Portugal no Japão: muito mais do que biombos, japoneiras e kasutera
Portugal no Japão: muito mais do que biombos, japoneiras e kasutera
Os primeiros europeus com os quais os japoneses tiveram contacto foram os portugueses, que chegaram ao Japão por volta de 1543.
Com os navegadores foram os padres jesuítas e com eles começou uma conversão em larga escala, com primazia pelas elites, num padrão muito seguido no Oriente.
O sucesso da aproximação aos senhores feudais do Japão foi de tal ordem que os portugueses fundaram a cidade costeira de Nagasaki e o seu porto para servir os negócios e a fé. Para além disso, os missionários portugueses levaram
ciência, educação e conhecimento, como aconteceu noutras paragens, sobretudo nos séculos XV e XVI.
Os jesuítas levaram a fé católica, mas respeitaram a diversidade cultural, os costumes e as diferentes religiões existentes, fazendo paulatinamente o seu percurso de pregação e educação, adaptando-se, fazendo esforços para aprendizagem da língua local, numa prática que cumpriu directrizes formais. Deve sublinhar-se que os seus escritos passavam para a Europa uma imagem positiva da civilização japonesa, em especial através das obras do padre Luís Fróis, ainda que evidenciando a dissemelhança das duas culturas.
Os japoneses eram considerados civilizados e a sua cultura enaltecida (por exemplo, espantava o asseio nas casas, com toda a certeza muito superior ao que havia na Europa quinhentista).
Por outro lado, os portugueses introduziram as primeiras armas de fogo, que foram decisivas para colocar termo ao estado permanente de caos e guerra civil e para unificar o Japão.
As mútuas influências sucederam-se.
Até à chegada dos europeus, os japoneses não tinham termo de comparação muito distinto quanto à identidade cultural (e mesmo quanto às características fisionómicas), pois os povos com os quais contactavam eram relativamente próximos e semelhantes.
Claude Lévy-Strauss afirma, no prefácio a uma edição francesa do Tratado das Contradições e Diferenças de Costumes entre a Europa e o Japão, de Luís Fróis, que, mais do que aceitação, houve interesse mútuo, pois a simetria entre as duas culturas terá funcionado como uma pessoa que se vê ao espelho e encontra uma imagem simétrica de si mesmo.
Esta relação marcou tanto a cultura que até a arte japonesa daquele período, mais conhecida pelos famosos biombos, ficou para sempre eternizada como arte Nanban, designação que deriva do nome atribuído aos portugueses, nanban, que significa “bárbaros do Sul” (por terem chegado do Sul).
Claro que este encontro de culturas não está isento de erros, de abusos e de interesses conflituantes.
Em 1580 os Filipes de Espanha passaram a governar Portugal, o que duraria até 1640.
Diluídas as demarcações do Tratado de Tordesilhas, que dividiam o mundo entre Portugal e Espanha (as duas maiores potências mundiais à época) para as explorações marítimas, os espanhóis chegavam ao Japão em 1592.
Com a sua chegada, vindos das Filipinas, instalaram-se os frades franciscanos, que rivalizavam com os jesuítas.
Em 1609 chegaram os holandeses e em 1613 os ingleses, protestantes, lançando fortes campanhas contra o catolicismo e os portugueses.
Por outro lado, crescia o receio dos senhores da guerra face à pregação de igualdade de direitos e deveres que os jesuítas semeavam.
Uma rebelião organizada por camponeses pobres, cristãos, exigindo reformas no país, não agradou aos grandes chefes militares japoneses, que temeram o fim do sistema feudal.
A intolerância dos novos padres face às religiões antigas do Japão e as disputas dos cristãos holandeses e ingleses aprofundaram desconfiança japonesa.
Não demorou muito até que padres e cristãos fossem perseguidos (ver filme Silêncio, de Martin Scorsese, e ler livro de Shusaku Endo que o inspirou) e o “senhor da guerra” Toyotomi Hideyoshi decretasse a expulsão dos estrangeiros, em especial, portugueses e espanhóis.
Mesmo assim, naquele que foi denominado o Século Cristão do Japão, as duas culturas marcaram-se para sempre.
Por mais que alguns queiram nos dias de hoje apagar ou reescrever a história, ela não foi o que desejamos, mas é o que foi e a memória do que foi.
A alteridade complementar entre portugueses e japoneses, uma espécie de jogo de espelhos, a que alude também o historiador João Paulo Oliveira e Costa, o olhar sobre o outro, é, só por si, um definidor de quem somos. Mas as imagens interpenetram-se e absorvemos muito do outro, se soubermos usufruir dessa complementaridade.
As cartas de Fróis para a Europa relatam outro acontecimento que é uma boa imagem do que aconteceu com as viagens marítimas, ~o encontro entre povos que antes não se conheciam.
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Com os jesuítas estava um homem de pele negra, um moçambicano, que causou furor e admiração, sobretudo junto de Oda Nobunaga, o chefe militar amigo dos portugueses e que quase unificou o Japão.
O motivo de espanto de Nobunaga não foi apenas a cor da pele, que nunca vira, mas os bons modos que Isaac apresentava
Mais, ainda, a força que possuía.
Isaac tornou-se um respeitado samurai ao seu serviço, algo que não era comum entre estrangeiros, e ganhou na pronúncia japonesa o nome de Yasuke.
A identidade faz-se também da natureza e dos objetos com que crescemos.
A botânica mundial, por exemplo, sofreu uma total revolução com as viagens marítimas, as primeiras a permitir o transporte de plantas vivas, e não apenas sementes, a longas distâncias e assim a adaptação a distintas geografias.
Do Japão partiram plantas como a nespereira ou a japoneira (cameleira), tão comum nos pátios da lusofonia.
Para a troca, os jesuítas levaram, por exemplo, as videiras e as uvas, a oliveira, a figueira, o marmeleiro.
Para a gastronomia levaram o açúcar branco, até aí desconhecido, e o pão-de-ló ou pão de Castela (para quem não conhece, um bolo doce), que, pronunciado em japonês, ficou conhecido como kasutera e como emblema identitário da melhor doçaria japonesa.
O consumo de carne de vaca foi uma inovação nos hábitos alimentares japoneses, tendo ficado conhecida como baka.
A famosa tempura resulta da têmpora e terá origem nos peixinhos-da-horta.,
O konpeito resulta do doce tradicional português confeito.
Na língua japonesa ficaram outras palavras como símbolos dessa mistura cultural, como
bateren (padre), bidoro (vidro), birodo (veludo), karuta (carta), kirisutan (cristão), orugan (órgão), butan (botão), pan (pão), koppu (copo), shabon (sabão), tabako (tabaco).
Na lusofonia herdámos, por exemplo, objetos e palavras que também enriqueceram os costumes e a língua:
catana (katana), biombo (byobu), chávena (chawan, palavra sino-japonesa), quimono (kimono), nipónico (nippon), leque
(das Ilhas Léquias), nandina ou avenca japonesa (nandin).
Foi a partir deste primeiro contato, no século XVI, entre Portugal e Japão, que o enriquecimento recíproco de culturas e povos tão distintos foi iniciado (curiosamente, Aveiro, cidade de onde escrevo esta crónica, é cidade irmã de Oita, na Ilha Kyushu, no Japão).
Esta reciprocidade, tão enraizada desde há quase 500 anos, poderá, desejavelmente, constituir-se como um forte alicerce para um contínuo futuro de amizade e cooperação.
Ângelo Ferreira
*** A Nova Portugalidade agradece ao Professor Ângelo Ferreira a autorização para a publicação
desta excelente síntese das relações entre Portugal e o Japão.
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