Havendo tantas diferenças, porque é que a sensação de desgoverno é a mesma? Porque é que o novo executivo parece uma geringonça sem parafusos?
28 de Dezembro de 2022,
Marcelo chamou-lhe “vícios originais”. A frase completa é: “Está em causa um processo de reajustamento do Governo muito acelerado. Isso significa ter a noção de que é preciso ir mudando orgânica e pessoas, e que houve vícios originais ou soluções que não provaram num espaço de tempo muito curto.” Tenho pena que os jornalistas não tivessem pedido ao Presidente da República para desenvolver esta tese dos “vícios originais”, curiosíssima expressão que mereceria muita hermenêutica. Mas se Marcelo não fez esse trabalho, fazemos nós por ele.
Em nove meses de maioria absoluta – convém sublinhar o “maioria absoluta” –, já saíram do Governo um ministro (Marta Temido) e sete secretários de Estado. Temido, como bem sabemos, saiu desgastadíssima e nada contente. No Ministério da Economia, dois secretários de Estado acabaram corridos em câmara lenta após terem discordado publicamente do ministro. Já Miguel Alves, antigo secretário de Estado adjunto do primeiro-ministro, foi defenestrado após o psicodrama do Centro de Exposições Transfronteiriço de Caminha se ter arrastado durante mais de duas semanas.
Para o seu lugar entrou o então secretário de Estado dos Assuntos Fiscais António Mendonça Mendes, o que obrigou a uma remodelação no Ministério das Finanças. Foi na sequência dessa remodelação que Alexandra “500k” Reis foi resgatada à NAV e nomeada secretária de Estado do Tesouro – para ser demitida 25 dias depois, com António Costa a rezar para que a exibição pública da sua cabeça faça esquecer as danças duvidosas de Pedro Nuno Santos e de Fernando Medina nos bastidores da TAP.
Pergunta: alguma vez se viu coisa semelhante a esta? A resposta é “sim”. Viu-se em 2004, quando Pedro Santana Lopes era primeiro-ministro, e se queixava do “bebé” que estava “na incubadora” a levar “estalos” dos “membros da família”. Lembram-se? “Este é um Governo a quem ninguém deu quase o direito de existir antes de ele nascer”, lamentou Santana em Novembro de 2004, “e que, depois de nascer através de um parto difícil, teve que ir para uma incubadora e vinham alguns irmãos mais velhos e davam-lhe uns estalos e uns pontapés”.
Na altura, a inesquecível metáfora da incubadora surgiu na sequência de um artigo assassino do irmão mais velho Cavaco Silva no Expresso (“A boa e a má moeda”), no qual ele pedia que os “políticos competentes” afastassem os “incompetentes”. Jorge Sampaio fez-lhe a vontade: 24 horas depois, anunciava a dissolução do Parlamento. E assim – importa jamais esquecer – nasceu a maioria absoluta de José Sócrates.
Há quatro grandes diferenças entre a situação de António Costa em 2022 e a de Santana Lopes em 2004. 1) O parto de Costa foi uma maioria absoluta. 2) Costa não é Santana. 3) Marcelo não é Sampaio. 4) Quem está actualmente na incubadora não é o Governo – é o país. Mas havendo tantas diferenças, então porque é que a sensação de desgoverno é a mesma? Porque é que o novo executivo parece uma geringonça sem parafusos?
É aqui que entram os “vícios originais”. Dedicar-lhes-ei o meu próximo artigo, até porque é uma excelente forma de terminar o ano. Mas posso deixar duas pistas. Vício original 1: Costa não sabe o que fazer com a maioria absoluta, porque ela só atrapalha quem não quer mudar nada. Vício original 2: Quem gere o país como se fosse a mercearia do Partido Socialista rodeia-se de velhos amigos e gente da família, porque a fidelidade é mais importante do que a competência. Só que (claro) não é.
O autor é colunista do PÚBLICO
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