terça-feira, 20 de setembro de 2022

Um Chefe neste estado

Em vez de Isabel II, temos Segundo Marcelo. É esse o seu cognome, porque passa a vida a comentar insignificâncias.

José Diogo Quintela

Como português, não posso dizer que tenha ficado impressionado com as imagens das cerimónias fúnebres da Rainha Isabel II. Ver a quantidade incrível de pessoas disponíveis para ficarem 13 horas numa fila, ao frio e à chuva, só para passarem perto de uma defunta e voltarem para casa de mãos a abanar, só é estranho para quem não costuma recorrer ao nosso SNS.

(Mesmo o percurso que o caixão da monarca fez pelo Reino Unido – de Balmoral para o palácio de Holyroodhouse, daí para a catedral de St Giles, depois para Buckingham, Westminster e, finalmente, para Windsor – fez lembrar o périplo de uma grávida portuguesa hoje em dia até encontrar um hospital que a aceite).

O que terá levado tantos milhares de britânicos a deslocarem-se de propósito a Londres, só para assistirem ao funeral de Isabel II? Homenagem, como os comentadores avançam? Não creio. Julgo que vieram foi certificar-se que a sua Rainha está mesmo morta e que nunca mais os voltará a fazer passar vergonhas, como sucedeu ao longo dos últimos 70 anos.

Até o silêncio sepulcral durante o cortejo fúnebre, sem que alguém se atreva a proferir um som, deve-se ao medo irracional de acordar a falecida. Os ingleses estão aterrorizados com a hipótese de Isabel II voltar a ocupar o lugar de Chefe de Estado, com a falta de jeito que sempre a caracterizou.

A sua sobriedade, a ausência de intervenção na vida política britânica, a imparcialidade, a modéstia, a contenção, tudo isso deixou traumas profundos num povo que gostava de ter tido uma Rainha mais espampanante. Por exemplo, digamos que havia eleições numa Ex-colónia inglesa, vamos supor o Zimbabué, com grandes irregularidades eleitorais a beneficiarem o partido no poder desde a década de 70. Imaginemos que a Rainha visitava o país e dava uma entrevista. Quer dizer, não era bem uma entrevista, eram umas declarações à queima-roupa mal lhe estendiam um microfone à frente. Nesse depoimento, alguém acha que a Rainha ia ter a presença de espírito para comparar as dúvidas sobre a legitimidade de umas eleições organizadas por uma ditadura, com a discussão política dentro do partido democraticamente eleito para governar o Reino Unido? Reconhecemos em Isabel o à vontade para largar ali duas ou três larachas de grande impacto institucional? Claro que não. A Rainha não teria esse jogo de cintura. Na improbabilidade de agraciar os jornalistas com algumas palavras, o mais certo seria a Rainha limitar-se a cumprimentar as pessoas, evitando meter-se em assuntos sobre os quais, acharia ela, enquanto representante máxima de um país, se deveria abster de comentar. E perdendo a oportunidade de, através de uma comparação estapafúrdia, propiciar bons momentos televisivos aos perplexos públicos zimbabuense e britânico.

É por nunca mais terem de aturar a sisuda reserva institucional da sua monarca que os ingleses estão aliviados. Talvez agora lhes calhe em sorte um Rei mais descontraído que faça insinuações sobre consumos de substâncias ilícitas por parte de militares hospitalizados, ou, ao arrepio da Constituição, dê instruções públicas ao Governo, ou recomende aos seus súbditos que se esforcem para não adoecer em Agosto. Alguém que não se esconda atrás, nem de normas arcaicas sobre a separação de poderes, nem de conceitos reaccionários como sentido do Estado, e se pronuncie livremente sobre desacatos em feiras agrícolas, o papel da oposição, um certame internacional dedicado à informática, colonoscopias do próprio, o desempenho de secretários de Estado ou a táctica da selecção nacional de futebol.

É essa a grande vantagem do republicanismo sobre a monarquia. Uma Rainha não se escolhe, atura-se. Já um Presidente, é seleccionado, pelas suas qualidades, de entre o escol. Em vez do circo das charretes, missas cantadas, vénias, soldadinhos de chumbo, pajens de calções de veludo, temos a seriedade de um representante eleito pelo povo. Em vez de Isabel II, temos Segundo Marcelo. É esse o seu cognome, porque passa a vida a comentar insignificâncias. “Segundo Marcelo, o acidente na descida do viaduto Duarte Pacheco deveu-se a uma mancha de óleo na via da direita que, agravada pela chuva miudinha que se fez sentir às primeiras horas do dia, se transformou numa mistela escorregadia que prejudicou a travagem do pesado que se dirigia ao Marquês de Pombal. Não há, de acordo com o Presidente, indícios de excesso de velocidade”.

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