Não há anteriores governos, nem guerra, nem pandemia que justifiquem o estado de coisas. Nada justifica a incompetência, a falta de visão e a ausência de sentido prático da vida.
Em Portugal, o início do ano lectivo é um desastre.
É normal.
Há dezenas de anos que se sabe que as aulas começam mal.
Que há horários por preencher.
Obras por acabar.
Professores precários a mais.
Professores obrigados a viajar dezenas de quilómetros ou a mudar de residência.
Alunos sem professores ou com programas incompletos.
Alunos sem manuais à disposição e sem cantinas capazes de funcionar.
E alunos obrigados a percorrer, todos os dias, muitos quilómetros.
Este ano, mais uma vez, há milhares de “furos” nos horários e nos programas.
É normal.
Há dezenas de anos que se sabe que as condições de alojamento dos estudantes universitários são deficientes, caras e pouco confortáveis.
Há dezenas de anos que se sabe que a oferta de quartos pelas entidades públicas, as universidades, os institutos, as autarquias ou o ministério, é reduzida e muito insuficiente.
Já se sabia isto há trinta anos, quando os estudantes eram 150.000.
Continua a saber-se agora, que são mais de 400.000 e com uma situação infinitamente mais grave, de molde a que muitos estudantes deixem de estudar, que muitos candidatos desistam e que muitas famílias renunciem a essa possibilidade.
Nas últimas décadas, os progressos do ensino superior foram colossais. Isso pode medir-se em números de estudantes, de professores, de cursos, de licenciaturas e de doutoramentos.
E também em acesso das mulheres às carreiras docentes e à investigação.
Mas não tenhamos dúvidas que se poderia ter ido muito mais longe, que alguns ensinos poderiam ser de muito mais qualidade e que os cursos poderiam ser muito mais exigentes para a ciência.
Que outros ensinos poderiam ser mais virados para a vida prática, a empresa e o emprego.
Que a desigualdade social poderia ser menor e que o mérito poderia ser um critério nas regras de acesso e de progressão.
Que muitas pessoas poderiam chegar aos estudos superiores se tivessem o benefício de uma acção escolar com meios e mais eficiente.
Mais uma vez, as autoridades consideram que o medíocre é aceitável, o mau é passageiro, o suficiente é uma utopia e o bom é impossível.
Cada um pensa que o seu ano, este ano, é melhor do que os anos dos outros, os anos anteriores.
Todos se contentam com a mediocridade e convidam os cidadãos a fazer o mesmo.
É tanto assim que se acha aceitável que ainda haja milhares de situações como as acima descritas.
Ano após ano, a situação oscila entre o mau e o péssimo, facilmente se considera o medíocre como razoável.
Nunca é bom nem muito bom.
Nem sequer suficiente.
Ou antes, satisfatório, para as autoridades, é quando se pode demonstrar que “este ano” estamos melhor do que no “ano passado”.
A ideia de que a maior parte das deficiências do início de ano escolar se podem tratar ou evitar faz parte das utopias que já nem sequer se desejam.Há anos, talvez dezenas, que o Serviço Nacional de Saúde revela insuficiências notórias.
Muitos serviços e centros de saúde acabam por praticar a desigualdade, mesmo sem querer, mesmo sem saber.
Faltam médicos e especialistas em numerosos serviços e centros de saúde. Faltam médicos de família para centenas de milhares de cidadãos.
Faltam ainda mais enfermeiros.
Muitos médicos e enfermeiros deixam o SNS para os hospitais privados.
Muitos outros deixam o país para o estrangeiro.
A formação de médicos está sempre aquém do necessário.
As condições de acesso para pacientes e doentes são muitas vezes, mesmo muitas, deploráveis e inaceitáveis.
As filas de espera para consultas e cirurgias, mas também para exames e análises, são enormes, de semanas a meses.
A eficiência das urgências é muitas vezes abaixo dos critérios mínimos.
As condições de espera nas salas, nas recepções e nos corredores são geralmente miseráveis de desconforto para quem está aflito ou inquieto.
Também aqui, na saúde pública, se fizeram melhoramentos enormes!
Temos números de médicos muito satisfatórios, entre os mais elevados da Europa.
Tanto a despesa pública como a privada não cessam de aumentar.
Mesmo assim, as filas de espera são inacreditáveis, sobretudo num país com números elevados de médicos e enfermeiros.
Mesmo assim, há serviços que fecham por falta de pessoal.
Mesmo assim é possível acontecer o que está agora diante de nós: todas as semanas, todos os meses, maternidades e hospitais anunciam a suspensão de nascimentos e de internamentos de urgência!
É esta uma das mais escabrosas situações existentes na saúde em Portugal ou em qualquer sector da vida social, perante a qual dirigentes políticos e sanitários são capazes de alegar com problemas estruturais e causas longínquas, recusando as suas responsabilidades e ficando satisfeitos com qualquer melhoria, mesmo provisória, mesmo temporária, mesmo insignificante.Saúde e educação!
Dois bons exemplos, talvez os melhores, do que é a incapacidade de gestão, a deficiência de previsão, a falta de planeamento e a ausência de espírito prático e realista.
Os governos sucedem-se na elaboração de estratégias a longo prazo, de planos integrados, de reformas estruturais, de políticas sustentáveis e de programas de recuperação e resiliência, assim como na criação de grupos de acção, de conselhos consultivos e de observatórios, todos de enorme sabedoria, mas sem qualquer noção das responsabilidades, de sentido prático e de espírito realista.
Sabe-se que a gestão, boa ou má, é quase sempre também uma questão política.
O tratamento das questões de saúde e de educação depende muito das opções políticas, da ideia que se deve ter do público e do privado, do centralismo ou da autonomia, da política ou da tecnocracia, da ciência ou do social.
Mas, a partir de ideias esclarecidas, de programas aceites, de leis aprovadas e de enquadramento definido, é a capacidade de gestão responsável que surge no primeiro plano.
Na educação e na saúde, sobretudo nos casos referidos, nas filas de espera, na desigualdade social, na ausência de equipamentos, na descoordenação de instituições, na falta de pessoal e na absurda incapacidade de previsão e planeamento, o estado actual é deplorável. Sem desculpas.
Não há anteriores governos, nem guerra, nem pandemia que justifiquem o estado de coisas.
Nada justifica a incompetência, a falta de visão e a ausência de sentido prático da vida.
Público, 17.9.2022
António Barreto
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