Não é um político desprovido de qualidades, mas como tem uma vaidade maior do que a ponte da Arrábida acha que tudo lhe é permitido.
João Miguel Tavares
Se quisermos ser altivos e conformistas em relação aos problemas do futebol, podemos sempre utilizar o argumento antropológico: as grandes manifestações desportivas foram habilmente inventadas pelo Homo sapiens para substituir as guerras tribais, através da criação de um novo tipo de confronto físico com regras claras e controladas, que permite encontrar um vencedor sem necessidade de derramamento de sangue. Portanto, quando vemos um estádio cheio de adrenalina e testosterona, devemos estar preparados para cenas de relativa selvajaria, e aceitar essas manifestações de irracionalidade como uma compensação para velhíssimos actos de violência brutal, que assim são sublimados através de insultos à mãe do árbitro. Tirando a mãe do árbitro, toda a gente fica a ganhar.
Há muita verdade neste argumento antropológico. Mas, ainda assim, ambiciono ser mais do que um cavernícola no século XXI. Portanto, tenho muita dificuldade em me conformar com aquilo que vejo semana após semana no mundo do futebol português, seja crianças obrigadas a despir camisolas (porque o seu equipamento não combina com as cores de determinada bancada), o apedrejamento de carros de treinadores, as cuspidelas a famílias ou a polémica jornalístico-desportiva em torno das flash-interviews. É tudo demasiado feio, porco e mau, e isso dá-me a volta à tripa, ao ponto de eu estar há alguns anos a fazer um esforço genuíno para me afastar de um desporto que adorei a minha vida toda.
Por isso, geralmente fico caladinho no meu canto, a resmungar com os meus botões, porque isto aqui é o PÚBLICO, não é A Bola. Até que surge aquele momento – e surge imensas vezes – em que os políticos decidem entrar em campo, e o tema do futebol irrompe subitamente na minha pequena área. Aconteceu de novo este fim-de-semana, quando o presidente da Câmara do Porto e o vice-presidente do Conselho Superior do Futebol Clube do Porto – ambos chamados Rui Moreira – decidiram, imagine-se, criticar uma pergunta feita por um jornalista da Sport TV numa flash-interview com o jogador Taremi.
A crítica saiu nestes termos a Rui Moreira, na sua página pessoal de Facebook: a dita pergunta (sobre a expulsão de Taremi no jogo com o Atlético de Madrid) foi “uma provocação abjecta” por parte de um “pseudo-repórter” que se portou como um “perfeito imbecil”. As sábias palavras de António Costa sobre os ministros continuarem a ser ministros mesmo à mesa do café também se aplica a presidentes da câmara e às suas redes sociais. Rui Moreira não é um político desprovido de qualidades, mas como tem uma vaidade maior do que a ponte da Arrábida acha que tudo lhe é permitido. E como ambiciona suceder a Jorge Nuno Pinto da Costa à frente do FC Porto, não se importa de ostentar o seu fanatismo portista, até porque acha que lhe poderá trazer dividendos no futuro.
Como ambiciona suceder a Jorge Nuno Pinto da Costa à frente do FC Porto, não se importa de ostentar o seu fanatismo portista, até porque acha que lhe poderá trazer dividendos no futuro
Tenho dificuldades em perceber como é que alguém pode ser impecavelmente polido nos paços do concelho e orgulhosamente neanderthal no comentário desportivo. Mas sei onde é que reside o pecado original: no vergonhoso concubinato entre futebol e política, que não há maneira de acabar neste país. A ridícula polémica das flash-interviews já envolveu a deputada do PS Cláudia Santos, enquanto presidente do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, e atinge agora Rui Moreira. Esta mistura despudorada de futebol, jornalismo e política só serve para uma coisa: agravar uma cultura de ódio que envenena há décadas este país
https://www.publico.pt/2022/09/19/opiniao/opiniao/rui-moreira-perfeito-imbecil-cultura-odio-2021136.
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