O caso que opôs o juiz Francisco Marcolino ao Estado português no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (cf. aqui) é um caso exemplar da corrupção que grassa no sistema de justiça português.
Em 2010, o juiz Marcolino era juiz do Tribunal da Relação do Porto quando se candidatou ao lugar de inspector judicial na sua cidade natal, Bragança, em regime de comissão de serviço - um lugar onde lhe competia avaliar os juízes do tribunal da cidade.
O Conselho Superior da Magistratura (CSM) atribuiu-lhe o lugar, só que o juiz Marcolino se esqueceu de comunicar ao CSM um pequeno detalhe que terá motivado o seu interesse pelo lugar. É que no tribunal de Bragança ele era o autor de vários processos judiciais contra várias pessoas e ficava agora numa situação inaceitável de conflito de interesses, a saber, ele iria avaliar os juízes que julgavam os casos em que ele próprio era parte.
Um dos seus irmãos [o mais novo, com quem ele mantinha um diferendo por causa do seu avião] e uma juíza [Paula Sá, identificada no processo pelas iniciais de dois dos seus outros apelidos, Ramos Nunes, com quem ele mantinha um diferendo por questões de avaliação judicial] fizeram queixa ao CSM.
E o CSM nomeou um inspector para inspeccionar o inspector Marcolino.
O inspector do CSM confirmou que o inspector Marcolino se aproveitava da sua situação para pressionar os juízes em Bragança. No momento da inspecção, o juiz Marcolino tinha nada menos do que oito processos judiciais a correr contra terceiros no tribunal de Bragança.
Vários juízes já tinham pedido escusa dos processos envolvendo o inspector Marcolino para não correrem o risco de decidir contra ele e serem penalizados por ele nas suas carreiras. E havia um caso em que um juiz decidiu a favor do inspector Marcolino, atribuindo-lhe uma indemnização de 25 mil euros. Naturalmente, este juiz teve boa nota na avaliação do inspector Marcolino.
O juiz Francisco Marcolino tinha descoberto uma forma original de enriquecer através do sistema de justiça - pôr acções judiciais por tudo e por nada a quem lhe aparecesse pela frente, com os respectivos pedidos de indemnização, e depois usar a sua condição de inspector judicial para pressionar os juízes a decidirem a seu favor.
O inspector do inspector Marcolino concluiu que o juiz Marcolino tinha violado o seu dever de lealdade ao esconder do CSM informação relevante para a sua nomeação como inspector judicial em Bragança e também concluiu que ele tinha violado o seu dever de reserva ao pronunciar-se publicamente sobre a sua colega, a juíza Paula Sá.
O inspector Marcolino foi condenado pelo CSM a pagar uma multa, suspenso por seis meses das funções de inspector judicial e mandado regressar ao Tribunal da Relação do Porto, fazendo surgir uma nova originalidade na justiça portuguesa, desta vez da parte do CSM, a saber: o juiz Marcolino não era competente para julgar juízes, mas continuava competente para julgar cidadãos, que passaram a ser uma espécie de carne para canhão nas mãos do juiz.
O juiz Marcolino recorreu da decisão do CSM para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), o qual negou qualquer razão ao juiz Marcolino, e confirmou a decisão do CSM.
Não confiando nem no CSM nem no STJ, o juiz Marcolino pôs um processo no TEDH contra o Estado português - na realidade, contra duas das mais altas instâncias da justiça portuguesa, o CSM e o STJ. O juiz Marcolino, sendo juiz de um tribunal superior do país, mostrava assim que ele próprio não confiava na justiça portuguesa, deixando no ar a pergunta legítima: Como é que o cidadão comum há-de confiar?
O juiz queixava-se de que, em todo o processo, lhe tinham sido violados, nada mais nada menos, que os seguintes direitos: o direito a um processo equitativo (artº 6º da CEDH, cf. aqui); o direito à liberdade de expressão (artº10º); o direito à protecção da vida privada (art 8º); o direito a um duplo grau de jurisdição (artº 2º do Protocolo nº 7 anexo à CEDH); o direito à legalidade (artº 7º); o direito a um recurso efectivo (artº 13º); e o direito à não-discriminação (artº 14º). Claro que, a todas estas queixas, o juiz Marcolino acrescentava um sólido pedido de indemnização a ser-lhe pago pelo Estado português.
O juiz Marcolino esqueceu-se que Estrasburgo não é Bragança - uma das diferenças sendo que em Estrasburgo não há caciques -, e o TEDH, em Junho de 2021, numa decisão por unanimidade de sete juízes, rejeitou todas as queixas do juiz Marcolino. Dos muitos direitos de cuja violação o juiz Marcolino se queixava, o TEDH não lhe reconheceu nem um.
Neste momento do processo (Junho de 2021) aquilo que sobressaía era a falta de julgamento (para dizer o mínimo) do juiz Marcolino, uma falta de julgamento que não é uma falta menor num juiz de um tribunal superior do país - o Tribunal da Relação do Porto onde, além de juiz-desembargador, o juiz Marcolino desempenhava também as funções de presidente da primeira secção criminal.
O juiz punha processos por atacado aos seus conterrâneos (mas não só aos seus conterrâneos, cf. aqui) com o objectivo de enriquecer ilicitamente através dos respectivos pedidos de indemnização. O juiz candidatara-se ao lugar de inspector judicial do tribunal da sua cidade natal para poder pressionar os juízes a decidirem a seu favor, e sem ter informado o CSM da situação de conflito de interesses em que se encontrava. O juiz falava mal em público da sua colega Paula Sá, que o denunciou. O juiz ameaçara com uma pistola o irmão mais novo que também o denunciou (cf. aqui). O irmão mais novo queixou-se mesmo ao CSM de ter sido agredido pelo juiz e pelo outro irmão, ficando com a cara num estado lastimável (cf. aqui). O juiz recorreu para o Supremo das sanções que lhe foram impostas pelo CSM e o Supremo virou-lhe as costas. O juiz recorreu depois para o TEDH que também lhe virou as costas. Enfim, o juiz não confiava nas decisões das mais altas instâncias da justiça portuguesa de que ele próprio fazia parte.
Tanta falta de julgamento (para dizer o mínimo) num juiz-desembargador - a segunda mais alta categoria da magistratura -, é impressionante. Mas a maior falta de julgamento viria a ocorrer este mês e não foi do juiz Marcolino.
Na realidade, em face deste currículo invejável, a que se acrescenta o facto de ele ser publicamente conotado com o partido do Governo (cf. aqui) - e muito provavelmente só por isso -, este mês, o juiz Marcolino foi promovido pelo CSM à mais alta categoria da magistratura - a de juiz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça (cf. aqui).
Posted by Pedro Arroja