quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

"As corporações também são gente"

O balanço de 2022 mostra um ano em que, por convicção política e chancela judicial, se consagra o corolário da corrupção legal: dinheiro é cidadania.


Nem um Natal se pode ter descansado. O caso da secretária de Estado da Caça ao Tesouro, que nos entreteve da véspera de Natal até ontem à noite, será seguramente arquivado pelo primeiro-ministro como mais um "caso e casinho" da "propaganda da direita". Mesmo que revele a roda livre que vai na TAP, onde os administradores usam os 3200 milhões que os contribuintes lhes puseram nas mãos para se auto-atribuírem carros de função, bónus e paraquedas dourados. Mesmo que revele a total incapacidade de o Governo escrutinar os negócios, portas giratórias, conflitos de interesses e riscos reputacionais dos seus membros.

O "caso e casinho" Miguel Alves foi há menos de dois meses mas, na remodelação que o substituiu, não ocorreu a António Costa evitar a mesma asneira de escolher secretários de Estado sem verificar percursos, currículos e relações. Muito menos lhe ocorre esclarecer o que andam os seus ministros a fazer, a passar culpas no meio desta bagunça. O Presidente da República, pelo seu lado, acelera do "não se passa nada" ao "investigue-se tudo" com a rapidez do costume e, no fim, sacrificado o bode expiatório, tudo fica por explicar e mais ainda por corrigir. Visto a partir das suas instituições, Portugal desistiu.

Como balanço do ano, é doloroso. Lá fora, estamos em guerra, mas as sanções à Rússia continuam embrulhadas em doses variáveis de hipocrisia e selectividade. Nisto, Portugal é mau exemplo: não só figurões russos continuam a fazer de Lisboa uma "Lisbongrad", capital amigável ao dinheiro da oligarquia, como o inquérito anunciado em janeiro à compra de nacionalidade portuguesa por Abramovich e outros bandidos de gabarito continua amigavelmente parado numa qualquer gaveta do Estado.

A grande corrupção, sistémica, tornou-se uma função do poder. Institucionalizou-se e é hoje, já não uma violação da lei, mas uma nova lei – ou, para usar a terminologia da época, o "novo normal". E não, o problema não é só português. No final de novembro, o Tribunal de Justiça da União Europeia emitiu um acórdão, pouco notado por cá, que em termos práticos ilegaliza o combate à corrupção em nome do direito à privacidade dos corruptos.

A decisão declarou que a Diretiva Europeia que abriu ao público os registos de beneficiários efetivos na UE viola o direito dos cidadãos à privacidade. A coisa é um pouco técnica, mas é importante. Por lei europeia, cada país da UE tem um registo onde estão identificadas as pessoas físicas que controlam cada empresa ou organização a operar naquele país. É uma forma de saber quem verdadeiramente está por trás de estruturas geridas, muitas vezes, por administradores-delegados, testas de ferro ou que são detidas por outras entidades, de países diferentes, até se perder o rasto de quem na realidade beneficia daqueles ativos.

Em 2018, uma diretiva europeia obrigou a que esses registos fossem abertos ao público e consultáveis online por qualquer cidadão. Voltando ao (mau) exemplo de Miguel Alves, foi esse acesso livre aos registos europeus que permitiu, por exemplo, a investigação jornalística que encontrou as empresas do sócio privado da Câmara de Caminha no famoso centro de exposições transfronteiriço, revelando que o propagado império empresarial com ramificações, por exemplo, no Luxemburgo, era uma enorme patranha.

Hoje, essa investigação seria impossível. Foram precisamente os tribunais luxemburgueses a suscitar a intervenção do Tribunal de Justiça da UE que, por sua vez, essencialmente mandou fechar o acesso público aos registos de beneficiários efetivos. O queixoso que deu origem ao processo, é (obviamente não por acaso) um homem de negócios muito ativo em paraísos fiscais. Vários países da UE fecharam o acesso aos seus registos logo que saiu o acórdão. Encontrar a verdade sobre o cambalacho de Caminha esbarraria hoje num beco sem saída.

É verdade que o tribunal vincou que jornalistas ou organizações da sociedade civil têm um interesse legítimo nestes registos e que, portanto, podem continuar a aceder-lhes. O problema é que, se o registo não está aberto e à distância de um clique, ativistas e jornalistas terão de peticionar cada país para que lhes seja dada uma credencial de acesso; e ficar à espera de resposta, segundo as regras ou critérios que cada Estado inventar. Uma ferramenta de transparência transformou-se numa corrida de obstáculos e num pesadelo burocrático que assegura a sua inoperância.

A decisão é um boicote frontal ao combate à corrupção, ao crime organizado e à lavagem de dinheiro. Diz o tribunal que as pessoas (incluindo salta-pocinhas de offshores) têm direito à sua privacidade. Balelas. Uma empresa, uma ONG, uma organização, é uma ferramenta através da qual cidadãos (investidores, acionistas, associados) participam na vida pública – política, social, cultural ou económica. A vida pública é isso mesmo: pública – a pista está no nome. A única razão admissível para reservar a identidade de alguém ligado a uma entidade é se essa identificação puser a pessoa em risco – de rapto, por exemplo, ou de perseguição por grupos criminosos ou regimes ditatoriais. Essa exceção, sucede, já está prevista na lei europeia.

O verdadeiro racional é outro: é estender às empresas os mesmos direitos individuais dos cidadãos. É equivaler dinheiro a cidadania. "Corporações também são gente", exclamou Mitt Romney, que se candidatou contra Barack Obama em 2012, celebrando a decisão do Supremo Tribunal dos EUA que concedeu às empresas o direito a financiar sem restrições políticos e campanhas eleitorais, em nome do direito à "liberdade de expressão" dessas empresas – a legalização da corrupção que põe a política americana no bolso das corporações.

É neste ponto que estamos, em que cidadãos cada vez mais espremidos, em Portugal e no mundo, se veem agora obrigados a disputar os seus direitos de cidadania com corporações. Não é um bom estado de coisas.

Há esperança? Há. Não a esperança vácua e ingénua de que "isto há de compor-se", mas a esperança da insubmissão. Este Natal, a Câmara Municipal de Miranda do Douro, impulsionada pelo Movimento Cívico da Terra de Miranda, anunciou que entrará com uma ação judicial contra a Autoridade Tributária pela cobrança de IMI nas barragens do Douro Internacional – as mesmas cuja concessão foi estendida por favor de Manuel Pinho e depois vendidas pela EDP à Engie, num negócio que (também ele) não pagou impostos.

Quando as corporações são gente, são gente poderosa. Na Terra de Miranda, um povo envelhecido e empobrecido, cuja riqueza natural é abocanhada há décadas pelo Estado e pelas empresas captoras do Estado, está a mobilizar-se para fazer justiça. A esse povo, por tudo o que representa, desejo Bom Ano.

João Paulo Batalha

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domingo, 25 de dezembro de 2022

Os maiores salários em Portugal: 70 profissionais de topo

Líderes do retalho e de outras grandes empresas cotadas em Bolsa escalam na tabela de ordenados, atingindo os seis dígitos. Na TV, ninguém bate Cristina Ferreira, com €216,6 mil por mês. Entre as estrelas de futebol, Draxler, que chegou agora ao Benfica, recebe €583 mil mensais. Marcelo ganha 58 vezes menos.

A titulo de curiosidade, para quem não saiba, o ordenado mínimo nacional é, em 2022: 705,00€/mês

Enquanto os portugueses perdem poder de compra, há uma minoria que resiste à sucessiva quebra de salários – especialmente os gestores de topo das maiores empresas cotadas em Bolsa, com remunerações mensais até aos seis dígitos. O recordista é Pedro Soares dos Santos, à frente do grupo Jerónimo Martins (que detém os supermercados Pingo Doce).

Em 2021, recebeu €3.075.000, ou seja, 262,6 vezes mais do que os trabalhadores da empresa (segundo a análise de 2021 da Deco) e 161,7 vezes acima da remuneração média anual (€19.054 em 2021, divulgada pelo Instituto Nacional de Estatística, INE). As contas são fáceis: se dividirmos a sua remuneração anual (salário fixo e prémios) por 14 meses, chegamos ao ordenado mensal bruto (antes dos descontos de impostos) de €219.642.
Só entre 2016 e 2021, o seu salário mais do que duplicou. “Estava muito abaixo dos seus congéneres europeus”, diz à SÁBADO fonte oficial da empresa. Por isso mesmo, “ao longo dos últimos cinco anos, foi delineada uma evolução salarial que permitisse uma maior aproximação à prática do mercado europeu”, prossegue.
Além de presidente do conselho de administração, Pedro Soares dos Santos é administrador delegado e o único com funções executivas na Jerónimo Martins. Os €3,08 milhões que recebeu em 2021 foram, aliás, os únicos milhões gastos com a comissão executiva de um dos 50 maiores retalhistas mundiais. Porque a comissão executiva é ele. E estes são alguns dos factores – mas não os únicos – que o fazem ter o maior salário do principal índice da Bolsa, justifica a empresa.

Rede de supermercados em expansão 

Uma remuneração que tem vindo a crescer à medida dos resultados do grupo: entre 2010 e 2020, as vendas mais do que duplicaram, ultrapassando os €20 mil milhões em 2021; o número de colaboradores aumentou mais de duas vezes, com a criação de mais de 64 mil postos de trabalho, e a capitalização bolsista cresceu 100%.

O volume de trabalho é intenso, não se limitando a Portugal. Desde que viveu na Polónia, pela primeira vez, entre 1998 e 2000, Pedro Soares dos Santos visita o país uma vez por mês (é a geografia além fronteiras que mais pesa nas contas do grupo, já que 75% da facturação se faz no estrangeiro). Passa outros sete dias a cada 30 na Colômbia (mercado em expansão). Quando está em Portugal, duas semanas por mês, entra no gabinete às 8h e a partir das 9h começa as reuniões de trabalho.

Quem ganha acima de 1 milhão

No ano passado, as 15 empresas do PSI pagaram mais de 20 milhões de euros aos seus presidentes executivos. E seis dos 14 CEOs receberam mais de 1 milhão de euros: ao ranking liderado por Pedro Soares dos Santos seguem-se Miguel Stilwell (EDP e EDP Renováveis), Andy Brown (Galp), Cláudia Azevedo (Sonae), João Castello Branco (Semapa, que em Maio deste ano deu lugar a um novo CEO, Ricardo Pires) e António Redondo (Navigator).
Em todas estas empresas, os salários são decididos por uma comissão de vencimentos que analisa centenas ou milhares de documentos enviados por vários departamentos e múltiplos indicadores.
Começando pelo presidente da Galp, o britânico Andy Brown: em 2021, além dos €1,236 milhões pagos ao líder, que assumiu a presidência em Fevereiro, a petrolífera teve de arranjar-lhe casa. O presidente não tinha morada em Portugal e esse foi um dos benefícios que a Galp lhe deu: €887.803,03 de remuneração fixa e €348.617,35 em “outros” (a SÁBADO pediu à Galp para os discriminar, mas a petrolífera não esclareceu). É nestes “outros” que estão incluídas regalias, como o subsídio de habitação.

Pedro Soares dos Santos, presidente do grupo Jerónimo Martins, é o mais bem pago
Pedro Soares dos Santos

Cláudia Azevedo (Sonae) está na quarta posição do ranking dos maiores salários

Cláudia Azevedo (Sonae)

Os administradores executivos da Galp recebem, além disso, carro (com combustível, manutenção e seguros), telemóvel, iPad, computador portátil, seguros de saúde, de vida e de acidentes profissionais. No total, estes benefícios correspondem a 5% a 10% da remuneração.
No ano passado, a comissão de remunerações da Galp reuniu-se seis vezes e definiu o valor de outro cheque: a compensação a Carlos Gomes da Silva, cujo mandato como presidente só terminaria no fim do ano. Para sair antes (em Fevereiro), o gestor recebeu €3,75 milhões.

Saídas de peso

Na EDP, os cheques preparados para a saída do Ex-presidente António Mexia e de João Manso Neto, que liderava a EDP Renováveis, tiveram valores mais baixos. No caso de Mexia, que durante 14 anos liderou a empresa, a EDP comprometeu-se a pagar €800 mil por ano durante três anos (até 2023), para que o gestor não exerça funções na concorrência. No total, Mexia terá direito a €2,4 milhões, pagos semestralmente.
Já para Manso Neto, o acordo de não concorrência previa o pagamento de €560 mil por ano. Terá demorado uma semana a aceitar a proposta. Ainda recebeu a primeira tranche, mas acabou por devolvê-la quando Paulo Fernandes, vice-presidente do conselho de administração da Altri e presidente da Cofina (dona da SÁBADO) o desafiou para liderar a empresa de energias renováveis Greenvolt.
A seguir, Manso Neto rasgou o contracto de não concorrência que tinha assinado. “A EDP entendeu que tinha que devolver tudo e ele devolveu”, diz uma fonte próxima do gestor, que em Março restituiu à EDP €233.800 líquidos. De acordo com os relatórios oficiais da empresa, a este valor somou, em Maio, €5.548,39 que tinham sido creditados no seu Plano Poupança Reforma. Pelo menos em 2021, a aposta compensou: recebeu €766.660.
Actualmente, EDP e EDP Renováveis têm o mesmo CEO, Miguel Stilwell de Andrade, o segundo gestor mais bem pago do PSI. Aos 46 anos, recebeu, em 2021, €1,854 milhões. “Estas empresas são hoje líderes globais no sector da energia e têm presença em 29 mercados, dos quais 14 representam expansões concretizadas durante o mandato do actual presidente executivo”, diz à SÁBADO fonte oficial da eléctrica.
Na base da tabela remuneratória dos grandes gestores está António Rios Amorim. O presidente Corticeira Amorim, controlada pela família mais rica do País, recebeu €239.309,1 de salário fixo em 2021 (€17.129 brutos por mês). A sua remuneração variável foi igual à dos trabalhadores do grupo: €500, uma “gratificação excepcional” que, segundo o Relatório e Contas da empresa, foi atribuída aos colaboradores admitidos até 30 de Setembro de 2021 em empresas totalmente detidas pelo Grupo. O bónus veio na sequência dos bons resultados em contexto de pandemia.


Campeões da banca

O peso da remuneração variável tem vindo a aumentar, segundo Fernando Neves de Almeida, sócio da consultora Boyden Portugal. No caso do PSI, foi na Sonae, liderada por Cláudia Azevedo, que os prémios foram maiores (corresponderam a 68% do salário da filha de Belmiro de Azevedo); seguiram-se as remunerações dos presidentes da Navigator (56%), REN (53%), EDP, EDP Renováveis (50%) e Jerónimo Martins (50%), todos com pelo menos metade do salário dependente do cumprimento das metas definidas.
Entre as empresas analisadas pela SÁBADO, o Santander é quem prevê maior generosidade nos bónus: apesar de a compensação variável não poder, geralmente, ultrapassar os 100% da retribuição fixa, este limite pode ser “aumentado extraordinariamente até ao máximo de 200% se tal for aprovado pelos accionistas.”

Na banca, o recordista é o presidente do Santander, o único líder das cinco maiores instituições financeiras que em 2021 recebeu mais de 1 milhão de euros. No total, a Pedro Castro e Almeida foi atribuída uma remuneração de 1,5 milhões de euros: ao salário fixo de 513 mil euros (valores brutos, o correspondente a €36.643 por mês), junta-se uma remuneração variável que será parcialmente diferida até 2027 (e que ainda pode descer se não cumprir os objectivos).
Em segundo lugar está o habitual campeão salarial da banca, o presidente do BCP – em 2021 Miguel Maya recebeu €947 mil. Estes dois bancos foram, aliás, os únicos que no ano passado aumentaram as remunerações dos seus gestores. No Santander, os 14 administradores receberam, em 2021, €6,5 milhões, mais €1,88 milhões que no ano anterior. Já no BCP a administração teve, no total, um aumento de €430 mil.

Cristina e o ordenado “galáctico”

No mundo da televisão generalista, que este mês marca a rentrée com novidades na grelha, ninguém bate o ordenado de Cristina Ferreira – “galáctico”, segundo a imprensa especializada. Desde o fim do Verão de 2020, que a directora de entretenimento e ficção da TVI, também accionista, de 45 anos (feitos esta semana, a 9 de Setembro), ganha €216,6 mil brutos por mês (€2,6 milhões anuais divididos por 12 meses, porque tem um contracto de prestação de serviços, ou seja, recebe através de uma das suas empresas).
Não esconde as férias em iates e os acessórios de luxo (malas a €5.000), cujas imagens publica no seu Instagram com 1,5 milhões de seguidores. Página que também serve de montra para os seus posts que, em 2015, já custavam €4.500 (cada) aos anunciantes. Hoje em dia, segundo fontes contactadas pela SÁBADO, os valores podem ascender aos €100 mil por post.
Contudo, a pressão das audiências e a perda para a SIC não a têm beneficiado. Mais: enfrenta uma batalha judicial com a estação de Paço de Arcos, que lhe moveu um processo por quebra de contracto (vigorava até Novembro de 2022).

O anúncio da transferência para a TVI – onde, aliás, começou a carreira ao lado de Manuel Luís Goucha – aconteceu com estrondo, a 17 de Julho de 2020. Dois meses depois, a SIC, que lhe pagava €1 milhão por ano, processou-a, pedindo uma indemnização de €20,3 milhões. A SÁBADO tentou obter esclarecimentos por parte do gabinete de comunicação da TVI e da agente que a representa, Inês Mendes da Silva, que não quiseram prestar declarações.
Neste meio, a agente tem vindo a tornar-se uma peça-chave para a negociação de salários com as direcções de programas das televisões. Porque muitas vezes o próprio não tem noção do seu valor de mercado – habitualmente são os representantes que o valorizam.
Beatriz Lemos, CEO da Glam (a agenciar actores e apresentadores há 20 anos) explica o processo à SÁBADO: “É muito raro fechar uma negociação em apenas uma reunião, pois há sempre vários temas a tratar, projectos novos a serem discutidos e integrados nesse contracto e, talvez, seja essa a parte mais demorada. A mais sensível – se é que podemos usar esse adjetivo – são as condições salariais.”
Normalmente, fecham-se contratos em duas reuniões. Em situações mais delicadas, e que podem implicar uma transferência de canal, a especialista fala em três reuniões, “pois estão mais variáveis a ser discutidas”, diz a especialista.

Apresentadores de TV em escalões

No caso de Manuel Luís Goucha, o segundo mais bem pago da TV (€50 mil por mês), o interlocutor é o marido Rui Oliveira. Este período joga a seu favor, já que o antigo rei das manhãs – agora lidera as tardes, superando a concorrente Júlia Pinheiro da SIC que ganha €25 mil brutos por mês –, está prestes a terminar contrato.

  • Alexandra Lencastre está na SIC, mas é paga ao projeto
  • Alexandra Lencastre está na SIC, mas é paga ao projeto Duarte Roriz

  • António Pedro Cerdeira recebe ao projeto. Na foto, a contracenar com Luana Piovani na próxima novela da SIC
  • António Pedro Cerdeira recebe ao projeto. Na foto, a contracenar com Luana Piovani na próxima novela da SICD.R.

  • Cristina Ferreira é a mais bem paga da TV; no seu Instagram mostra as férias em iates
  • Cristina Ferreira é a mais bem paga da TV; no seu Instagram mostra as férias em iatesD.R.
  • Beatriz Lemos (CEO da agência Glam) negoceia contratos de vários atores
  • Beatriz Lemos (CEO da agência Glam) negoceia contratos de vários atoresRicardo Meireles/SÁBADO

  • Ricardo Azedo (publicist da agência Charlie) faz a ponte nas negociações salariais de atores
  • Ricardo Azedo (publicist da agência Charlie) faz a ponte nas negociações salariais de atoresBruno Colaço/SÁBADO
  • Concorrentes na TV e amigos fora dela: Júlia Pinheiro (SIC) e Goucha (TVI) são das estrelas mais bem pagas
  • Concorrentes na TV e amigos fora dela: Júlia Pinheiro (SIC) e Goucha (TVI) são das estrelas mais bem pagasD.R.

    José Eduardo Moniz, diretor-geral da TVI, quer segurá-lo mas nada está garantido, pelo menos oficialmente. Quando contactado pela SÁBADO, Rui Oliveira responde através da secretária uma curta declaração: “A partir de dia 1 de janeiro de 2023, o Manuel Luís Goucha é livre de escolher o seu futuro.” Poderá querer dizer continuidade ou uma reforma dourada aos 67 anos no seu monte no Alentejo – a Herdade da Pesqueirinha, perto de Monforte.
    Quem mais ganha são os apresentadores do day time (período diurno), porque asseguram várias horas em antena e fazem a ponte para o horário nobre (hora do jantar). Ao vencimento mensal que, em média, oscila entre os €8 mil e os €20 mil brutos por mês, somam-se os extras por ações comerciais, como microespaços de publicidade inseridos no formato. Por exemplo, Cristina Ferreira ganhava €500 por cada, quando fazia as manhãs da SIC; já nas últimas galas do Big Brother, que conduziu na TVI, o valor de cada promo escalou aos €5.000.
    Neste domínio, Fernando Mendes dá cartas no acesso ao horário nobre. Várias fontes da RTP contactadas pela SÁBADO reforçam que o apresentador do clássico O Preço Certo atrai publicidade para a estação pública. As marcas querem ficar associadas ao formato, que fideliza um público envelhecido, com mais de uma década de emissões contínuas – sendo o de maior longevidade da televisão. E as audiências provam que não está gasto, ficando à frente da concorrência.
    Por tudo isto, o campeão das 19h lidera a tabela remuneratória, ex aequo com Catarina Furtado: €20 mil brutos por mês. Mais €12.366 do que recebe o presidente da RTP, Nicolau Santos, cuja remuneração está definida por lei e publicada nos relatórios e contas da estação pública. Em contraponto, um técnico da casa ganha, em média, entre €1.200 e €1.400 líquidos por mês, consoante o escalão.
    Internamente, na RTP ninguém contesta o que vale o apresentador de 59 anos. Já foi aliciado pela TVI e pela SIC, mas tem rejeitado. A estação dá-lhe estabilidade, sem mexidas para outros projetos porque é neste que se sente bem, disse em entrevistas.
    Há diferenças em relação à colega de 50 anos, e que são apontadas nos corredores por várias fontes ouvidas pela SÁBADO. Catarina Furtado está menos tempo em antena e Fernando Mendes “trará o triplo da publicidade”, comenta-se. Quem já trabalhou com ela explica à SÁBADO que não é bem assim: a apresentadora “dá prestígio” à RTP e, em estudos de mercado, o seu nome associa-se a credibilidade e confiança. Isto nota-se nas marcas que a procuram (Sacoor, por exemplo).
    Seja como for, o conselho de administração da RTP (que aprova as remunerações) não comenta os números, quando questionado pela SÁBADO. Fonte oficial diz apenas: “Nunca revelamos valores de contratos, dependem do perfil, horário e periodicidade de cada programa e não do género dos profissionais que os apresentam.” A Comissão de Trabalhadores (CT) contrapõe: “Os valores de salários das estrelas da RTP são contratos de ‘artista’, fora do âmbito da tabela salarial e negociados sem interferência dos Órgãos Representativos dos Trabalhadores.”
    No patamar dos €10 mil brutos por mês, a meio da tabela, estão Tânia Ribas de Oliveira (A Nossa Tarde) e Jorge Gabriel (Praça da Alegria). Tal como Fernando Mendes, Jorge Gabriel reafirma a estabilidade e, sem falar de valores, explica à SÁBADO: “Estou na RTP há 21 anos, com contratos de dois anos sucessivamente. Nunca me falharam no vencimento, ouvem a minha opinião e não me obrigam a fazer nada que colida com a minha dignidade profissional.”

    Atores sem exclusividade

    Já lá vai o tempo em que as televisões tinham uma vasta galeria de caras exclusivas, isto é, atores que mesmo sem aparecerem no ecrã eram pagos principescamente. Caso de Alexandra Lencastre na TVI, onde recebia €16 mil brutos se trabalhasse e metade quando parada. Em 2020, transitou para a SIC mas em regime de avença: recebe ao projeto. Quando faz novelas, como a última Por Ti, cujas gravações terminaram em junho, passa, todos os meses, um recibo de €14 mil a que acresce o IVA.
    Se fizer uma emissão em direto, como a de Estamos em Casa (junho de 2022), ganha à parte – mais precisamente €3,5 mil por conduzir três horas de direto. Somam-se as publicidades a suplementos e aparelhos auditivos em contratos de um ano e nunca por menos de €75 mil cada.
    Ricardo Azedo, da agência Charlie, é quem a representa, escusando-se a falar de cachês. Outro agenciado da Charlie é António Pedro Cerdeira, de 52 anos, que vai protagonizar a nova novela da SIC em horário nobre, com estreia prevista para 6 de outubro e apresentada nesta terça-feira (6 de setembro). Fará de diplomata casado com Vanda Corte Real (vilã interpretada pela musa brasileira Luana Piovani).
    A SÁBADO apurou que o vencimento do ator é de €9 mil por mês e será pago em moldes idênticos aos de Alexandra Lencastre. O próprio não comenta o que ganha, mas refere à SÁBADO a importância da agente à mesa das negociações. “Não tenho jeito com números, ela ajuda-me porque tem firmeza e distanciamento. Gosto de trabalhar e considero-me afortunado. O dinheiro não é, de todo, o principal objetivo.”
    Lurdes Santos, a sua agente, reforça: “O valor do António é reconhecido e temos chegado sempre e facilmente a um consenso.” Em concreto, sobre a novela, houve duas reuniões (com ele, a agente, o diretor financeiro do projeto e o diretor de produção) e o acordo firmou-se à terceira, por telefone.
    O ator grava 12 horas diárias, das 8h às 20h, e desloca-se pelos seus meios (carro) de casa (perto de Sintra) aos locais de gravações (Costa de Caparica e Setúbal), prescindindo do transporte que a produtora SP Televisão disponibiliza ao elenco.

    Cantores na estrada 

    Os tempos de pandemia foram particularmente difíceis para a classe artística, que viu contratos cancelados sobretudo no verão – época alta de concertos nas aldeias, pagos por municípios ou freguesias.

    Após dois anos de compasso de espera, os cantores voltaram à estrada. Em julho e agosto, não havia terra que não anunciasse os cabeças de cartaz, com Tony Carreira a marcar pontos, chegando a cobrar por concerto mais de €50 mil, segundo o portal Base que divulga contratos públicos.

    Draxler do Benfica à frente

    Nas remunerações do futebol, o francês Mbappé lidera. Renovou o contrato este verão com o Paris Saint-Germain e passou a ser o jogador mais bem pago do Mundo: €4,3 milhões líquidos por mês.
    Entre os portugueses, Cristiano Ronaldo continua à frente, apesar de ter vindo a perder protagonismo no Manchester United (foi suplente em quatro jogos no início desta época), recebendo €1,3 milhões de euros por mês. É dos mais bem pagos da Liga inglesa, atrás de Kevin de Bruyne (€2 milhões) e Haaland (€1,8 milhões), avançados do Manchester City.
    CR7 ganha mais do dobro de João Félix, que recebe cerca de €600 mil líquidos por mês no Atlético de Madrid, numa lista que em Espanha é liderada por Piqué (Barcelona), com €1,2 milhões por mês.
    Outros portugueses com grandes salários são Bernardo Silva (€750 mil), Rúben Dias (€585 mil) e João Cancelo (€400 mil), todos do Manchester City. Em França, Vitinha (PSG) recebe €250 mil euros por mês e Renato Sanches (Lille) embolsa €170 mil. Já Rafael Leão, estrela do AC Milan, recebe €155 mil líquidos por mês, mas o clube italiano quer renovar-lhe o contrato e triplicar-lhe o ordenado, podendo em breve passar a ganhar cerca de 450 mil.

    Em Portugal, destaca-se o alemão Draxler, que joga no Benfica e ganha €583,3 mil limpos por mês. O seu clube, PSG, paga 80% do salário. O restante (€116,6 mil/mês) é assegurado pelo clube dos encarnados.
    Já o português mais bem pago num dos três grandes clubes é Pepe (FC Porto), com €227 mil euros mensais, seguindo-se João Mário (Benfica), com €215,8 mil. Também no Benfica, Rafa ganha €140 mil por mês. No Sporting, Pedro Gonçalves recebe €101,3 mil mensais e Trincão €100 mil (embora grande parte do salário seja pago pelo Barcelona, o seu atual clube).

    Titulares de cargos públicos

    Afastados dos salários milionários estão os ministros, deputados e dirigentes dos partidos, por serem titulares de cargos públicos. Assim atestam as últimas declarações de rendimentos, que os próprios entregaram ao Tribunal Constitucional (TC), em 2022, conforme a lei, e a SÁBADO consultou.
    São opções de carreira, que o diga Luís Montenegro que viu os rendimentos baixarem desde que assumiu a presidência do PSD, a 4 de julho passado. Desde então, ganha €5.135 brutos por mês.

    Na declaração entregue pelo próprio no TC há dias, e referente a 2021, indica €97.875 de rendimentos brutos de trabalho independente, decorrentes dos serviços de advocacia em nome individual. Acrescem €100.893 de rendimentos profissionais, comerciais e industriais. Tudo somado, em 2021 Luís Montenegro recebeu €198.768 brutos.
    A 30 de junho último, em vésperas de ser eleito no 40.º congresso nacional do PSD, suspendeu a inscrição na Ordem dos Advogados. A advocacia pode, de facto, ser uma profissão rentável, se o profissional ganhar nome e tiver uma boa carteira de clientes.
    Dos 30 mil inscritos na Ordem, muitos têm entre 25 a 35 anos e ganham entre €1.000 e €1.500 líquidos, por mês, baseados em oficiosas (defesas pagas pelo Estado a pessoas carenciadas). Ao fim de 10 a 15 anos de experiência, os bem-sucedidos atingem €3.500 líquidos por mês. Em termos de honorários, o valor mais comum é de €70 à hora mas pode ascender aos €300.
    Neste contexto, o bastonário da Ordem, Luís Menezes Leitão abdicou da remuneração inerente ao cargo (cerca de €6.000 brutos) e manteve a de professor catedrático na Faculdade de Direito de Lisboa (cerca de €4.000 brutos). Além das aulas, continua a exercer advocacia porque, em seu entender, o bastonário não deve ser funcionário da Ordem, mas fazer vida de advogado.

    O Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, outrora colega de Luís Menezes Leitão, ganha uma remuneração base de €7.722,10 prevista na lei. Juntam-se as despesas de representação (€3.088,84), mas depois dos descontos para impostos (€5.155,90) leva para casa €5.268,93.
    O vencimento do chefe de Estado serve de referência ao primeiro-ministro. António Costa recebe o correspondente a 75% do ordenado do Presidente (dita a lei n.º 4/85). Na sua última declaração, entregue ao TC em maio de 2022, regista €7.300 de rendimentos prediais, três imóveis (dois em Lisboa e um no concelho de Lagoa) e está prestes a adquirir outro (“promitente comprador” escreve).
    Nuno Melo, líder do CDS, é um apaixonado por carros antigos. Tem 17 enumerados na sua declaração no TC (como Morris Minor Station, o MG MGA 1600 ou Renault 4 GTL). “Vou declarar mais três. Nunca fugi com um cêntimo”, diz à SÁBADO.
    No fim da tabela está André Ventura, líder do Chega, que regista no TC €48.473 (rendimento bruto de trabalho dependente em 2021, enquanto deputado em exclusividade). Ou seja, todos os meses, recebe cerca de €2.900 líquidos. “É a minha única fonte de rendimento. Tenho andado a propor cortes salariais nos titulares de cargos públicos, por isso não sou remunerado como líder do partido”, explica à SÁBADO.

    https://www.sabado.pt/dinheiro/detalhe/os-maiores-salarios-em-portugal-70-profissionais-de-topo

    sábado, 24 de dezembro de 2022

    Marcelo. Afinal quem é este homem?

    Entrevista em 1983: Marcelo queria "apagar com uma borracha" a sua imagem irreverente, irresponsável, irrequieta

    Maria João Avillez

    Texto

    O político sem “amigos políticos" - mas com a TV. O homem que leva a Fé a sério. Maria João Avillez conta a sua história com o candidato, após a sua eleição como Presidente.

    17 Jan. 2016

    texto publicado originalmente a 17 de Janeiro

    Uma entrevista em 1983

    1. Falava-me em “missão” e “sacrifício”, tinha uma pose de Estado, media as palavras. Só o olhar aceso era o mesmo de sempre. Secretário de Estado Adjunto da Presidência do Conselho de Ministros no VIII Governo – o segundo Executivo de Francisco Balsemão –, Marcelo Rebelo de Sousa necessitava da entrevista que esta foto ilustra como de um instrumento de salvação: era preciso apagar com uma borracha (e naquela Primavera de 83 a borracha era eu) o Marcelo irreverente, irresponsável, irrequieto e inquieto que durante oito anos, com ágil voracidade, escrevera no Expresso. Contaminando o país com doses permanentes de intriga, exclusivamente por si idealizada e produzida.

    Mas agora tratava-se de ser convincente no papel de governante da pátria. Disfarçando que a AD já morrera, que a orquestra desafinava sob a batuta do seu aflito maestro; fingindo ignorar o meticuloso (e vergonhoso) trabalho de formiga de Freitas do Amaral – número dois da coligação – para a enterrar mais depressa; disfarçando que o mesmo Freitas galopava nas sondagens deixando o primeiro-ministro Pinto Balsemão seguir atrás, num trote infeliz; fazendo crer que o Governo estava de boa saúde e se recomendava. E por aí fora. Nada disto era verdade, nem aquela pose -revestida por uma convicção postiça – era verosímil.

    Não acreditei em nada.

    Mas acredito que talvez nunca tenha conhecido alguém onde o talento destoasse tanto de, digamos assim, algumas debilidades de personalidade. Talento, sim: no fulgor da inteligência, no brilho intelectual, na velocidade de raciocínio, na preparação invulgar, na leitura. Génio de tudo isto junto. Além de magnifico entertainer: abrilhantando sucessivos “diners en ville”, pontuava no centro das salas, contando histórias sempre apenas semi-verdadeiras, exibindo espírito, tendo graça, tirando partido de si mesmo, procurando efeitos, iludindo a verdade para obter ainda mais efeito. Sempre a seu favor. E sempre cumprindo duas “regras”, imutáveis através dos tempos: ser o centro das atenções; aludir, destacar ou sublinhar os defeitos das outras pessoas, fossem elas quem fossem.

    As nossas (débeis) elites adoravam-no, telefonavam-lhe, citavam-no, mimavam-no, convidavam-no, ouviam-no. E que importância que alguma maledicência fizesse estragos, por vezes irreparáveis? Ou que a intriga fosse sulfurosa?

    Era o talentoso Marcelo: tinha sucesso, influência, escrevia na Página Dois do Expresso, sabia tudo, acedia a tudo! Dispensava até o apelido. Tinha, é certo, de ser servido em doses homeopáticas e consumido a conta-gotas, mas as elites serviam-se. E aplaudiam. Ocorre o mesmo ainda hoje: como os Bourbons, não aprenderam nem esqueceram.

    Mas a César o que é de César: gostei muito de ter trabalhado com Marcelo Rebelo de Sousa. A sua mente fulgurante, sempre em ebulição, possuía um ritmo de trabalho que tornava apaixonantes tarefas comuns e a sua rapidez de pensamento e decisão tudo facilitavam. Dono de boas ideias, fazia excelente ambiente, tinha um dinamismo contagiante, punha talentos a render. Foi o grande responsável por um dos maiores trunfos de sempre do Expresso – e da imprensa portuguesa – senão o maior, do qual ficou saudade e exemplo: a invenção da “Revista” onde o mais fresco, mais talentoso e mais criativo do nosso jornalismo se juntou à roda de Vicente Jorge Silva, a quem Marcelo entregara a chave do suplemento. Que tempos! Os melhores tempos!

    Tendo uma personalidade excessiva, Marcelo Rebelo de Sousa era excessivamente íntimo na sua relação com os outros – amigos, conhecidos, desconhecidos, distantes, próximos, menos próximos, inimigos. Tratando-se dele, ignoro se de facto tem verdadeiros amigos ou se privará antes com uma multidão de “conhecidos”

    No Expresso era também íntimo de toda a gente. Tal proximidade ofereceu-me um posto de observação privilegiado. A partir dele, fui elegendo as cores com que lhe ia pintando o retracto: foram sempre as mesmas. Anos fora, a vida confirmou-me as cores e o retracto.

    Entre o pai Baltazar e a mãe Maria das Neves

    2. Nasceu em Dezembro de 1948, deve ser dos poucos portugueses que dispensa apelido e é pelo menos tão popular quanto um jogador de futebol: a televisão tornou-o no primo que vem jantar aos domingos com histórias para contar. Uma transversalidade quase única na sociedade portuguesa, dotes de comunicação dignos de um Vitorino Nemésio, a plateia do país predisposta a acreditar mas, como dizer?, ao fundo da paisagem havia sempre, continua a haver, algo que nos constrange tanto quanto nos desconvence.

    O pai era ministro de Marcelo Caetano, o filho herdou-lhe o nome: chama-se Marcelo Nuno, não restando hoje dúvida que a escolha de tal pronome sinalizava uma homenagem ao que anos depois seria Chefe do Governo. Esteve aliás para ser afilhado de Marcelo Caetano quando, oito dias antes do baptizado, este voltou atrás: dizia-se velho demais para apadrinhar uma criança. Se o padrinho mudou – foi Camilo Mendonça –, a devoção da família Rebelo de Sousa por Marcelo Caetano (as visitas a sua casa sucediam-se, em clima quase familiar) não se alterou.

    Mas se o pai Baltazar era um “fiel” do antigo regime, dos seus chefes e dos seus valores, a mãe Maria das Neves, assistente social “engagée” de personalidade vincada e desenvolta, possuía – e não o escondia – um pé mais fresco. Nunca aliás se poderá evocar o seu filho Marcelo sem ao mesmo tempo ter presente aquilo que em parte o explica: a influência – imensa e por vezes obsessiva – que a Mãe tinha sobre ele, mais do que sobre qualquer dos outros dois filhos. Reclamando-se embora da figura paterna e do seu exemplo, Marcelo inspirava-se na mãe, bebendo-lhe o carácter forte: seguia-a, admirava-a, citava-a. A figura da mãe foi, em suma e bem mais que qualquer outra, uma referência constante e duradoura.

    Era um ambiente familiar cerzido de estreitas relações com o poder, onde o jovem Marcelo, o segundo filho, cresce repartido entre a fidelidade de seu pai a Marcelo Caetano, as críticas da mãe ao regime e as frequentes visitas de ambos ao Presidente do Conselho. Jovem e dotado estudante de Direito, não se sentia próximo do grupo de extrema-direita que na universidade gravitava à roda de Jaime Nogueira Pinto e da sua revista “Política”, nem da extrema-esquerda empenhada e activa que se opunha ao regime e dispunha de pródigo palco na faculdade. Não tinha uma posição política definida, nem – aparentemente – dela carecia. (Talvez por isso, e ao contrário do que rezam certas crónicas, nunca tomou parte em nenhuma das greves académicas que inteiramente polarizavam os estudantes, de um e outro lado do regime, e ainda menos “furou” umas ou outras, como também por vezes se sugere).

    “Pretendia o fundador do MAI combater – ou criticar – o então ministro da Educação, José Hermano Saraiva. Mas a acção do movimento foi limitada – e não muito notada –, cingindo-se a sua ténue influência às Faculdades de Letras e Direito.”

    Limitou-se, ao chegar a Faculdade de Direito, a criar um movimento que pouco marcou, o MAI – Movimento Académico Independente –, na esteira de outro que entretanto agonizava – Acção Académica –, mas onde ele não chegara porém a participar.

    Pretendia o fundador do MAI combater – ou criticar – o então ministro da Educação, José Hermano Saraiva. Mas a acção do movimento foi limitada – e não muito notada –, cingindo-se a sua ténue influência às Faculdades de Letras e Direito.

    Mais tarde, no início dos anos 70, integra com mais felicidade o “Grupo da Luz” – animado pelo Padre Vítor Melícias –, onde se junta ao seu grande amigo António Guterres, mas também a Diogo Lucena, Helena Roseta, Miguel Beleza e Carlos Santos Ferreira, entre outros. Paralelamente entra (mas não à primeira tentativa) para a SEDES.

    Em 1972 Balsemão, que dera por ele, desafia-o para integrar o projecto que então idealizava de um novo jornal; em 1973, e após ter fugazmente colaborado em “A Capital”, Marcelo estreia-se como analista político no Expresso que nascera em Janeiro desse ano, assinando a “Página Dois”, que viria a constituir o seu primeiro grande palco. E onde se estrearia também o “cronista” Francisco Sá Carneiro escrevendo o “Visto”, coluna semanal que muito trabalho veio a dar ao lápis azul da censura.

    Insistindo que “queria apenas ser professor de Direito” mas fazendo jornalismo, agindo civicamente, namorando a política, iniciando uma brilhante carreira académica, Marcelo começava outra vida com o Expresso. De certo modo o país também.

    Ele foi quase tudo. Ou não?

    3. Conselheiro de Estado, professor catedrático de Direito, Ex-deputado, Ex-líder do PSD, Ex-secretário de Estado, Ex-ministro, pisou pela primeira vez a cena politica como deputado à Constituinte em 1975 nas listas do PPD, onde se filiara um ano antes. Duas décadas depois, em 1996, chega à sua liderança, após ter sido tudo o que se pode ser num partido político.

    Vi-o – e sempre com o brilho da sua inteligência – subverter (quase) tudo onde começava por pôr uma mão

    Vinte anos em que protagonizou, colaborou e até inventou um “conceito” completamente novo na história da política recente: os factos políticos. De tal forma que, um dia, deu-se até ao trabalho de discorrer em voz alta sobre tal “conceito”, em longo artigo que escreveu no Expresso. Inventava uns, semi-produzia outros e “analisava” os restantes, reais e concretos, temperando-os a gosto: com mais ou menos sal, com maior ou menor quantidade de pimenta, sempre conforme as suas conveniências políticas. Idolatrado ou detestado, convidado ou rejeitado, ganhou, perdeu, perturbou, iludiu, escreveu, governou, traiu e foi traído.

    Conheci-o na Rua Duque de Palmela, onde então ficava o Expresso, nunca mais deixei de o ver até hoje.

    Li-o em diversos jornais e revistas, entrevistei-o na SIC e em vários jornais mais de uma vez, acompanhei-o em manifestações cívicas, estive ao seu lado em celebrações religiosas, fiz a sua “apresentação” nalguns fóruns e eventos. Em suma: conheço-o de há muito e da primeira fila.

    Por isso cedo me apercebi de algumas debilidades na ossatura da sua personalidade. E cedo alcancei que elas poderiam por vezes fazer gripar o motor do seu carácter. É que, com o mesmo brilho e a mesma velocidade, Marcelo era capaz de dizer tudo e o seu contrário, ser tudo e o seu oposto, sem nunca estar inteiramente comprometido com nada (a sério, só com Deus, já lá irei).

    Lembro-me dele ser PSD e anti todas – sem excepção – lideranças do partido ao longo dos anos; de redigir em 1978 um projecto de revisão constitucional, a pedido de Francisco Sá Carneiro e depois produzir prosas agressivas no Expresso contra o mesmo Sá Carneiro; de apoiar Balsemão e troçar até ao limite de Balsemão, amar Soares e desamar Soares; crer nas várias AD e logo depois descrer, ao ponto de as abandonar à sua sorte; apoiar Cavaco para Presidente aceitando o seu convite para integrar o Conselho de Estado e depois preferir-lhe (publicamente) como modelo presidencial Jorge Sampaio.

    Vi-o aliás ser íntimo de Jorge Sampaio (“era da casa”e “estudava com os filhos”) e desdenhar Sampaio apesar de, graças ao seu convite, se ter pela primeira vez sentado na bela sala do Conselho de Estado, na vigência presidencial do mesmo Sampaio, estava-se então em 2001. (Cadeira que abandonaria de livre vontade um ano depois, em desacordo com a promulgação da Lei da Programação Militar.)

    Vi-o enfim – e sempre com o brilho da sua inteligência – subverter (quase) tudo onde começava por pôr uma mão. Ou um pé. Mas depois o escorpião preferia sempre ir ao fundo a… salvar-se a si mesmo. Fossem quais fossem as rãs.

    Sabendo isto, sempre negou isto. Um dia de sol do final de Março de 2007, acabava ele de sair do mar quieto da Praia da Conceição em Cascais, quando, minutos depois, ali mesmo em frente, no terraço do hotel Albatroz, diante de um microfone para uma entrevista que então eu lhe fazia, ele me falou de carácter: “Não tenho defeitos de carácter”. Não estranhei: o meu gravador estava cheio de desabafos parecidos, supostamente redentores de passados enviesados.

    Ao mesmo tempo, nesse final de manhã, tentava convencer-me – e não pela primeira vez – que entrara na política “contrafeito”, que a sua caminhada política fora uma “sucessão infeliz de acasos”, que a sua “vocação era o ensino do Direito”. Voltei a não acreditar.

    O tempo da “Nova Esperança”

    4. Basta olhar para trás no tempo para medir o equívoco do adjectivo “contrafeito”, aplicado por Marcelo Rebelo de Sousa à (sua) vida política. Nunca pensou noutra coisa, mesmo quando hesitava, voltava atrás ou parecia desistir. E mesmo que nunca se tenha esgotado nela – como ia ocorrendo na Universidade; na media, em jornais como o Expresso ou o Semanário; no comentário radiofónico ou televisivo; na administração de instituições e fundações –, a política era, foi sempre, a trave mestra.

    E eis, a propósito, um dos melhores marcos desse “edifício”, e falo agora e não por acaso da “Nova Esperança”.

    Vista da janela de Janeiro de 2016, merece que se olhe para ela. É uma grande árvore na paisagem política de Marcelo. Foi plantada no ano de 1983, na vigência do Bloco Central formado pelo PS e pelo PSD que (juntos) governavam o país, mas antes disso, numa cave da Rua de S. Félix à Lapa, já alguns jardineiros sonhavam com ela. Baptizada de Nova Esperança, ensaiava uma corrente de pensamento que se pretendia autónoma dentro do PSD “motapintista” de então.

    Os jardineiros, resolutos e dotados, eram quatro e tinham pressa: Marcelo Rebelo de Sousa, Pedro Santana Lopes, José Miguel Júdice e José Manuel Durão Barroso não gostavam do Bloco Central. Há muito que, na imprensa e na televisão, Júdice se ocupava do tema da “bipolarização ao centro”, em sintonia com Santana (e à distância Durão Barroso, que estudava em Genève). Defendiam o mesmo e publicamente combatiam a receita política aplicada ao país. Desafiado por ambos, Marcelo, que também detestava a fórmula, não hesitou: era preciso “dar cabo daquilo”. Como? Fundando uma nova corrente-tendência, no seio do partido. Argumento forte: politicamente o país construir-se-ia com muito maior vantagem se assente sobre um grande partido à direita e outra grande formação à esquerda que se alternariam no comando de Portugal, evitando os estragos fatalmente produzidos por um bloco central – o fortalecimento dos extremos, a complacência, a corrupção. Em suma: longa vida à bipolarização ao centro.

    A tarefa de pôr termo à aliança entre o PSD e o PS nunca os assustou: estavam organizados, eram destemidos, tinham uma estratégia e a vontade politica de a concretizar. O partido já dera por eles, Portugal iria dar: no final de 1983, Marcelo e os seus companheiros dão à estampa um pequeno livro, “Contra o Bloco Central”, onde evidenciavam razões e argumentos; meses depois plantam a árvore da “Nova Esperança”; não falham nenhum Conselho Nacional do PSD, com o propósito de fazer a “vida negra” a Mota Pinto, líder do partido e vice-primeiro-ministro de Mário Soares. Combatem a pretensão presidencial da direção social-democrata, que então se orientava para a escolha do militar Firmino Miguel, eventualidade que todos rejeitavam liminarmente, preferindo-lhe Alberto João. Jardim, com quem conspiravam.

    Marcelo, o mais veloz, andava numa azáfama e se as paredes do escritório da Rua de S. Félix – que ele alugava e os outros frequentavam – falassem, muito contariam sobre esses tempos de agitação e esperança. O seu empenho era tal que Marcelo por vezes se deslocava de helicóptero do norte para sul e de um palco para outro. Fazia política com volúpia e pressa. Em 1984 o grupo, já com apoiantes e simpatizantes, leva uma moção ao Congresso de Braga do PSD. A tese era a mesma (bipolarização ao centro), os argumentos conhecidos, mas o certo é que em qualquer votação em que participassem era raro obterem menos de dez por cento dos votos, um feito político nesses tempos em, que sem esforço, antes com felicidade, os sociais-democratas, de uma forma geral, se deixavam enlear pelos encantos do Bloco Central.

    Mas a grande apoteose da Nova Esperança surgiria porém meses depois, em Maio de 1985, no XII Congresso social-democrata, convocado por Rui Machete, então líder interino do partido, após a súbita morte de Mota Pinto. Tratava-se de eleger uma nova chefia, mas discordando do candidato João Salgueiro que, a seus olhos, representava a continuação conformista “do que estava”, o grupo decide “facilitar” a vida de Cavaco: aterrando de supetão na Figueira da Foz, Cavaco Silva, surpreendendo todos, anunciara a sua disposição de também disputar a conquista do PSD.

    Marcelo discorda veementemente: “estão doidos? O homem fica lá dez anos e talvez mais dez depois em Belém….” Para os seus companheiros o futuro contava porém muito menos que o presente. E o presente, revisto por Cavaco Silva, anunciava – e prometia – o fim do famigerado Bloco Central.

    Não foi fácil. Seguiram-se horas alucinantes de negociações, conspirações, intervenções, promessas, avanços, recuos. Saltando do palco para os bastidores e de “cafés” para quartos de hotéis, o grupo reúne, troca argumentos entre si, há concordâncias, discordâncias, discursos, e muita efervescência no ar político. A Nova Esperança é a grande vedeta, o grupo tornara-se politicamente indispensável, mas esta “indispensabilidade” deixara um travo amargo em Marcelo. E abre uma fissura na unidade daquele quarteto de cabeças de cartaz.

    “Ferida de morte, a Nova Esperança esvaía-se na praia da Figueira Foz: já não era precisa. A verdade é que se Cavaco a atravessara de alto a baixo, reduzindo-a a cinzas após capturar algumas das suas estrelas, a aventura deixou memória impressiva.”

    Desconfiado e descontente, Marcelo hesitará até ao fim mas acaba por se render. Cavaco ganha o Congresso graças ao apoio vindo da moção Nova Esperança – nunca Aníbal Cavaco Silva teria vencido sem ela – e o PSD obtém um inesperado candidato presidencial. Exit Jardim, Freitas do Amaral entra em cena, pela mão do recém-eleito líder. Começava uma outra história, a direita tinha uma nova dupla política. Santana e Durão seguirão o novo chefe da tribo. Marcelo recusa – com Júdice – entrar no perímetro cavaquista.

    Ferida de morte, a Nova Esperança esvaía-se na praia da Figueira Foz: já não era precisa.

    A verdade é que se Cavaco a atravessara de alto a baixo, reduzindo-a a cinzas após capturar algumas das suas estrelas, a aventura deixou memória impressiva.

    Tudo aliás se pode resumir a uma pergunta: se de novo olharmos para trás, que “tendência” política, de que outro partido, produziu nos últimos quarenta anos, dois primeiros-ministros, um Presidente da Comissão Europeia e um muito provável Presidente da República? (Quanto a José Miguel Júdice, merece pelo menos o benefício da dúvida: onde teria chegado também ele caso tivesse continuado casado com a política em lugar de tão novo dela se ter divorciado? Longe, certamente.)

    Sim, em 1985 Marcelo não segue Cavaco como antes não estivera com Sá Carneiro, ou estivera muito pouco, limitando-se a um empenho claudicante à AD, fundada pelo mesmo Sá Carneiro. E eis o que nos reconduz a um dos traços mais inexplicáveis da sua personalidade política: uma (automática?) aversão às lideranças carismáticas do seu partido e aos seus “chefes”, bem ou mal amados, mas largamente plebiscitados: detestou-os a todos mesmo quando fingia que não. (Desentendeu-se com Sá Carneiro, a quem nunca foi fiel; recusou seguir Cavaco, apoiando-o, contrariado e nada convencido, na corrida para Belém, para logo o “desapoiar” publicamente; com Passos Coelho não foi diferente, foi apenas mais visível: dominicalmente, durante quatro anos, arrasou a sua governação, triturando-a, passo a passo, medida a medida.)

    Uns dizem ser uma questão de “ego”, outros apontam-lhe a necessidade de uma ocupação exclusiva dos palcos, fruto da sua insegurança. Pode ser, mas não explica tudo. E se o “caso” reclama análise mais profunda – e não será este o local para ela – impõe-se pelo menos o registo de uma singularidade: uma longa caminhada, feita sempre à margem dos grandes líderes do seu partido de estimação, quando não em confronto, directo ou enviesado, com todos eles.

    Líder do PSD: o que há a reter

    5. E no entanto… de toda essa “sucessão de acasos” que o próprio Marcelo classifica de “infelizes”, merece igualmente destaque e relevo a sua passagem pela liderança do PSD: primeiro, não foi de todo um acaso; segundo, nada ficou a dever à “infelicidade”. Talvez até pelo contrário, mas é cedo para se ser taxativo.

    Vale a pena recapitular: em Março de 1996, Marcelo Rebelo de Sousa ganhara a liderança no Congresso do PSD em Santa Maria da Feira, embora logo dez minutos depois fosse… “um líder a prazo”! A quem a metade do partido que estava sempre contra a outra metade quando se tratava de novas lideranças – fossem quais fossem –, vaticinava dois meses no comando das tropas. Justamente, não foi assim. Foram sim tempos difíceis a partir desse “lugar” ingrato que é a chefia da oposição, num país onde ela ainda carece de estatuto e de importância. Guterres – a anos luz do “pântano” de onde haveria de um dia fugir – “dialogava” com glória com o “povo”, o país enlevava-se.

    Marcelo optou por reagir hiperactivamente, desmultiplicando-se em actos, palavras, iniciativas. Algumas verdadeiramente notáveis, outras precipitadas, outras inoportunas, mas o que é relevante sublinhar é o que diz alguém muito próximo do candidato: nas “grandes alturas” e nos “momentos fulcrais” pode contar-se com ele. Isto é, Marcelo reage – reagirá, supõe-se… – com tino e sentido de Estado. Fosse como fosse, na oposição corria depressa. E teria certamente ido muito mais longe não fora aquela espécie de “recuo” que, nos momentos decisivos da corrida, lhe vetava a etapa seguinte. Sem estar no Parlamento, conseguia ir “ocupando” a oposição e incomodar o Executivo socialista, em vez de se reduzir a clamar que o Governo governava mal ou que as suas medidas eram erradas. Um inegável ponto a seu favor.

    Da sua passagem pelo PSD há sim que reter algumas coisas, desde logo a atitude – sempre concertada com António Guterres – face à entrada de Portugal no euro. Nunca lhe ocorrendo por isso tomadas de posições à margem daquilo que entendia ser a correcta caminhada do país na senda da moeda única, o que naturalmente pressupunha o pré-entendimento entre o primeiro-ministro e o líder da oposição. Ganhou uma revisão constitucional que o PS ia adiando (Guterres nunca foi particularmente amigo de decidir), mas o então líder do PSD soube adiantar-se e bateu-se bem pela sua dama.

    E há sobretudo que reter a influência da sua acção em dois momentos políticos cruciais, os referendos à regionalização e à despenalização do aborto: percebendo a importância de ambos na vida do país e na sociedade portuguesa, mobilizou-se e agiu, num e noutro. O segundo referendo interpelou ainda mais o católico activo e empenhado: Marcelo interveio, debateu, testemunhou. Presença assídua na campanha que antecedeu a consulta, acorreu, com generosidade e inspirados argumentos, a todas as chamadas. Esteve a sério e inteiro na batalha.

    Virá a propósito lembrar que ainda hoje se tem como certo que, sendo Marcelo desde há muito um íntimo amigo de António Guterres, o referendo sobre o aborto teria contado com a acção discreta e a bênção aliviada do então primeiro-ministro, católico convicto. Puro engano: António Guterres não só pretendeu – insistentemente – dissuadir o seu amigo de tal iniciativa, invocando até o desagrado do Cardeal Patriarca de Lisboa, D. José Policarpo, face a ela, como tranquilizava o seu interlocutor assegurando-lhe que ele, Guterres, “resolveria” a questão “na secretaria”. Ou seja, o líder do PS e primeiro-ministro António Guterres estava absolutamente certo de poder influenciar – a seu favor – a votação da sua bancada parlamentar quando lá aterrasse a lei. Ao contrário do líder do PSD que sobre isso não alimentava qualquer ilusão.

    Por estes mesmos dias – Outubro de 1996 –, num avião que voava do Porto para Lisboa, Marcelo encontra a deputada do CDS Maria José Nogueira Pinto que lhe manifesta a sua preocupação com o andar dos acontecimentos. Conversam os dois. Entendem-se: queriam o mesmo, apostavam na bondade do referendo. Afinam uma estratégia. Marcelo decide agir, ela incentiva-o, ele percebe que conta com um apoio de peso. Quando o referendo foi anunciado ao país, o PSD e o CDS estavam na primeira linha dessa batalha.

    Tiveram razão.

    Quando Marcelo de desencontra consigo mesmo

    6. Mas… e se fosse verdade – ou uma parte da verdade – isso dos “acasos” numa “sucessão infeliz”? É que sobram alguns tão misteriosos “ses” no seu caminho, que se alguém obtivesse a chave para eles, tínhamos a explicação deste personagem. E, com ela, talvez chegássemos ao âmago de uma mente desconcertante.

    Nunca esqueci esses “ses” que no fundo equivalem a dois “pesados” momentos da vida política de Rebelo de Sousa. O primeiro, é este: e se Marcelo tivesse de facto querido ganhar Lisboa contra Jorge Sampaio nas autárquicas de Lisboa, em Dezembro de 89, em vez do contrário? Em vez do que amplamente mostrou ao longo de uma campanha que em tudo destoou da sua inteligência e do seu talento, do mergulho no Tejo à jaula do leão, passando por se mascarar de “taxista”, mas sobretudo por um debate cujos erros pareciam intencionais de tão certeiros? Mistério.

    O momento mais marcante da campanha para Lisboa em 1989: o mergulho no Tejo, junto à Torre de Belém

    Lembro-me aliás que imediatamente após esse histórico confronto entre ele e Sampaio, na RTP, ceámos juntos numa casa do Estoril, com amigos comuns. Foi de cortar à faca. A perplexidade tolhia-nos o pensamento e o verbo: porque é que ele fizera tudo para perder com Jorge Sampaio? Mistério, sim, até hoje. (Insegurança? Medo face às dificuldades que subiam de grau à medida que se desenvolvia a campanha eleitoral? Falta de ânimo para a empreitada? Desejo inconsciente de fuga perante um futuro protagonismo com responsabilidades bem mais pesadas do que as suas até então?)

    Eis o segundo “se”: e se após Paulo Portas, em Março de 1999, ter irresponsavelmente traído a AD nº2 forjada por Marcelo num mar tempestuoso, ele tem ficado na liderança, transformando a deserção do ex-parceiro Portas numa vantagem política e enfrentando a súbita orfandade, com a sua gente?

    Dizendo-lhes “fico” em vez de “saio”?

    Não foi assim. Marcelo saiu, Barroso entrou. José Manuel Durão Barroso esperou o que foi o preciso, estava “lá”, ganhou.

    Marcelo saiu, refazendo afinal o gesto que há décadas o identifica: não resistir a metade de si mesmo. A algo que dentro de si decide primeiro, pesando mais que as suas invulgares qualidades políticas que tudo deveriam levar por diante, mas quase nunca levaram. Há inegavelmente algo que (o) determina mais que o resto, e chame-se a isso personalidade, modo de ser, idiossincrasia, forma “mentis”. Ou porventura carácter.

    O certo é que, caso tivesse ficado, caso tivesse persistido, teria sido primeiro-ministro, vocação primeira. Através da concretização desse apelo vocacional, seria conduzido ao seu “rendez-vous” com a História. Conforme ele teria gostado e, quem sabe…, acreditado.

    A promessa de um “destino” vinha do berço, fora enlevadamente adubada em casa pela família e depois regada por ele próprio: o futuro seria glorioso. Mais: a entrada em cena de “Abril de 1974” e a concretização da democracia civilista e pluripartidária facilitariam – e dourariam – esse encontro. A liderança da oposição no final da década de 90 deveria justamente ter sido o presente desse futuro radioso. Não foi.

    Marcelo desencontrou-se consigo mesmo.

    7. E com a História? Com a História não se sabe. Os invioláveis amanhãs da política não permitem dizer hoje perentoriamente “sim” ou perentoriamente “não”. Mas uma coisa é certa: mesmo se na pista onde corre agora a sua última prova política Marcelo se apresenta em enorme vantagem perante os outros corredores, o seu grande encontro consigo mesmo e com o país não teria sido este. Nem a morada política que talvez o espere num palácio cor-de-rosa, no início de 2016, era a sua primeira escolha e desengane-se quem isto pensa. Por isso, mesmo que o cimento da pista pareça sólido debaixo dos seus pés e que a meta presidencial esteja à vista, nem uma era a “sua” melhor pista, nem a outra a “sua” sonhada meta.

    O candidato da televisão

    8. E esse tão ágil, eloquente e veloz político “doublé” de comentador que um dia decidiu casar com a televisão? Celebrando charlas dominicais que embriagavam a plateia nacional, ávida da sua mortal acutilância? Há que parar aqui, como é óbvio. Mas não tanto porque tais charlas enchiam o país de espectadores fiéis, mas sobretudo porque o banhavam a ele num caudal de indisfarçável felicidade. Já houvera a rádio, é certo, uma espécie de semente nesta história da “comunicação”. Sim, recordemo-lo: foi na TSF onde Marcelo Rebelo de Sousa esteve entre 1993 e 1996 que ele ensaiou, treinou e aprimorou o seu electrizante cozer e descoser da vida política nacional. Nada do que televisivamente ocorreria anos depois pode ser explicado sem esse prévio “Exame” radiofónico. Com notas e tudo. O “professor” estava a caminho.

    Nascia um comunicador. O que lhe causava um deleite quase indizível: não só pelo puro gozo intelectual que lhe traziam tais performances, onde muito se divertia e estava no seu direito. Mas não, não era só isso: com o seu visceral horror à tensão e à violência, mesmo que apenas a da retórica, a sua maior felicidade provinha da possibilidade de fazer política sem dor. Sem suor e sem esforço.

    Na TVI, ele foi rei do pequeno écran, coisa que nunca o desconsolará. Até já diz ter "saudades do comentário televisivo"

    Como? Trocando esse imenso trabalho que é sempre preciso desenvolver para obter votos, por borbulhantes audiências televisivas. E trocando imprevisíveis escrutínios eleitorais por écrans inteiramente ocupados por si. Sem maçadas, outro luxo: Marcelo elege os seus territórios, demarca as suas fronteiras, traz o trabalho de casa feito, fala sozinho. Sem contraditório a embaciar-lhe o raciocínio, adversários a perturbá-lo, intermediários a toldar-lhe os argumentos. (E isso é de tal modo verdade – e já lá irei com mais detalhe –, que basta olhar para o modo como iniciou a actual campanha presidencial: longe. Longe de nós, longe da vida. Solitariamente, sem grandes contactos com gente de carne e osso. Sem quase se mexer. Aparentemente indo ter com o país, mas sem verdadeiramente se cruzar com ele.)

    Marcelo Rebelo de Sousa não tem o povo, tem plateias.

    Exagero meu? Talvez (mas não andarei longe da verdade).

    A verdade é que ele foi rei do pequeno écran, coisa que nunca o desconsolará. Basta lembrar o extraordinário desabafo que o país lhe ouviu, mal tinha largado os estúdios e os écrans da TVI: “Tenho saudades de fazer comentário televisivo”.

    Foi “a brincar”, disseram alguns. O pior é que não era a brincar.

    Se for eleito Presidente da República sê-lo-á pela televisão. Não tem experiência governativa, nem equipas, nem conselheiros, nem tropas, nem “amigos políticos”. Tem espectadores. Correu quase sempre sozinho. É um “solitário político”. Mas tem a televisão. E mesmo que não esteja escrito em lado nenhum que a popularidade se transfira automaticamente para a urna de voto, quando se tratar de votos “verdadeiros” e já não de “audiências”, a visibilidade alcançada ao longo de anos nos écrans piscará obviamente o olho ao voto. De momento o que há é um pássaro na mão – a popularidade mediática; e outro pássaro – os votos – ainda a voar. Num voo hesitante entre pousar sobre si no dia 24 de Janeiro ou apenas quinze dias depois.

    Se pousar.

    Quanta solidão num prato de salada

    9. Por falar em popularidade mediática. Ela é ponto tão fulcral para o nosso homem – é o ar que ele respira – e factor tão determinante no resto da sua vida, que ainda hoje me lembro do dia e da hora em que julguei ver o ocaso de tudo isso…Ou talvez mesmo o fim da sua aventura televisiva.

    Fui dar com ele sozinho em casa, terrivelmente engripado e comendo um jantar frugal (“janto todos os dias esta mesma salada”). O seu futuro televisivo mostrava-se demasiado incerto e ele sabia-o. A ideia afligia-o

    Foi uma vez, quando o visitei na sua casa de Cascais, já quase noite. Estava-se em plena crise da TVI que opusera o seu administrador, Miguel Pais do Amaral, a Rebelo de Sousa (na altura cunhados um do outro), tendo Marcelo sido afastado compulsivamente da estação onde há anos surgia dominicalmente, fazendo o pleno das audiências televisivas.

    Mas naquele cair de tarde, longe do écran, do sucesso, da influência, do poder – se havia coisa que ele perseguia e usava, era poder e influência –, Marcelo estava em pleno desamparo de si próprio. Sem chão debaixo dos pés.

    Fui dar com ele sozinho em casa, terrivelmente engripado e comendo um jantar frugal (“janto todos os dias esta mesma salada”). O seu futuro televisivo mostrava-se demasiado incerto e ele sabia-o. A ideia afligia-o.

    Muito pouco tempo antes, num encontro que por uma extraordinária coincidência temporal eu tivera com Francisco Balsemão no seu gabinete na estação de Carnaxide, ocorrera-me dizer-lhe: “E se fosse buscar Marcelo?” Mas o patrão da SIC cortara cerce: “Não”.

    Não me espantei: há feridas que se suspeita que Francisco Balsemão não queira ver saradas. Ponto final. O resto não era consigo, muito menos o destino televisivo de alguém que (irreversivelmente, pelos vistos) o decepcionara a este ponto.

    Fosse como fosse, impressionei-me naquela tarde e naquela acolhedora casa no “miolo” antigo de Cascais ao despedir-me de Marcelo: quanta solidão naquele prato de salada. Faltavam-lhe as plateias, faltava-lhe o eco, faltava-lhe o futuro, faltava-lhe o ar. Percebi que naquele preciso momento, mais que a carreira académica, os livros, ou a docência; mais que os pareceres que dava, os inúmeros convites que tinha, ou a Fundação da Casa de Bragança, a vida que para ele contava – e a única capaz de lhe permitir a última aventura política – era respirar politicamente através de um canal de televisão.

    Semanas depois as coisas compuseram-se, surgiu nova morada televisiva, Marcelo ressuscitou das cinzas do seu acabrunhamento. Mas eu nunca esquecerei aquele momento.

    Quem é Marcelo? De certa forma, Marcelo é acima de tudo um solitário

    10. E depois há a crónica pública embalada com zelo pelo próprio: não dorme, toma banhos de mar todos os dias, tem tempo para tudo, trabalha insanamente, é hipocondríaco, é curioso, dá-se com muita gente, é um “brincalhão”. Podia escolher outros exemplos, não valerá a pena. Chegam estes. Marcelo não é nada curioso: tem alguns interesses – o que não é a mesma coisa – e persegue-os; não entra (obviamente) no mar todos os dias; dorme – e bem – oferecendo às manhãs mais vazias de compromissos o sono roubado por actividade, trabalho e (inúmeros) telefonemas, madrugadas dentro. Os solitários costumam dar-se bem com a noite, Marcelo é acima de tudo um solitário. Sim, é verdade, é hipocondríaco, metendo diariamente ao bolso dezenas de coloridas cápsulas que vai engolindo com método ao longo do dia. Sim, coleciona livros, é alguém que lê mas nunca aqueles livros de que falava na televisão com pressa vertiginosa (ou deveria dizer desrespeitosa?); sim, vê muita gente mas a sua imensa capacidade de se maçar – disfarça mal – é a melhor defesa murada contra o ruído da curiosidade alheia pousada sobre si. Sim, alguma imaturidade emocional convida-o a ser “brincalhão” muitas vezes. Sucede porém que a leviandade e o espalhafato (os seus), se podem tornar embaraçosos nalgumas dessas vezes.

    Ficar a meio. Nas respostas

    11. Falemos então agora no que aí está. Uma campanha eleitoral que se concluirá dentro de dias e da qual o país se vai apercebendo com mais preguiça que entusiasmo e com mais desinteresse que curiosidade. Só isso explica que a ninguém ou quase ninguém tenha ocorrido perguntar ao candidato – “professor” – Marcelo, porque se candidata ele? Para lá do que sumariamente sabemos serem os seus nobres argumentos (desejo de servir o país, retribuindo-lhe o que “Portugal fez por si”), como pensa o candidato “rechear” tais motivações e como pretende norteá-las? Que áreas julga mais susceptíveis de exigirem um cuidado ou uma atenção suas? Que contrato nos propõe?

    Em suma: porque vale a pena votar em si e não em outros?

    Não tem havido respostas, apenas vislumbres, ou partes de respostas. Algumas quase inúteis como a de sabermos – por exemplo – que Marcelo Rebelo de Sousa, se for eleito, “irá convocar o Conselho de Estado quatro vezes por ano”… e eis uma certamente precipitada aritmética: e se houver fundamento para serem seis em vez de quatro, ou argumento para serem só três?

    Diz-se que quer “inovar”. O quê, também não se percebeu bem: o modelo político, os usos e os costumes da “casa”, a composição da Casa Civil? As rotinas do cargo, substituindo-as por “novidades”? A relação presidencial com os portugueses?

    Se não me engano, o que se lhe pede são uma ou duas boas ideias, um desígnio, alguns compromissos. Virão?

    A “falta de poderes” do Presidente da República, sempre evocada nestas alturas, é um pau de dois bicos. Há sempre “poderes”. O que pode não haver é a vontade de os querer – e saber – utilizar. Ficando a meio. Como nas respostas.

    Uma relação enraizada e antiga com Deus

    12. E last but not least, há o seu lado mais privado – que intencionalmente deixei para o fim – e desse lado eu gosto. Falo dele com a autoridade da testemunha que há décadas conhece e acompanha o personagem – mesmo que muito dele tenha discordado.

    O que agora abordarei é mesmo a outra face desta controversa moeda chamada Marcelo Rebelo de Sousa e é preciso saber ler o que lá está. E o que está, em grande plano, nesse avesso, é um pai atento, pedagogo, responsável e extremoso, absorvido ontem pelos dois filhos, como hoje pelos quatro netos; está o imenso amor do professor à Universidade, o seu culto pelo ensino, a sua devoção ao aluno; está o ser humano generoso, sempre pronto a entrar em acção, promovendo ajudas financeiras discretas, dando atenção a desvalidos, fazendo visitas – anónimas e fora de horas – a doentes terminais que ele não conhece mas o “conhecem” a ele; está o amigo que mima os seus próximos.

    E está sobretudo Deus. Uma relação enraizada e antiga. Talvez porque ela lhe ofereça um sentido para as coisas; talvez porque necessite de balizar a inconstância da sua relação com a vida com a constância da sua relação com o transcendente. Talvez porque ela seja o seu pulmão mais limpo. Talvez como um caminho de expiação que ele conta – e espera – que o conduza à salvação.

    Talvez muito simplesmente por uma pura questão de Fé. Seja como for há um Marcelo que se põe em sentido quando se trata de Deus e serve com Fé e generosidade sóbria uma Igreja onde sempre militou. Evitando exibir-se e trocando um Deus de boca por um testemunho sem preocupações de audiência.

    Na conversa sobre Deus com Marcelo, a Capela do Rato ia vindo abaixo, nunca se lá viu tanta gente

    No dia 4 Novembro do ano passado, uma quarta feira, esteve presente num ciclo que produzi na Capela do Rato, durante doze semanas, chamado Conversas com Deus e a cujo convite para participar ele logo acedeu. A plateia recompensou-lhe aliás a disponibilidade: a Capela ia vindo abaixo, nunca se lá viu tanta gente. Havia pessoas de pé, no chão, no coro; e gente até no passeio da rua, espreitando pela janela aberta e tentando seguir aquele vertiginoso monólogo do “professor”. Sim, Marcelo não tem confiança no diálogo – é inseguro demais para isso. Teme perguntas que não escolheu, alusões que não previu, receia ficar demasiado exposto, o controle voa-lhe das mãos. O monólogo defende-o: com ele ergue um muro à sua roda. Como nessa noite no Rato, onde ele voou ainda mais depressa sobre as palavras.

    Quando o convidei, em Setembro, não era ainda candidato à Presidência da República. No início de Novembro, já o era oficialmente mas manteve a sessão, o que nos reconduz à outra face da controversa moeda: Marcelo leva Deus a sério. Como tal, candidato ou não, aceitou um desafio que tratava de Deus e cumpriu-o pontualmente.

    13. Porque ele sabe que muitos são os chamados e poucos os escolhidos?

    https://observador.pt/especiais/marcelo-afinal-homem/

    Observador.

    quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

    Uma garagem não é uma casa.

    O jornalismo em Portugal e constrangedor! Depois de ouvir António Costa e as explicações da protecção civil, questionei-me se teria ouvido bem, e reconfirmei que ouvi, mas os jornaleiros das subsidiadas, não. São incompetentes, “vendidos” apoiam politicamente o PS, ou…. Confundir uma casa com uma garagem!!!

    Há um mínimo que devemos exigir: não deixar que o primeiro-ministro confunda uma garagem com uma casa, nem uma sociedade encalhada com um Portugal pujante.

    Já todos viram as imagens, certo? António Costa enfastiado numa conferência de imprensa, a ter de responder a perguntas chatas sobre inundações, sobre Carlos Moedas e a falta de telefonemas solidários – e depois um comentário infeliz à saída, apanhado pelas câmaras: “Posso perguntar-lhe [a Moedas] porque é que ele não me contactou a mim quando eu tive a minha casa inundada.”

    Com o seu imenso nariz para distinguir aquilo que é foleiro mas pode ser dito (por exemplo, ofender partidos com palavras de estrebaria) daquilo que é foleiro mas não pode ser dito (por exemplo, manifestar em público o desejo ostensivo de um tratamento de privilégio), António Costa cheirou o problema e apressou-se a pedir desculpas sobre o seu “aparte irritado”: foi uma “expressão infeliz”, disse ele, que lhe saiu porque estava com “sono” após 14 horas de reunião do Conselho Europeu. Ou seja, uma infelicidade verbal causada pelo excesso de trabalho ao serviço da nação portuguesa. Quem nunca?

    Só que, infelizmente, tratou-se de bastante mais do que isso – foi uma “expressão infeliz”, sim, mas foi também uma mentira descarada. Ou, se não quisermos ser tão brutos, uma escorregadela aparatosa no pavimento da verdade. Eis o facto indesmentível: a casa de António Costa nunca esteve inundada. A TSF foi lá no dia seguinte e encontrou a D. Carminda. Perguntou-lhe: a água chegou mesmo a casa do vizinho António Costa? Resposta da D. Carminda: “Não. Mora lá em cima, no terceiro andar. Foi só a garagem.”

    De seguida, a TSF foi perguntar o mesmo ao presidente da Junta de Freguesia de Benfica, que por acaso até é do PS. Ele confirmou a versão da D. Carminda: “O edifício onde habita o primeiro-ministro teve uma inundação muito grave na garagem. Alguns carros ficaram submersos.” Ah, que chatice. Então um desses carros pertencia a António Costa e foi preciso chamar o reboque? “Não houve nenhuma viatura do senhor primeiro-ministro [envolvida]”, esclareceu Ricardo Marques. “Isso é um mito.”

    Donde, nem a casa se inundou, nem o carro ficou inundado, pelo que o mais importante naquela conferência de imprensa não foi a irritação ensonada de António Costa, mas o deslizamento da verdade, tanto mais significativo quanto ele é exemplar de uma certa maneira de proceder politicamente. O primeiro-ministro passa o tempo todo a manipular a linguagem; essa irresistível tentação que o leva a transformar, se necessário, uma unha encravada numa perna amputada – para poder vitimizar-se –, ou, em movimento inverso, a converter a chuva que cai do céu na solução que ele engendrou para livrar o país da seca prolongada – para poder glorificar-se.

    Basta pegar na já clássica entrevista à revista Visão para encontrarmos exemplos de como António Costa empola extraordinariamente indicadores cujo mérito nunca poderia ser só seu, como a diminuição do abandono escolar ou o crescimento das exportações (e assim transforma a simples garagem em casa apalaçada), ao mesmo tempo que desvaloriza os “casos e casinhos”, a “bolha mediática” ou os gravíssimos problemas estruturais que se mostra incapaz de resolver, como no caso do SNS (e aí, ao palácio sem telhado chama pequena garagem com humidade no tecto).

    Estamos há sete anos como na canção de Quim Barreiros, a ver António Costa tirar e meter o carro à hora que ele quer. Mas há um mínimo que devemos exigir: não deixar que o primeiro-ministro confunda uma garagem com uma casa, nem uma sociedade encalhada com um Portugal pujante.

    João Miguel Tavares

    22 de Dezembro de 2022,

    Publico



    segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

    A história de um herói socialista que foi traído pelo seu próprio partido

    A história de um herói socialista que foi traído pelo seu próprio partido1.

    Morreu Maximino Serra que eu não conheci por culpa própria.

    Um dia o Edmundo Pedro, que tive o privilégio de ser meu amigo, falou-me da hipótese de nos juntarmos, queria que eu ouvisse da sua boca histórias que me podiam servir para a vida, histórias de resistência, de coragem, de gente que arriscou a vida em nome do país, da liberdade e contra a opressão do Estado Novo.

    Histórias como a dele, Edmundo Pedro - que foi preso pela primeira vez aos 14 anos e aos 16 já estava no Tarrafal onde aguentou mais do que qualquer outro na "frigideira" onde os presos sofriam e morriam desidratados.

    2.

    Maximino Serra, irmão do célebre Manuel Serra que disputou com Mário Soares a liderança do PS no I Congresso, morreu a semana passada.

    Poucos sabiam da sua história.

    É provável que também não saiba que este homem era o último verdadeiro "antifascista" do PS.

    Um tipo de antes quebrar que torcer.

    Um tipo que esteve no Golpe de Beja, na passagem do ano de 1961 para 62.

    Um tipo que já participara na Revolta da Sé, mesmo antes do golpe falhado em Beja. Isto para lá da tentativa de desviar um avião para fugir para Argel.

    Era um profissional do combate, detestava falinhas mansas, estava disposto a tudo.

    3.

    Maximino entrou para o PS ainda em 1973, poucas semanas após a fundação na Alemanha.

    Ele e o irmão entraram após a dissolução do seu Movimento Socialista Popular.

    Para ele, tudo era mesmo tudo.

    O combate por um país livre merecia bem o sacrifício dos seus melhores anos.

    O melhor da sua vida.

    Maximino tornou-se funcionário do PS.

    E ao contrário do seu irmão decidiu ficar socialista. Tornou-se um militante de base que trabalhou discretamente nos lugares para onde foi indo.

    Setúbal.

    Leiria.

    Santarém.

    4.

    Adorava falar com os mais novos.

    De participar em tertúlias.

    Foi apoiando o PS e os seus vários líderes. Nas campanhas eleitorais fazia por estar, o abraço ao Maximino era prato principal de algumas arruadas eleitorais nas cidades em que foi morando.

    E para seu espanto e tristeza, a comissão nacional de jurisdição do PS expulsou-o do partido depois das últimas eleições autárquicas.

    E sabes qual foi o motivo?

    Por ter ocupado o último lugar de suplente numa lista de independentes por Alcobaça. Fê-lo segundo disse por amizade com o candidato.

    Foi esse o motivo para ser expulso do PS por uma comissão presidida por Telma Correia de quem eu, confesso a minha ignorância, nunca ouvira falar.

    Repito: uma comissão do PS expulsou Maximino por ter aceitado pertencer como último suplente de uma lista por Alcobaça.

    O homem tinha 87 anos.

    Maximino que desviou aviões.

    Que deu o corpo às balas em Beja e na Sé.

    Que foi militante do PS desde 1973 e cujo irmão disputou com Soares a liderança no I Congresso.

    Um tipo que decidiu ficar.

    Que esteve sempre com o partido.

    Que era, depois da morte de Edmundo, o único militante vivo com provas de bravura física contra o fascismo.

    Este homem foi expulso por uma merda daquelas.

    Como é possível que tenha morrido sem que isso tenha sido reparado?

    5.

    António Costa pode e deve reparar o equívoco.

    Pode e deve perceber de que forma Maximino poderá ser recordado, homenageado, reintegrado como membro do PS, como herói de um tempo que ajudou a moldar uma identidade.

    Os partidos não podem ficar sem memória.

    Não podem matá-la desta forma tão ignorante, tão mesquinha.

    António Costa que tenha a palavra.

    Maximino nas únicas declarações que fez confessou que António Costa não fazia a mais pequena ideia, não podia saber.

    Quero acreditar nisso, caro Maximino.

    Acredito mesmo que não soubesse.

    Mas vamos lá a ver, se não sabia que alguma coisa agora se faça.

    TSF

    sábado, 17 de dezembro de 2022

    30 Anos PER. Obrigado, Cavaco Silva.

    Hoje, se muitos dos mais desfavorecidos ainda têm a possibilidade de viver em Lisboa, Oeiras ou Cascais, muito se deve a este extraordinário legado deixado por Cavaco Silva na liderança do XII Governo

    16 dez. 2022

    1. PER | UM MARCO NO ESTADO SOCIAL PORTUGUÊS

    Em 2023, mais precisamente a 7 de Maio, completam-se 30 anos da publicação do Decreto-Lei 163/93 – diploma que deu origem ao Programa Especial de Realojamento, vulgo PER. O PER, com a missão de erradicar “bairros de barracas” em 28 concelhos das áreas metropolitanas de Lisboa e Porto foi o maior programa de promoção de habitação pública do Portugal democrático.

    2. PORTUGAL ANTES DO PER

    Segundo o INE, em 1981 existiam em Portugal 46 391 alojamentos familiares não clássicos, ou seja, habitações que não reuniam todas as condições de habitabilidade e que eram vulgarmente conhecidas como “barracas”. Estimava-se em mais de 100 000 o número total de pessoas a viver nestas circunstâncias.

    3. LISBOA ANTES DO PER

    Para quem tem memória dos finais da década de 80 e princípios da década de 90, os “bairros de barracas” eram verdadeiras chagas sociais em diversos concelhos das áreas metropolitanas de Lisboa e Porto. Na AML estamos a falar de bairros como o Casal Ventoso ou Musgueira em Lisboa, Pedreira dos Húngaros e Alto de Santo Catarina em Oeiras, ou as Marianas, no concelho de Cascais.

    Bairros de habitações precárias, onde muitas famílias viviam privadas de dignidade pessoal e social, marcados pela má qualidade de construção, ausência de saneamento básico, de rede de água potável ou de rede eléctrica.

    A pobreza, a exclusão, a segregação e a estigmatização destes bairros era evidente, assim como as graves carências higiénico-sanitárias que potenciavam a disseminação de doenças, surtos e epidemias. Estes bairros, acrescentavam à exclusão um estigma social e espacial intenso, sendo amiúde associados ao insucesso escolar, analfabetismo, alcoolismo, crime, marginalidade, toxicodependência, tráfico e consumo de droga. Urgia por cobro a esta situação.

    4. O PER

    “A eliminação dos bairros de barracas, promovendo o realojamento das famílias carecidas, é, neste contexto, um imperativo ético a prosseguir e um objectivo supremo a atingir.” Programa do XII Governo Constitucional.

    Cientes desta realidade, a 18 de Março de 1993, em sede de reunião de Conselho de Ministros, o XII Governo Constitucional, liderado por Aníbal Cavaco Silva, aprovou o diploma que tinha como missão acabar com os “bairros de barracas” nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, o PER.

    Com a execução do programa foi possível a erradicação de 986 núcleos de barracas, a construção de 34 759 fogos, 290 bairros de realojamento, o realojamento de 32 333 agregados familiares, num total de 132 181 pessoas. Todo o programa foi executado sem recurso a fundos europeus.  O actual governo, com recurso ao PRR, prevê a construção de perto de 26 mil fogos. Longe dos 34 759 de Cavaco Silva…

    5. PER EM LISBOA

    O PER foi peça fundamental na solução do problema social e urbano que condicionava a qualidade de vida e o bem-estar de milhares lisboetas, tendo possibilitado a demolição de cerca de uma centena de núcleos de habitações precárias. Em 1993, no âmbito do diagnóstico concretizado pelos serviços municipais de Lisboa, com vista à adesão ao PER, foram identificados 97 núcleos de barracas onde se encontravam 10 030 alojamentos precários a que correspondiam 11 129 agregados a realojar, num total de 37 299 pessoas.

    No total, em cerca de 10 anos, foram construídas 9 135 habitações municipais ao abrigo do PER, em 40 conjuntos de habitação pública, dando novos horizontes a dezenas de milhares de famílias, num investimento superior a 600 milhões de euros.

    6. LISBOA NÃO SERIA A CIDADE QUE É HOJE SEM O PER

    Por outro lado, foi uma autêntica revolução urbanística na cidade.  O Casal Ventoso – outrora palco da miséria humana – foi completamente extinto. Onde durante décadas existiu o Bairro do Chinês temos hoje um novo empreendimento habitacional. A antiga Curraleira deu lugar a novas avenidas essenciais para a adequada mobilidade em Lisboa. A antiga Musgueira deu lugar a um dos maiores empreendimentos habitacionais da cidade, a Alta de Lisboa.

    Em muitos dos novos bairros PER foram criadas esquadras, centros para a juventude e idosos, centros infantis, escolas, centros de saúde, sedes para associações, espaços comerciais e milhares de lugares de estacionamento em vários empreendimentos. A execução do PER foi acima de tudo a humanização e modernização da cidade, mas também a sua reconciliação com aqueles que durante décadas se viram privados de habitação condigna.

    7. DA PATERNALIDADE DO PER

    Muito se tem falado sobre a paternalidade do PER. Se por influência da presidência aberta levada a cabo pelo então Presidente da República Mário Soares, ou, se por força de alguns modelos de realojamento já existentes. Nem uma coisa, nem outra. Pois em política estamos habituados a muitas promessas e poucas execuções.

    Apenas com a visão, sensibilidade social e enorme vontade política do XII Governo Constitucional foi possível executar o programa que João Soares, presidente da Câmara Municipal de Lisboa entre 1995 e 2002 classificou como um “um feito sem precedentes na história de Lisboa, se exceptuarmos o episódio da reconstrução pombalina da cidade da cidade, em condições bem mais trágicas”.

    Sem desconsideração pelos presidentes de Câmara que aderiram ao PER, o mérito é do XII Governo Constitucional, na pessoa de Aníbal Cavaco Silva: na visão, coragem e ambição na eliminação de bairros de barracas, e devolução da dignidade de vida às centenas de milhar de realojados.

    Neste contexto, não deixa de ser curioso verificar que os concelhos com menor taxa de execução do PER são aqueles que, na altura liderados pelo Partido Comunista, que por mera questão ideológica, se advogava a responsabilidade exclusiva da Administração Central na eliminação dos bairros de barracas e imperativo constitucional da atribuição de habitação digna às pessoas.   Não é por acaso que 30 anos volvidos da promulgação do PER são estes os concelhos em que persistem bairros de habitações precárias, como Cova da Moura na Amadora, Segundo Torrão em Almada, Bairro do Talude Militar em Loures, ou Santa Marta de Corroios no Seixal, apenas como exemplos. A ideologia comunista apenas manteve na pobreza quem teve a infelicidade de nascer nesses territórios.

    8. CAVACO SILVA, EIS O HOMEM!

    Considerando o acesso à habitação como condição essencial no combate à pobreza, não deixa de ser injusta o verificar da pouca popularidade que Cavaco Silva goza, justamente junto daqueles que mais beneficiou. Cavaco, no âmbito do PER e outras políticas públicas de habitação, foi dos políticos que mais contribuiu para a melhoria da qualidade de vida de muitos portugueses.

    Aos pobres, Cavaco Silva deu casa. Guterres, Primeiro-ministro que lhe sucedeu, através do RSI, deu o dinheiro. O primeiro deu a possibilidade de se libertarem da pobreza, o segundo um conforto para ali se perpetuarem. Cavaco fez mais pelos pobres do que nenhum outro político no Portugal Democrático, em matéria de políticas de habitação e combate à pobreza.

    E não foi apenas pelos mais desfavorecidos, foi também pelos 28 concelhos envolvidos no PER, fomentando a harmonização urbanística dos territórios e sua modernização, com a eliminação dos bairros de barracas.

    Num momento em que muito se fala da falta de gratidão por quem honra o nome de Portugal seria justo a homenagem do país ao Professor Doutor Aníbal Cavaco Silva sobre este legado ímpar na história da democracia portuguesa, no cumprimento de um imperativo constitucional – o direito à habitação. Hoje, se muitos dos mais desfavorecidos, ainda têm a possibilidade de viver em concelhos como Lisboa, Oeiras ou Cascais, muito se deve a este extraordinário legado deixado por Cavaco Silva na liderança do XII Governo Constitucional.

    E sendo hoje o problema do acesso à habitação o maior problema social e sociológico do país é também lamentável que o PSD, maior partido da oposição e ligado ao PER, não saiba erguer este legado em prol dos portugueses.

    Obrigado, Cavaco Silva!

    José Luís Tavares

    Licenciado em Sociologia e Planeamento