O escândalo de corrupção no Parlamento Europeu é gravíssimo. Com uma grande diferença em relação ao que temos por cá: em Bruxelas não se varre a sujeira para debaixo do tapete.
Dificilmente podia ser mais grave o caso de corrupção que abalou o Parlamento Europeu. Estamos a falar de uma deputada – a vice-presidente do Parlamento Eva Kaili –acusada de vender o cargo, colocando o seu poder de influência, as suas posições políticas e a sua capacidade de determinar a agenda em Bruxelas ao serviço de quem lhe pagava, em malas de dinheiro vivo. Tudo embrulhado com ONG de fachada que serviam para mascarar a agenda corrupta e criar relações de simpatia com gente influente nos círculos europeus.
Mais grave ainda é a identidade do alegado corruptor: um Estado estrangeiro, o Qatar, que não se terá inibido de infiltrar uma das principais instituições da União Europeia, num ataque frontal à soberania dos Estados-membros. Isto depois do escândalo de corrupção na FIFA para ganharem a organização do Mundial de 2022. A ofensiva de charme com que o emirado quis comprar uma posição respeitável no mundo saiu-lhe definitivamente mal. Antes de tudo isto, ninguém sabia o que era o Qatar; agora todos sabem; e sabem que não é flor que se cheire. Tanto dinheiro gasto para descobrirem que não se compra a respeitabilidade.
À escala portuguesa, onde não nos faltam casos sob investigação, a única coisa que me ocorre de dimensão comparável é a Operação Marquês, em que o Ex-primeiro-ministro José Sócrates é acusado de ter posto o cargo à venda, conduzindo as políticas públicas do país em favor de quem lhe assegurava o enriquecimento pessoal. Escusamos de comparar a eficiência com que as autoridades portuguesas e belgas investigaram cada um dos casos, ou a celeridade com que os tribunais agora farão o julgamento – seria demasiado deprimente para o nosso lado.
O que interessa comparar, no entanto, é a resposta das instituições envolvidas nos casos de corrupção, cá e lá. No Parlamento Europeu, o grupo parlamentar socialista, de que fazia parte Eva Kaili, expulsou-a imediatamente da bancada (o PASOK grego também a destituiu do partido) e anunciou até que se constituirá como "parte lesada" no processo judicial, para que possa pedir reparação do mal que a deputada causou à sua família política. Por cá, no caso Sócrates e em tantos outros, moita-carrasco. Os partidos agarram-se ao chavão "à Justiça o que é da Justiça", cruzam os dedos e não fazem nada.
Foi aliás essa a reacção do ministro dos Negócios Estrangeiros: confrontado com o caso, à entrada de um Conselho de Ministros da UE em Bruxelas, João Gomes Cravinho mostrou-se preocupado, mas não foi além de apelar a que tudo se investigue. Questionado sobre a reforma dos mecanismos de integridade nas instituições europeias – nomeadamente, a criação de um organismo independente de ética há muito exigido por organizações não-governamentais e finalmente prometido pela Comissão Europeia, em resposta ao escândalo – o ministro não se mostrou muito para aí virado. Os tribunais que resolvam.
Não admira: na mesma ocasião, Gomes Cravinho foi questionado sobre a bizarra decisão de, em 2021, quando era ministro da Defesa, ter nomeado para a presidência da empresa ETI - Empordef Tecnologias de Informação o Ex-director-geral de Recursos da Defesa Alberto Coelho, já então sob suspeita de corrupção e agora apanhado na Operação Tempestade Perfeita, sobre o negócio pornográfico das obras no Hospital Militar de Belém, que derraparam dos 750 mil para os 3,2 milhões de euros. Sobre a sua responsabilidade política directa e objectiva na promoção de um homem que já estava sob suspeita, desviou para canto com a sonsice habitual nestes casos, despachando que "este é o momento da justiça e acho que não nos devemos envolver com comentário político sobre um procedimento judicial".
É essa a grande diferença entre Belém e Bruxelas. Em Belém, quando alguém rouba nas obras de um hospital especial para a Covid, cai um silêncio sepulcral, quase religioso, sobre as responsabilidades políticas: os portugueses têm de engolir a ladainha "à Justiça o que é da Justiça" e assistir à inércia institucionalizada de quem tinha a obrigação de pôr ordem na casa. Em Bruxelas, apesar de tudo, as instituições reagem: "o Parlamento Europeu está sob ataque, a democracia europeia está sob ataque", disse a presidente do Parlamento, Roberta Metsola, no plenário da instituição em Estrasburgo. "Este é um teste aos nossos valores e aos nossos sistemas. Não haverá impunidade, não varreremos nada para debaixo do tapete", acrescentou, ao anunciar uma reforma das normas e controlos internos sobre a actividade dos deputados e os riscos de corrupção na instituição.
Em contraste, o que vimos do presidente do Parlamento português, Augusto Santos Silva, foi o elogio ao Qatar pelo apoio que deram à retirada de afegãos na fuga aos talibãs – precisamente um dos argumentos que Eva Kaili desfiava em defesa do emirado. A diferença é que a eurodeputada grega impingia a propaganda oficial a troco de malas de dinheiro, enquanto Augusto Santos Silva o fez apenas para ter bilhetes para a bola.
Por cá, a mesma família socialista que se constituiu assistente no processo belga contra Eva Kaili manteve-se muda e surda sobre o caso Sócrates, e tantos outros. O silêncio, o encobrimento e a fuga à responsabilidade mantêm-se a regra em resposta a casos de corrupção. O sistema judicial é o álibi atrás do qual se escondem os que têm a obrigação de prevenir a corrupção e fortalecer as instituições democráticas e quem quiser reformas internas, responsabilização política e mecanismos de integridade é populista. Quando a democracia soçobrar sob o peso desta brutal inércia, os que a fizeram cair dirão que a culpa é de quem não alinhou na lei do silêncio e violou o código de omertà da República.
João Paulo Batalha
Sábado
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