quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

Os corruptos vão à escola

Gerou-se finalmente um ponto de consenso nacional no combate à corrupção: ir às escolas chatear criancinhas. Uma bela lição de hipocrisia paternalista.

Virou moda: no último dia 9 de Dezembro, o Dia Internacional Contra a Corrupção, a ministra da Justiça foi a uma escola em Elvas, acompanhada das altas autoridades na matéria, ensinar aos jovens que é feio roubar. Eles se calhar não sabiam; ficaram a saber. A própria Estratégia Nacional Anticorrupção tem como prioridade central a educação contra a corrupção nas escolas. Melhor dizendo: a educação nas escolas contra a corrupção. Porque, como adivinha o leitor, não é nas escolas que está o núcleo duro da corrupção em Portugal.

Apesar disso, é nas escolas que é preciso "apostar", explicam-nos as lideranças políticas – e não só: uma associação cívica, a All4Integrity, dedica grande esforço à educação contra a corrupção nas escolas (perdão, à educação nas escolas contra a corrupção), inclusivamente distribuindo certificados de Escolas Embaixadoras Anticorrupção às que mais zelosamente ensinarem aos jovens que é feio roubar. Eles se calhar não sabiam; ficam a saber.

Se tivesse eu de desenhar uma Estratégia Nacional Anticorrupção, seguramente centrá-la-ia nos partidos políticos, no Parlamento e no Governo. É lá que se fazem as leis e os favores (e as leis de favor, e os favores nas leis). É lá que se distribuem milhões às empresas dos camaradas. É lá que se negoceiam benefícios fiscais, acesso a fundos europeus e esquemas de contratação pública (agora relaxados porque o que conta é "executar"). É lá que se assinam concessões a 30 ou 40 anos com rendas garantidas. E é lá que se traficam influências e dinheiro sujo para os partidos e para os comissionistas dos partidos.

Mas, em Portugal, a "aposta" é nas escolas, esse antro de corrupção. Pelo que se tornou rotineiro ver entidades oficiais e oficiosas ensinar à tenra juventude que todos temos um corrupto dentro de nós que é preciso reprimir com contrição e temor a Deus. Chama-se pedagogia contra a corrupção. Prevenção pela ética política não há. Repressão eficaz no sistema penal não há. Sanções disciplinares para funcionários, ou regulatórias para empresas, que não morram na prescrição dos recursos dilatórios, não há. Recuperação de activos não há. Que não nos falhe ao menos a pedagogia nas escolas, esse antro de corrupção.

Este festival de doutrinação infantil parte de um pressuposto errado: o de que o combate à corrupção em Portugal falha porque ninguém sabe como fazê-lo; e que é nas escolas que se aprende. Só que não é verdade. O problema não é quem tem de combater a corrupção não saber fazê-lo. É não querer fazê-lo.

É verdade que continua a haver uma enorme iliteracia sobre governança e sistemas de ética e integridade nas organizações. Mas esse é um analfabetismo que tem de se resolver nas instituições, com os adultos que nelas trabalham e que com elas interagem; não se resolve pregando missinhas moralistas às crianças. Primeiro, porque essa abordagem não passa de hipocrisia paternalista: como registou o estudo recentemente publicado sobre ética política, o termo que os cidadãos mais associam à palavra "corrupção" não é "crianças". É "políticos". Fazer das escolas o lugar consensual de combate à corrupção é escolher deliberadamente o alvo errado e adiar o problema por uma geração, fingindo que se está a fazer alguma coisa.

A segunda razão pela qual a "aposta" nas escolas é uma cretinice ingénua (ou, pior, um circo degradante) é que alimenta a noção de que a corrupção é um "mal cultural" português (ou "sulista", ou "católico") que está entranhado no nosso sangue, que já não vamos a tempo de limpar dos nossos ossos mas, com esforço e dedicação, conseguiremos apagar da pele dos nossos meninos. Outra bela treta. Qualquer cidadão médio, qualquer ser humano, tem um instinto natural para detetar a injustiça e reagir – e nisto, aliás, ninguém tem um mais afinado detetor de balelas do que um miúdo de 16 anos.

Ninguém gosta de engolir desaforos ou pactuar com abusos. Se os portugueses praticam a cunha e o favor é porque as instituições que nos deviam servir com abertura, celeridade e eficácia não funcionam – obrigando o cidadão a ver os seus direitos esvaziados ou a negociar com a balbúrdia, tentando safar alguma coisa que o ajude a seguir com a sua vida. A ética que nos falta não é a ética individual dos "homens bons" – seja lá isso o que for. É uma ética institucional que estabeleça regras claras, procedimentos transparentes, sistemas de controlo e mecanismos de responsabilização. Uma instituição sólida – melhor dizendo, uma democracia digna do nome – não é a que depende de uns quaisquer super-cidadãos ou homens puros. É a que sabe defender-se, sempre que algum impuro pisa o risco.

O papel de uma estratégia anticorrupção não é produzir heróis, com prémios públicos ou discursos de virtude. Essa abordagem é boa para os populistas autoritários. O combate à corrupção tem de ser abordado como uma questão de política pública, assente em objetivos concretos, com medidas práticas levadas a cabo por instituições capacitadas dentro de prazos bem definidos. Trata-se de criar uma democracia centrada em instituições capazes de nos tratar a todos por igual; não em líderes centrados nas suas bases de apoio e nas suas tribos clientelares. É muito difícil perceber isto?

Essa cultura que, mais do que cultura anticorrupção, é cultura democrática, não se cria nas escolas a dizer às crianças "resolvam vocês isto, porque nós já desistimos". Cria-se com instituições fortes, transparência e prestação de contas aos cidadãos, sem lideranças complacentes, nomeadas por "confiança política" ou cooptadas por "reconhecido mérito" de entre a corte de elites endogâmicas que se passeiam há décadas (eles, os filhos deles, os amigos deles e os filhos dos amigos deles) nos corredores do poder.

Faz sentido irmos às escolas, sim, para falar de democracia, não para pregar moral. Ensinar o que é a Constituição, como se faz uma lei, a diferença entre um tribunal de primeira instância e um tribunal de recurso, quais são, como funcionam e como deviam funcionar as instituições que governam a nossa vida. Os nossos filhos não são parvos, são apenas jovens. Não precisamos de os aborrecer com lições beatas sobre o que é ser bom cidadão. Eles dispensam o paternalismo. Gente crescida: tenham noção e eduquem-se a vocês primeiro.


João Paulo Batalha

https://www.sabado.pt/

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