serem sinónimo de uma facção minoritária mas disruptiva de comunidades conservadoras que fomentam e traficam teorias da conspiração online porque foram... “red pilled”.

Para o novo filme, regressam Keanu Reeves, cuja carreira como estrela de acção de séries como John Wick mostra bem o legado de Matrix, e Carrie-Ann Moss como Trinity, a dupla central de um filme de amor e filosofia de bolso disfarçado de filme de acção e ficção científica. Yahya Abdul-Mateen II rejuvenesce o profeta Morpheus (Lawrence Fishburne) e Neil Patrick
Harris e Jonathan Groff são rostos da televisão que se juntam ao elenco.
Lana Wachowski realiza e escreve o novo filme, deixando de contar com a irmã Lily, que se afastou de Hollywood. As Wachoswki assinaram os primeiros filmes como “irmãos
Wachoswki
”, tendo feito a sua transição de género na década seguinte.
Só um filme pioneiro, estilizado e afinado como Matrix pode lançar vocabulário eternizado — “uma falha na Matrix” —, manter modas circulares — é ver a capa de 1999, de Charli XCX e Troye Sivan, é ver as irmãs modelo Hadid ou as estrelas reality Kardashian e seus óculos esguios e gabardines de cabedal — e ser um terreno onde tantas comunidades diferentes se podem projectar. Em 1999, Matrix era “o cinema cyberpunk na sua melhor forma até agora”, como postulava a revista de tecnologia Wired; 20 anos depois, o site Vox garantia que esta “é de longa a obra de cultura pop mais influente alguma vez criada por uma pessoa trans”; este ano a Wired volta para decretar que “Matrix é o melhor filme de hackers”. Pelo caminho, Matrix abanou a estrutura de Hollywood e captou o espírito de 1999.
Matrix Resurrections, que se estreia nos cinemas portugueses dia 22, é mais uma reanimação de corpos culturais passados e uma retoma de um filme que começou glorioso, sucesso inesperado com orçamento de 63 milhões de dólares que rendeu 460 milhões em todo o mundo, e cuja trilogia descarrilou estrondosamente com dois filmes inferiores e que, pior, destruíam a premissa se bastianista do original.
Afinal, o programador Thomas Anderson que se revelava ser Neo, o salvador da humanidade escravizada pelas máquinas, era só uma personagem de mais uma história que a inteligência artificial criou para distrair os poucos rebeldes que escolhiam viver fora da simulação capitalista
que é a Matrix. Por vezes, as histórias são tão mais potentes quanto o tempo e o público que encontram. A internet pulula de artigos académicos, jornalísticos ou ensaios que querem saber “o que é a Matrix”. As respostas podem de facto residir numa data e não num compêndio de filosofia.
Geração DVD Como experiência de espectador, Matrix mostrava a superação das barreiras físicas e um sonho de super-heroísmo tornado possível para corpos meramente acessórios perante o poder da mente. Neo, ou o esfíngico actor em vias de se tornar estrela de acção Keanu Reeves, era alguém que não se vende ao sistema, “o rosto de uma geração X alienada,
um inconformista que foge à sua vida entediante de zangão num cubículo para se tornar num deus”, como escreveu o crítico David Sims na revista Atlantic.
O seu opositor é o software maligno que o Agente Smith do actor Hugo Weaving resume como “o futuro”, que é afinal “um mundo de sonho gerado por computador para nos manter sob controlo”, como esclarece Morpheus. “Parece um filme que é sobretudo sobre a desilusão que chega no fim de um século”, reflecte Sims, um século cujo fim também era o fim de um milénio e que ainda por cima tinha como principal vilão um vírus, o Y2K, que se temia que à meia-noite de 31 de Dezembro de 1999 tirasse a ficha ao mundo. Matrix mistura referências de Neuromancer, de William Gibson, de Sandman, de Neil Gaiman, e uma linguagem visual que já se adivinhava em Sem Limites, a primeira longa da dupla Wachowski, entre muitas outras pistas. Dispõe os
seus peões numa cidade cujas cabines telefónicas são pontos de fuga através de ligações digitais dependente de modems (que influem na banda sonora e nos efeitos de som do filme) e em que o telemóvel Nokia 8110 era a rede mais avançada. De forma também cronologicamente sintomática, a própria existência de Matrix depende dos DVD.
O ano de 1999, como se reparou em 2019 pela profusão de listas, ensaios ou podcasts sobre o tema, foi dos mais ricos de sempre no cinema americano. Uma geração de realizadores vinda dos videoclips, da publicidade ou da simples veneração indie dos seus precursores da década de 1970, ascendia numa Hollywood endinheirada. Os cinéfilos criavam as suas colecções com o suporte que na altura parecia mais inovador e duradouro — o DVD, cujas vendas começaram em força em 1997 gerando uma auto-estrada de receitas para os estúdios.
Havia dinheiro para investir em novos nomes, como Wachowski, Fincher (Clube de Combate), Jonze (Queres Ser John Malkovich?), Mendes (American Beauty). Havia algo de errado na nossa percepção da realidade, distorcida, onírica, revoltada, lúbrica. Especialmente se se era um jovem homem branco acabado de assistir ao escândalo Clinton-Lewinsky na televisão e com o desemprego em máximos históricos. O filme “alegoriza as ansiedades que emergiram nos anos do pós-guerra”, sugeria em 1999 o crítico de arquitectura Herbert Muschamp.
“Na era de apenas uma superpotência remanescente, de uma só ideologia dominante e do progresso disseminado da internet, Matrix pode facilmente significar o que alguns chamaram “a monocultura”: uma rede de centros comerciais, parques temáticos, cidades periféricas, subdivisões suburbanas, centros de convenções e hotéis construídos em torno da cultura do consumo do capitalismo avançado e dos seus padrões de normalidade fruto de pesquisas de mercado
”, disparou Muschamp no New York Times após a estreia do filme.
Nesse contexto, se hoje é já “old news” que a cultura geek dominou Hollywood, Matrix surgia numa inflexão determinante da indústria do cinema de massas norte-americano:a influência dos videojogos e sobretudo dos comics é fulcral e tornar-se-á o modelo — a matriz — das décadas seguintes. As distopias, especialmente as urbanas e gótico-industriais, entram novamente na moda. A realização com a marca Wachowski pega num léxico visual bem conhecido do cinema de acção asiático, em particular de Hong Kong ou do anime, e cria mais vernáculo Matrix: filma em bullet-time, permitindo assistir a cada detalhe de um movimento em câmara lenta, e torna as artes marciais num voo arrojado, conhecido como “wire fu” (ou kung fu preso por arames).
Matrix era um filme de heróis de acção de ciberescapismo destinado aos fãs dos comics e computadores para a crítica de cinema do New York Times Janet Maslin, que apesar de
tudo reconhecia nele “uma aventura americana mainstream com grandes perspectivas [de se tornar] um clássico de culto e com o futuro em mente”, reconhecia. “Merece tornar-se um clássico e sê-lo-á seguramente para aqueles que valorizam o poder dos filmes sci-fi de cristalizar momentos de sensibilidade urbana”, dizia ainda Muschamp, citando Metropolis, Alphaville, A Décima Vítimao u Blade Runner. “Os efeitos especiais [de Matrix] são mais do que adornos fulgurantes. São o coração do enredo.”
Metáfora trans Esse é talvez o mais crucial simbolismo de Matrix. “É uma perfeita fusão de forma e tema. Se há algo que manteve o fascínio sobre a nossa sociedade nos últimos 30, 40 anos, é o nosso vício na ofuscante irrealidade da acção cinemática”, escreveu o crítico da revista Variety nos 20 anos do filme. “Filme quintessencial de 1999”, considera, “ver Matrix é perceber algo sobre o mundo de ilusão em que vivemos”, fruto do poder do ser humano de manipular imagens.
Faz parte da história de Matrix que o papel de Neo foi oferecido a Will Smith e que o actor recusou o papel depois de não ter compreendido o conceito de “parar no ar” que os efeitos visuais revolucionários do filme trariam e que lhe foram descritos na oralidade. A Warner Bros. achou que o público mainstream não ia compreender outro aspecto do filme: a personagem Switch foi originalmente escrita como pessoa de género fluido. Na Matrix era uma mulher e na realidade dos humanos era um homem; a personagem ficou só mulher no filme.
Com os anos e com o percurso pessoal das realizadoras e argumentistas, Matrix revelou uma outra camada - sendo uma narrativa de superação, era também uma história sobre pessoas transgénero em crisálida. “Matrix era sobre o desejo de transformação, mas vinha de um ponto de vista no armário”, admitiria Lilly Wachowski em 2020 no programa online Netflix Film Club. Metáfora trans em que “os corpos são, na melhor das hipóteses, uma sugestão” e onde “as personagens rejeitam os nomes com que nasceram em prol dos nomes que escolhem”, como descreveu a jornalista e mulher transgénero Emily VanDerWerff no site Vox, o mundo “não estava pronto para isso”, lamentou Lilly Wachowski.
Matrix mudou tudo, mas também encerra em si a ilusão. O mito Matrix desmoronou-se passados escassos quatro anos do fenómeno que fora o filme original, segunda obra da dupla Wachowski plena de mensagens filosóficas em torno do livre arbítrio, da ilusão e dos simulacros envolta numa capa negra de acção e ennui distópico alimentados por conceitos latos da caverna de Platão ou do “grande Outro” de Lacan.
Nem tudo o que foi sucesso em Matrix reluziu como ouro, a começar pela recepção da comunidade filosófica. “Quando vi Matrix num cinema na Eslovénia, tive a oportunidade única de me sentar perto do espectador ideal do filme — ou seja, de um idiota”, disse o filósofo e intelectual público Slavoj Žižek em 1999, num simpósio na Alemanha. Tem voltado ao filme regularmente, seja para falar dos sobreviventes do acidente nuclear de Chernobyl ou para dinamitar a dualidade simbólica dos comprimidos azul e vermelho dizendo, no documentário The Pervert’s Guide to Cinema: “Quero um terceiro comprimido”. Uma pílula que mostra a realidade dentro da ilusão e não aquela que se esconde atrás dela. Numa cena do filme de 1999, o Neo de Keanu Reeves pega num exemplar de Simulacros e Simulação (1981), de Jean Baudrillard. Referência clara para as criadoras do filme, o filósofo francês também não mostrava especial apreço pelo título. “Matrix é seguramente o tipo de filme sobre a Matrix que a Matrix poderia ter produzido”, comentou em tempos, admitindo que foi sondado para colaborar em Matrix Reloaded e Revolutions mas que, surrealismo por surrealismo, prefere Mulholland Drive (2001), de David Lynch. Agora, nos trailers de Resurrections, Lana Wachowski pega no ainda mais óbvio Alice no País das Maravilhas de Carroll, perseguindo uma rapariga com uma tatuagem de um coelho branco rumo, supõe-se, à toca por onde muitos cairão outra vez.

Keanu Reeves e Carrie-Ann Moss “queriam dizer sim” a Wachowski e tinham “material com o qual uma pessoa se quer comprometer, dar tudo o que possa”, como disse o actor à revista Entertainment Weekly.
Lana Wachowski chegou a Ressurections devido a uma perda da vida real: a morte dos pais e de uma amizade. “[Para lidar com isso] como não podia ter a minha mãe e o meu pai, subitamente tinha Neo e Trinity,
provavelmente as duas personagens mais importantes da minha vida”, disse a cineasta numa sessão do Festival de Cinema de Berlim. A história do filme chegou-lhe de supetão, quase integralmente.
Matrix Resurrections chega a um mundo de fake news, deepfakes e bots, de trolls, de Alexas e da criptoarte. A evolução tecnológica aproximou as pessoas e isolou-as, defende Lana Wachowski aos 56 anos. “O poder da tecnologia para prender ou limitar a nossa realidade subjectiva foi uma parte importante da nova narrativa para Matrix Resurrections”, disse à Entertainment Weekly. Os detalhes da intriga desta ressurreição são desconhecidos à data de publicação deste texto. Mas “as boas notícias são que Matrix é ficção, não o futuro”, lembrava Jessica Baron, eticista de tecnologia, numa reflexão sobre os 20 anos do filme na revista Forbes em que apelava ao aCtivismo do consumidor, do eleitor, do espectador. “No filme, os humanos só têm uma hipótese de tomar o comprimido. Nós temos uma oportunidade todos os dias.”

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