O balanço de 2022 mostra um ano em que, por convicção política e chancela judicial, se consagra o corolário da corrupção legal: dinheiro é cidadania.
Nem um Natal se pode ter descansado. O caso da secretária de Estado da Caça ao Tesouro, que nos entreteve da véspera de Natal até ontem à noite, será seguramente arquivado pelo primeiro-ministro como mais um "caso e casinho" da "propaganda da direita". Mesmo que revele a roda livre que vai na TAP, onde os administradores usam os 3200 milhões que os contribuintes lhes puseram nas mãos para se auto-atribuírem carros de função, bónus e paraquedas dourados. Mesmo que revele a total incapacidade de o Governo escrutinar os negócios, portas giratórias, conflitos de interesses e riscos reputacionais dos seus membros.
O "caso e casinho" Miguel Alves foi há menos de dois meses mas, na remodelação que o substituiu, não ocorreu a António Costa evitar a mesma asneira de escolher secretários de Estado sem verificar percursos, currículos e relações. Muito menos lhe ocorre esclarecer o que andam os seus ministros a fazer, a passar culpas no meio desta bagunça. O Presidente da República, pelo seu lado, acelera do "não se passa nada" ao "investigue-se tudo" com a rapidez do costume e, no fim, sacrificado o bode expiatório, tudo fica por explicar e mais ainda por corrigir. Visto a partir das suas instituições, Portugal desistiu.
Como balanço do ano, é doloroso. Lá fora, estamos em guerra, mas as sanções à Rússia continuam embrulhadas em doses variáveis de hipocrisia e selectividade. Nisto, Portugal é mau exemplo: não só figurões russos continuam a fazer de Lisboa uma "Lisbongrad", capital amigável ao dinheiro da oligarquia, como o inquérito anunciado em janeiro à compra de nacionalidade portuguesa por Abramovich e outros bandidos de gabarito continua amigavelmente parado numa qualquer gaveta do Estado.
A grande corrupção, sistémica, tornou-se uma função do poder. Institucionalizou-se e é hoje, já não uma violação da lei, mas uma nova lei – ou, para usar a terminologia da época, o "novo normal". E não, o problema não é só português. No final de novembro, o Tribunal de Justiça da União Europeia emitiu um acórdão, pouco notado por cá, que em termos práticos ilegaliza o combate à corrupção em nome do direito à privacidade dos corruptos.
A decisão declarou que a Diretiva Europeia que abriu ao público os registos de beneficiários efetivos na UE viola o direito dos cidadãos à privacidade. A coisa é um pouco técnica, mas é importante. Por lei europeia, cada país da UE tem um registo onde estão identificadas as pessoas físicas que controlam cada empresa ou organização a operar naquele país. É uma forma de saber quem verdadeiramente está por trás de estruturas geridas, muitas vezes, por administradores-delegados, testas de ferro ou que são detidas por outras entidades, de países diferentes, até se perder o rasto de quem na realidade beneficia daqueles ativos.
Em 2018, uma diretiva europeia obrigou a que esses registos fossem abertos ao público e consultáveis online por qualquer cidadão. Voltando ao (mau) exemplo de Miguel Alves, foi esse acesso livre aos registos europeus que permitiu, por exemplo, a investigação jornalística que encontrou as empresas do sócio privado da Câmara de Caminha no famoso centro de exposições transfronteiriço, revelando que o propagado império empresarial com ramificações, por exemplo, no Luxemburgo, era uma enorme patranha.
Hoje, essa investigação seria impossível. Foram precisamente os tribunais luxemburgueses a suscitar a intervenção do Tribunal de Justiça da UE que, por sua vez, essencialmente mandou fechar o acesso público aos registos de beneficiários efetivos. O queixoso que deu origem ao processo, é (obviamente não por acaso) um homem de negócios muito ativo em paraísos fiscais. Vários países da UE fecharam o acesso aos seus registos logo que saiu o acórdão. Encontrar a verdade sobre o cambalacho de Caminha esbarraria hoje num beco sem saída.
É verdade que o tribunal vincou que jornalistas ou organizações da sociedade civil têm um interesse legítimo nestes registos e que, portanto, podem continuar a aceder-lhes. O problema é que, se o registo não está aberto e à distância de um clique, ativistas e jornalistas terão de peticionar cada país para que lhes seja dada uma credencial de acesso; e ficar à espera de resposta, segundo as regras ou critérios que cada Estado inventar. Uma ferramenta de transparência transformou-se numa corrida de obstáculos e num pesadelo burocrático que assegura a sua inoperância.
A decisão é um boicote frontal ao combate à corrupção, ao crime organizado e à lavagem de dinheiro. Diz o tribunal que as pessoas (incluindo salta-pocinhas de offshores) têm direito à sua privacidade. Balelas. Uma empresa, uma ONG, uma organização, é uma ferramenta através da qual cidadãos (investidores, acionistas, associados) participam na vida pública – política, social, cultural ou económica. A vida pública é isso mesmo: pública – a pista está no nome. A única razão admissível para reservar a identidade de alguém ligado a uma entidade é se essa identificação puser a pessoa em risco – de rapto, por exemplo, ou de perseguição por grupos criminosos ou regimes ditatoriais. Essa exceção, sucede, já está prevista na lei europeia.
O verdadeiro racional é outro: é estender às empresas os mesmos direitos individuais dos cidadãos. É equivaler dinheiro a cidadania. "Corporações também são gente", exclamou Mitt Romney, que se candidatou contra Barack Obama em 2012, celebrando a decisão do Supremo Tribunal dos EUA que concedeu às empresas o direito a financiar sem restrições políticos e campanhas eleitorais, em nome do direito à "liberdade de expressão" dessas empresas – a legalização da corrupção que põe a política americana no bolso das corporações.
É neste ponto que estamos, em que cidadãos cada vez mais espremidos, em Portugal e no mundo, se veem agora obrigados a disputar os seus direitos de cidadania com corporações. Não é um bom estado de coisas.
Há esperança? Há. Não a esperança vácua e ingénua de que "isto há de compor-se", mas a esperança da insubmissão. Este Natal, a Câmara Municipal de Miranda do Douro, impulsionada pelo Movimento Cívico da Terra de Miranda, anunciou que entrará com uma ação judicial contra a Autoridade Tributária pela cobrança de IMI nas barragens do Douro Internacional – as mesmas cuja concessão foi estendida por favor de Manuel Pinho e depois vendidas pela EDP à Engie, num negócio que (também ele) não pagou impostos.
Quando as corporações são gente, são gente poderosa. Na Terra de Miranda, um povo envelhecido e empobrecido, cuja riqueza natural é abocanhada há décadas pelo Estado e pelas empresas captoras do Estado, está a mobilizar-se para fazer justiça. A esse povo, por tudo o que representa, desejo Bom Ano.
João Paulo Batalha
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